OPINIÃO

Nos devolvam a tia Alzira

Por Moisés Mendes / Publicado em 25 de novembro de 2022

Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil

“O parente afastou-se e transmitiu suas impressões à família. Uma outra pessoa havia tomado o corpo de tia Alzira”

Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil

Há muitas histórias não contadas ou contadas pela metade de personagens que o bolsonarismo transformou em pessoas estranhas. Principalmente depois que o sujeito foi derrotado.
Tia Alzira é uma dessas personagens reais, verdadeiras, afetivas e parceiras que sofreram mutações talvez só aparentemente repentinas.
Sei da sua história recente, contada por um familiar de quem sou amigo no Facebook, e por isso me habilito a resumi-la aqui. Todo mundo tem uma tia Alzira.
Uma semana depois da eleição do segundo turno, uma família de Porto Alegre passou a ser alertada por parentes de Sobradinho. Tia Alzira está acampada na frente do QG do Exército.
Não levaram muito a sério. Tia Alzira não tinha o perfil do patriota que chegue a tanto.
Professora aposentada, viúva, morando em Porto Alegre, com o único filho há dois anos em Portugal, sempre teve autonomia e foi decidida, mas sem posições políticas intensas.
Pois tia Alzira havia ficado intensa. E terrivelmente bolsonarista. Estava enturmada a um grupo de amigas e amigos da igreja. E a igreja dela é a católica, não é a evangélica, geralmente associada ao bolsonarismo.
Foram conferir a informação vinda de Sobradinho. Mandaram whats para tia Alzira. Sim, ela estava ‘acampada’. Aparecia de manhã e ficava às vezes até o começo da noite no quartel.
Um parente foi até o local num sábado. No primeiro dia, não teve êxito. No segundo, o domingo, andou pelo entorno do acampamento quando à tarde viu tia Alzira num grupo.
Conversava animada, sem bandeira nas costas, mas com uma blusa verde. O parente se aproximou. Não deveria.
Tia Alzira o chamou para o grupo e tentou convencê-lo a interagir com as amigas. Quando percebeu que não conseguiria uma nova adesão, passou a destratar o parente.
Era outra pessoa. A tia Alzira, sempre calma, estava agitada. E determinada a enfrentar quem a questionasse.
O parente afastou-se e transmitiu suas impressões à família. Uma outra pessoa havia tomado o corpo de tia Alzira.
Ela estava discursiva e impositiva e repetia as frases clássicas da extrema direita pela família e pela moral, tudo em nome de Deus.
Telefonaram para o filho em Portugal para alertá-lo. O filho, de esquerda, mas sem militância ativa, já sabia. E havia desistido de resgatar a mãe, que o ajuda a se manter em Lisboa.
Montaram uma estratégia para tentar entender o que se passava. Mandaram um whats para que ela aparecesse um dia na casa de uma prima. Um chá da tarde.
Ela foi, mas levou duas amigas. Uma mais intensa do que ela, e a outra mais quieta, mas com cara de que poderia ser a mais radical.
A tia deu o recado: não tentem me controlar, porque eu estou com as pessoas certas. Deixou claro que havia passado a duvidar de muita coisa, inclusive das vacinas.
Contou que tomou as quatro doses contra a covid, mas que agora não aceitaria mais nenhuma. Estava mudada. Só usava máscara onde exigiam. E temia a ‘volta’ do comunismo.
Até foi cordial, mas inflexível. Ninguém iria tirá-la da turma acampada. E que parassem de telefonar para o filho dela.
A família decidiu que não havia o que fazer. Todos são progressistas, mesmo que a maioria não tenha ligação com partidos.
O drama maior é que tia Alzira não se apresenta como uma defensora apenas dos militares, mas de Bolsonaro. Os militares deveriam proteger o sujeito e assegurar sua permanência no poder.
É o detalhe que mais impressiona. Ao contrário da maioria dos acampados, que parece exaltar mais os generais do que o ex-tenente, ela quer prioridade a Bolsonaro, ele é o seu líder.
A conclusão geral dos parentes é a de que precisam se distanciar. Eles temem que a tia se envolva em alguma ação mais radical ou fique no entrevero de uma tentativa de desocupação da rua.
O filho que mora em Portugal pediu para que se afastem da mãe. Ele acredita que em algum momento ela irá voltar ao normal e ser o que sempre foi, uma pessoa quase indiferente à política.
Um dia desses uma sobrinha arriscou-se a passar perto do quartel e foi percebida pela tia, que lançou um olhar de reprimenda.
Alguns acham que tia Alzira está perdida, outros concordam com o filho e esperam tê-la de volta.
Vai depender de tanta coisa. Uns já avisaram que que, se ela desistir, irão acolhê-la como sempre foi, a tia querida de Sobradinho. Outros não têm essa grandeza.
O bolsonarismo devastou nossas relações com os parentes, os amigos, os vizinhos e os colegas de trabalho. Mas nada é pior do que ver uma tia querida virar uma pessoa estranha e imprevisível. Uma tia nunca poderia ser vista como uma pessoa perigosa.

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