O caso Ford no RS: a verdade está sendo resgatada
Arte: Pedro Alice
Arte: Pedro Alice
Já se passaram dez anos dessa ocorrência, que acabou por deflagrar uma contenda judicial na qual o governo (Olívio Dutra), na defesa do interesse público, exigiu que a montadora cumprisse a sua parte no vantajoso acordo realizado no governo anterior (Antônio Britto). Há pouco tempo, a Justiça prolatou sentença, ainda sujeita a recurso, na qual condenou a Ford a ressarcir o Estado por valores recebidos antecipadamente.
Queremos tratar agora de outro aspecto envolvendo o mesmo tema. Trata-se da situação dessa corporação na época em que negociou com o governo do RS o contrato que depois não cumpriu. A Ford era uma empresa decadente no Brasil desde a metade dos anos 1980, quando chegou a responder por 17,88% (1986) dos veículos produzidos nesse ano, desempenho que se manteve cadente até 2001, quando atingiu modestos 6,51%. Se considerarmos apenas a produção de automóveis, sua participação caiu de 17,02% para 5,17% no mesmo período.
Na verdade, a Ford mundial enfrentava grandes dificuldades. Segundo Bill Ford (Valor, 8-4-02, p. B2), apenas a subsidiária europeia havia superado os prejuízos, obtendo modestos lucros em 1992. O restante da corporação amargava perdas de mercado, prejuízos bilionários em dólares e queda na confiança. Portanto, tratava-se de uma empresa “doente”. Para comprovar, basta ver o teor de alguma das manchetes do The Wall Street Journal Americas da época: “Na derrocada da Ford, uma série de erros estratégicos difíceis de corrigir” ou “Ford deixa Wall Street cética”.
A solução formulada pelo board da Ford teria que vir da América Latina. No caso do Brasil, foi projetada uma planta com escala de 100 mil veículos/ano. Com esse projeto, a Ford aproveitou o leilão proporcionado pela guerra fiscal e o generoso esquema de concessões resultante e bateu o martelo.
Todavia, os policy makers da época, inteiramente seduzidos pelo projeto, não perceberam a precária situação da empresa que estavam financiando. Da mesma forma, deixaram de considerar o fato de que a abertura do mercado em 1990 introduzira novos produtores no país, ávidos para aproveitarem o ambiente favorável aos negócios aqui vigentes, acirrando a concorrência no oligopólio automotivo.
Mesmo fragilizada, a Ford percebeu que deveria ser mais agressiva em sua estratégia de atuação, obrigando-se a mudar a escala do projeto e concebendo uma planta com capacidade para produzir 250 mil veículos/ano, mais do que o dobro daquela imaginada para o Rio Grande do Sul.
Para tanto, precisava de mais benesses, de mais vantagens, na verdade, de mais dinheiro público. Provavelmente, avaliando que seria impossível obter tudo o que pretendia no RS, onde já havia, inclusive, desviado parte do adiantamento dos recursos obtidos para outras unidades fora do estado, articulou-se com os governos federal e estadual da Bahia para alcançar o seu intento. Conseguiu tudo o que precisava.
A parceria União Federal/Bahia assegurou a mobilização dos fundos públicos que foram decisivos na implantação do novo projeto naquele estado. Com todo esse oxigênio, a Ford passou a respirar aliviada e ingressou em uma fase de recuperação, superando relativamente a profunda crise atravessada desde os anos 1990, quando dissolveu o infeliz casamento com a Volkswagen (Autolatina).
Sobre o projeto na Bahia, cabe registrar duas manifestações de homens importantes na corporação. Bill Ford declarou ao Financial Times Chicago, reproduzido no Valor em 28-10-02, p. B5: “ Se nosso plano falhar, não teremos outro”. Nick Scheele (CEO da Ford), na mesma linha, afirmou ao Valor (3, 4 e 5/5/02, p. B 7): “Essa fábrica é a nossa última chance”. Essas declarações revelam que, de fato, a empresa havia atingido uma situação de quase insustentabilidade. Espera-se que esse exemplo, mais do que emblemático, tenha representado uma grande lição aos que lidam com o interesse público em nosso estado.
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