A desigualdade da educação superior e os cursos de medicina privados
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Com a emergência da sociedade e economia do conhecimento, a educação superior se tornou um importante fator de mobilidade social. Estudos baseados em evidências demonstram que a obtenção de um diploma de graduação – especialmente em carreiras com maior reconhecimento – possibilita que pessoas pertencentes a grupos socioeconômicos desfavorecidos melhorem renda, saúde, cultura, qualidade de vida, e transbordem esses aspectos positivos para o entorno.
Ainda que no último quarto de século a quantidade de matrículas tenha avançado de 1,5 milhões para quase 9 milhões, as taxas de atendimento no Brasil são baixas na comparação internacional. Há pouco tempo, a proporção de brasileiros entre 25 e 34 anos com diploma de graduação era de 18%, enquanto no chile era 30% e, na média, nos países da OCDE era 43%.
Todavia, para além da questão quantitativa, a educação superior brasileira se depara com desafios relativos à equidade, ou seja, precisa expandir gerando oportunidades equivalentes para jovens de todos os grupos, independente da origem social, étnica ou demográfica. Mesmo com a criação das políticas de ações afirmativas como a Lei de Cotas e o Prouni – que ajudaram a ampliar de 1% para 15% a participação nas matrículas dos estudantes 40% mais pobres –, o perfil dos graduandos ainda reflete as desigualdades existentes em nossa sociedade.
De acordo com o IBGE, em contraste com apenas 5% dos filhos de pais que possuem baixa escolaridade conseguirem se graduar, 70% dos filhos de pais com curso superior obtêm tal diploma. Também no sentido de inequidade, o indicador racial revela que a presença de jovens de 18 a 24 anos brancos é proporcionalmente o dobro dos pretos da mesma faixa etária nas faculdades e universidades.
Análise do Unrisd (órgão da ONU) mostrou que o incremento da participação de graduandos de menor nível socioeconômico no Brasil tem sido maior em cursos de carreiras com menor prestígio. Ou seja, quanto menos os estudantes tiveram acesso a escolas privadas na educação básica, quanto menor for a renda de suas famílias e a escolaridade de seus pais e quanto menos suas peles forem claras, menor a presença em cursos considerados de “elite”.
Com efeito, enquanto numa pouca procurada licenciatura a porcentagem de concluintes com renda familiar baixa é de 70%, nos desejados e prestigiados cursos de medicina é de apenas 13%. Acessar, frequentar e concluir um curso de medicina, especialmente numa instituição privada, de fato, é para uma minoria muito privilegiada. Dos raros cursos que mantêm amplas disputas nos processos de seleção da rede não estatal (ultrapassando a relação 50 candidatos/vaga), eles possuem mensalidades superiores a R$ 10 mil e, muitos aprovados, inclusive da classe média, não conseguem pagar.
Contrastando com um professor da educação básica da rede pública que não alcança um salário inicial de R$ 5 mil, um médico recém-formado pode auferir R$ 20 mil por mês. Na prática, as medicinas das instituições privadas se tornaram mecanismos de geração de castas, segregando acesso pelo custo e perpetuando status social e riqueza pela seletividade do diploma. Quase que exclusivamente filhos de famílias que fazem parte do topo da pirâmide social conseguem frequentá-las, legitimando a falácia do mérito escamoteado em vantagens econômicas.
A nova gestão do MEC poderia, diante de tal realidade injusta, ampliar para 50% a parcela mínima de estudantes bolsistas nos cursos de medicina das instituições privadas, semelhante ao que ocorre nas cotas das universidades federais. Essa é uma iniciativa simples e sustentável, bem como fundamental para o acesso nesses cursos de jovens com dificuldades impostas pela origem social, com carências e desvantagens desde o nascimento e que não possuem herança patrimonial. Isso ajudaria a reduzir a iniquidade da educação superior brasileira que, como sistema, muitas vezes ainda produz e reproduz uma das maiores desigualdades sociais do mundo.
Julio Bertolin é doutor em educação, mestre em ciência da computação, pesquisador das bases de dados do Enade e ex-professor da Universidade de Passo Fundo; foi consultor em projetos sobre educação superior do MEC e de órgãos da ONU, Unesco e Unrisd (United Nations Research Institute for Social Development)