Professores aderem à campanha pela revogação do novo ensino médio
Foto: Valéria Ochôa
Embora o novo ensino médio venha sendo assimilado por escolas da rede privada no estado que dispõem de mais recursos para se adequarem à mudança curricular e de concepção desse nível de ensino, a nova política vigente desde 2017 representa a precarização das condições de trabalho dos professores, além de impor uma formação que prioriza a preparação para o mercado de trabalho em detrimento da formação humana e cidadã. De forma geral, piora as condições e o acesso ao ensino público de qualidade no país. Nas escolas públicas, a reforma esbarra na falta de estrutura e de recursos.
O posicionamento dos professores do ensino privado pela revogação do novo ensino médio pelo Ministério da Educação foi tema do Sinpro/RS Debate Educação, realizado pelo Sindicato dos Professores (Sinpro/RS) no sábado, dia 1º, em Porto Alegre e com participação remota da categoria.
A mobilização nacional pela revogação reúne entidades profissionais, sindicais, instituições acadêmicas e especialistas em educação que estão discutindo e propondo a alteração do novo ensino médio.
O debate teve mediação da diretora do Sindicato, Cecília Farias, que destacou a adaptação do setor privado às novas diretrizes e ponderou os impactos do novo ensino médio para as escolas públicas no estado.
“O ensino privado não terá grandes problemas com a reforma, está se adaptando ao novo ensino médio. A questão é como promover essa mudança em uma escola pública que não tem as mínimas condições materiais e humanas, em uma realidade de precarização e desencanto dos professores com a docência. O Sinpro/RS, em sua concepção de Sindicato Cidadão, transcende a representação dos professores no ensino privado. Nossa luta é por uma escola para todos, voltada para a formação de cidadãos de direitos e não apenas formativa para o mercado de trabalho”, avalia Cecília.
Histórico revogação
A atual política de ensino médio foi aprovada pela Lei 13.415/2017, sob o argumento de tornar a etapa mais atrativa e evitar que os estudantes abandonem os estudos.
A implementação teve início em 2022. Em março de 2023, o MEC abriu consulta pública por 90 dias, com o objetivo de estabelecer “o diálogo com a sociedade civil, a comunidade escolar e demais agentes para a coleta de subsídios para a tomada de decisão do Ministério da Educação acerca dos atos normativos que regulamentam o Novo Ensino Médio”.
Painelistas revogação
Foto: Valéria Ochôa
Foram painelistas professores e pesquisadores do ensino médio.
Licenciado e bacharel em Geografia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Bruno Maciel relatou sua formação na rede pública municipal e estadual em Santa Maria para expressar as inseguranças e incertezas que os jovens enfrentam durante o ensino médio.
“Fui inserido no colégio fundamental do meu bairro porque era onde todas as crianças estavam, migrei para o ensino médio porque era onde todo mundo estava e eu não sabia muito bem o que eu estava fazendo ali. Tanto que estando no ensino médio nunca pensei o que eu queria ser”, lembrou.
Mestre e doutorando em Educação, ele foi o primeiro painelista do debate e relatou sua experiência com o novo ensino médio como professor de Geografia do Colégio Santa Inês, em Porto Alegre.
O novo ensino médio, avalia, propõe uma perspectiva de educação “que tecnicamente vai me tornar cidadão, mas também de atender uma demanda do setor produtivo. Que é onde a gente chega hoje como esse novo ensino médio”.
“Na prática, no colégio em que eu trabalho a gente começou um ano antes a propositiva de implantação do novo ensino médio, deu início a esse novo desenho de formação do estudante um pouco antes do que outras escolas. Hoje, em 2023, leciono um período de Geografia, que é a minha formação básica, para os três primeiros anos. Junto com isso, uma forma que a escola achou de manter o profissional, porque é preciso entender que eu saio de um currículo de 1,2 mil para 1 mil horas, foi reduzir de três períodos que eu tinha em cada ano para um. E na tentativa de manter o profissional, entrega mais um período de ciências humanas e ainda tenho um itinerário interssérie de atualidades de dois períodos. Quem está se formando no terceiro ano no Santa Inês fecha esse primeiro ciclo de novo ensino médio”, relatou.
Apego ao currículo revogação
Quando começou a adaptação, foi bastante desesperador pelo apego curricular, revela. “A geografia é o que interessa, a melhor disciplina, o resto vem só complementar. O desafio é trabalhar dentro dessa disciplina, por exemplo a base da geologia, em apenas três aulas, que antes levava quase um mês para desenvolver todo o conhecimento. Essa situação de angústia passa muito pela experiência como estudante. Desse ponto de vista, o novo ensino médio é bacana, porque desacomoda, faz pensar o currículo: tem pouco tempo, é preciso focar no que de fato importa, o que vai ser útil para o estudante. Ainda assim a gente consegue chegar lá na escola com a trilha de ciências humanas com a possibilidade de continuar desenvolvendo conhecimento da base comum. A trilha tem o compromisso de ser um componente integrado, dialogando com a História, porque a Sociologia e Filosofia tiramos”.
Mesmo com o currículo antigo com três períodos e a carga horária maior não era possível desenvolver todo o conteúdo com o estudante, explicou Bruno.
“Através do itinerário letivo que o aluno pode escolher, a gente pode fazer diferente. Tenho tempos diferentes de desenvolvimento de práticas pedagógicas, consigo trabalhar com simulação, trazer assuntos que interessam ao estudante. Em Atualidades não existe um currículo fechado, os alunos sistematizam o que vão precisar para desenvolver em sala de aula com a mediação do professor. Desse ponto de vista, Atualidades permite desenvolver conteúdos que não eram contemplados no currículo antigo.
Desigualdades
Para o professor, apesar dos aspectos que ele ressalta como positivos, a reforma produz desigualdade, pois as mudanças não ocorrem da mesma forma na escola pública.
“A caminhada do ensino privado é tranquila, a estrutura está ali, tu consegue mobilizar o profissional, ou manter ou trazer de fora para gerir essa estrutura. Se a gente for jogar isso para o ensino público vejo que é extremamente inviável. Mas de onde a gente está, é uma estrutura possível.
O painelista ponderou a preocupação com os profissionais da educação nessa nova realidade. “A gente vê com o novo ensino médio a redução das cargas horárias devido à exclusão de componentes e a possibilidade de terceirizar determinados serviços. Foi uma opção do Santa Inês me manter como professor de Atualidades, mas nada impede a escola de contratar um outro profissional que trabalhe diretamente com as questões de relações internacionais.
Dentro do ensino público, isso não é possível porque não há a estrutura e as bases que nós temos. O Santa Inês pode investir nisso, estamos num lugar privilegiado”.
Ato de resistência revogação
Foto: Valéria Ochôa
Integrante de um grupo de pesquisas de políticas para a área de educação infantil, Rodrigo Luiz Barelo, pontuou o esvaziamento da escola pública na capital.
“Nosso ensino médio na rede de Porto Alegre é um ato de resistência. Do governo Marchezan pra cá houve uma série de ações para acabar com as duas escolas que operam no ensino médio. São escolas que existem por uma demanda social dos bairros e esses estudantes estão sendo impedidos de cursarem o ensino médio a pretexto do governo de cumprir a LDBEN. Priorizar a educação infantil no ensino fundamental é uma falácia”, afirmou.
Licenciado em Pedagogia pela Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras (Fapa) e mestrando em Educação pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Barelo é especialista em Alfabetização pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) e em Tecnologias para Educação Profissional pelo Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC). É professor da rede municipal de Porto Alegre.
Financiamento público
A emenda 59 de 2009 foi extremamente importante no sentido de colocar o direito à educação básica como currículo obrigatório a partir dos quatro anos até os 17 anos, avalia.
“Mas ao mesmo tempo que temos a necessidade de aumento do acesso à educação básica, temos o teto dos gastos públicos, que não foi uma medida de controle da verba pública, mas de redução dos investimentos na área social. As normativas vinham para ampliar o acesso à educação e principalmente à educação infantil, mas precisaria de financiamento público. Em 2016, através de uma MP, o governo Temer propõe uma reforma do ensino médio que é uma reforma do gasto público, que vem a ser um limitador da meta do Plano Nacional de Educação de ampliar as possibilidades da educação infantil e do ensino médio”, contextualizou o painelista.
Para ele, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) começou restringindo as questões de gênero, sexualidade. A importância dos movimentos sociais para a educação foram retirados do debate. “Em 2018, um ano após a aprovação da BNCC contendo as etapas da educação infantil e ensino fundamental, de forma acelerada, incompetente, foi finalizada a base do ensino médio, que dá um recado muito claro: o que importa é português e matemática. A omissão em relação às humanidades e mesmo das ciências exatas deixou uma lacuna grande para os estudantes. Filosofia, sociologia, arte reduzidas, os itinerários formativos. A base comum passa a ter um teto de até 1,8 mil horas, o que engessa as instituições quanto a dimensionar os conteúdos para os itinerários formativos. Na rede estadual há uma regulamentação para que as escolas não possam fazer adaptações nos conteúdos”, aponta Barelo.
Cavalo de Troia
A construção dos itinerários formativos, de acordo com o texto, deve se dar a partir dos interesses dos estudantes e necessidades da comunidades, porém conforme as possibilidades do sistemas, pontua o pesquisador. “Temos no RS municípios que têm apenas uma escola de ensino médio. Se aqueles estudantes tiverem interesses na área ecológica, ambiental, se não tiver professor que de conta desse conteúdo a escola não vai poder oferecer. A questão da escolha é uma falácia”.
Para ele, houve um esforço do MEC em convencer a população a aderir ao novo ensino médio por meio de propaganda “com imagens de estudantes saltitantes, bem vestidos, com um perfil bem diferente da realidade, que é de pobreza e escolas precarizadas”.
O novo ensino médio se inicia em 2019 com escolas-piloto. No RS foram cerca de 300 escolas. Num primeiro momento, tiveram a possibilidade de criar oficinas, fazer levantamentos nas comunidades sobre interesses. “Mas no mesmo ano em que produziram essas pesquisas e foram às Coordenadorias de Educação, aquele itinerário inicialmente desejado já não existia mais, teria que ser com base nos itinerários formativos da própria Secretaria de Educação”.
Barcelo lembrou que a reforma e a ideia dos itinerários têm a contribuição de fundações privadas, que por trás da assistência técnica são os verdadeiros formuladores desses currículos.
“Eu chamo esse novo ensino médio de Cavalo de Troia. Na propaganda de empresas e fundações privadas, a gente vê a defesa do ensino médio bastante bem elaborada, sedutora, que pode convencer a população, que vai ser bom para os estudantes. Na pesquisa com relação ao ensino médio, identificamos que há conceitos em disputa. Por exemplo, protagonismo juvenil e projeto de vida são conceitos que nós há muito tempo já tínhamos enquanto educação popular, educação voltada para a classe trabalhadora e que hoje ganham um novo verniz para atender às demandas de capital humano para o neoliberalismo”, enumera.
Ilusão de empreender
Para o especialista, a fundamentação teórica da BNCC, que é a pedagogia das competências, esvazia o papel do conhecimento.
“Em detrimento de habilidades e competências desse pragmatismo, a escola tem que produzir sujeitos úteis. A função social do conhecimento que seria a de emancipação passa a se restringir à formação de sujeitos para um mundo onde o trabalho perde o seu valor social, passa a ser uma responsabilização do indivíduo. Se você fracassou ou está desempregado, a culpa é sua; você não foi empreendedor, não foi inovador”, ironiza.
Ele questiona a ideia de empreendedorismo embutida na reforma. “Nas comunidades, empreender é fazer sabonete, bolo de pote, brigadeiro gourmet, muitas vezes com a professora bancando os materiais. São atividades que são a falsa ilusão de que esse estudante vai estar no mercado de trabalho. Nesse sentido, o fracasso escolar acaba sendo repassado para o estudante e, como já há muito tempo, para os professores”, analisa.
O grupo de pesquisa identificou o que chama de Violência curricular. “Se entende que o currículo também produz violência ao tirar do professor o papel de protagonista com relação ao currículo, ao conhecimento”, explica.
“No nosso grupo de pesquisas entendemos que a reforma do ensino médio deve ser revogada também em razão de que sua política é capilarizada, não se restringe à formação, ela afeta a gestão da escola, o financiamento. Precisa haver um convencimento social para que esse novo ensino médio funcione. Através da formação continuada de professores precarizada, EaD, com pessoas que não são da área da educação, mas da área do marketing das fundações dos bancos privados”, concluiu o professor.
Expansão sem investimentos
Foto: Valéria Ochôa
“Não sou a favor do novo ensino médio. Entendo que é uma legislação que desestrutura, que enfraquece tudo que foi construído, as lutas históricas e as muito recentes, inclusive”, posicionou-se Mateus Saraiva, licenciado em História e bacharel em políticas públicas, que apresentou o painel de encerramento do evento.
Mestre e Doutor em Educação na linha de Política e Gestão da Educação, Saraiva faz pós-doutorado em políticas educacionais na Ufrgs e está pesquisando sobre a relação entre a política de avaliação, a política de ensino médio e o financiamento.
Lembrou que os jovens de 15 a 17 anos que chegam no ensino médio correspondem a 74,6% desse nível na escola pública. “A cada quatro jovens, um não está na escola. Ainda há um processo de exclusão intraescolar, que mantém mais de 1 milhão de jovens fora da escola”.
Ele apresentou dados que mostram que a expansão do ensino médio nos últimos anos não foi acompanhada dos investimentos necessários.
“Em 1988, 15% da população em idade-referência estava no ensino médio. Em 2000, chegamos a 33%. O que aconteceu com a escola de ensino médio? Ela se popularizou. Aumentou o alunado e a demanda por estrutura na rede estadual”. São 300 mil matriculas no RS. Cada milhão investido, são R$ 3,00 por aluno, ou seja, quando o governo anuncia que investiu R$ 100 milhões, isso representa R$ 300,00 por aluno.
Metáforas de guerra
Para Saraiva, existe uma disputa conceitual em torno do trabalho nas concepções sobre ensino médio, mas nenhum dos dois nega o trabalho. “Está na LDBEN e na Constituição. Depositam na educação a responsabilidade pelo fracasso do desenvolvimento do país. Isso tem a ver com a teoria do capital humano. Mas se formos ver os índices de educação da população brasileira, a escolarização aumentou muito e a gente continua com os mesmos fantasmas, desemprego, fome, falta de saneamento. Que equação é essa que capital humano gera desenvolvimento?”, indagou.
O problema não é o trabalho, mas o ensinar a fazer de maneira mecânica, compara. “O que tem acontecido nessas últimas reformas educacionais, especialmente, na pós-2016, é o trabalho finalístico, numa noção débil de habilidades e competências, que fragiliza. É o menino entregando I-food com a bicicleta do Itaú e que é apresentado como empreendedor. Muitas dessas metáforas são de guerra. A gente está vivendo uma guerra”.
O pesquisador apontou ainda que a formação integral nas diretrizes curriculares de 2018 dão a ideia de formação do indivíduo por aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais. “É diferente da diretriz curricular de 2012, baseada no conhecimento, que aliava cultura, trabalho, tecnologia e ciência. Na primeira, há uma ideia de mundo do trabalho de inserção no mercado, de formação de pessoas resilientes para lidar com as precariedades estruturais. Na segunda, o conhecimento vai te obrigar a pensar na tua relação com o mundo, com as estruturas, com o sistema” compara.
No final do debate, a professora Margot Andras, diretora do Sinpro/RS, lembrou que o novo ensino médio atende aos interesses da iniciativa privada, como o grupo Reúna, Senai, Sebrae, instituições financiadas pelo Ifood, Vivo, Natura, Fundações Ayrton Senna, Unibanco e Itaú. “Por que o Ifood está interessado em implementar a reforma dentro da escola pública?”, indagou. Sani Cardon, dirigente do Sinpro/RS, representante do sindicato no Conselho Estadual de Educação (CEEd/RS) e professor da PUCRS lembrou que a reforma tem reflexos na educação superior. “Estamos vendo a supressão de vários cursos de licenciaturas”. revogação, revogação, revogação, revogação, revogação, revogação, revogação, revogação, revogação, revogação