Máxima culpa
Um dos males emocionais que aflige as sociedades judaico-cristãs é a culpa. Além de causar sofrimento, o sentimento quando crônico gera um estado de paralisia que impede o indivíduo de se posicionar de acordo com o que acredita e até de viver plenamente de de forma participativa e produtiva. O psiquiatra e psicanalista Paulo Sergio Rosa Guedes (de vermelho) e o psicólogo e psicanalista Julio Cesar Walz, ambos de Porto Alegre, estabeleceram um contraponto ao senso comum sobre como o assunto é compreendido e publicaram o livro O Sentimento de Culpa (edição do autor), cuja segunda edição acaba de sair. Em entrevista exclusiva ao Extra Classe, os autores explicam porque entendem que a culpa não é consequência de algo, mas a causa. Eles contextualizam por que culpa e responsabilidade, do ponto de vista da vida emocional, são conceitos totalmente opostos, longe de serem sinônimos; e que quem se sente culpado não consegue amar e nem apreender o mundo.
Extra Classe – Como foi o processo que resultou na elaboração do livro?
Paulo Sergio Rosa Guedes – Depois de termos estudado muitos anos este assunto na literatura psicanalítica e psicológica, concluímos que nossa compreensão não tinha sido escrita, o que nos entusiasmou em aprofundar ainda mais o tema e transformá-lo em livro. A culpa tem sido explorada ao inverso do que nós pensamos, ou seja, sendo vista como uma condição do ser humano que nasceu em pecado original ou, segundo a psicanálise, por querer matar o pai e ficar com a mãe. No nosso ponto de vista, nada disso é verdadeiro, e a culpa é a maneira que temos de nos supervalorizar. Achamos que ninguém precisa sentir culpa. Trata-se de uma invenção que fazemos quando não estamos bem para nos sentirmos mais importantes. Em quase todos os escritos, a culpa é considerada como consequência de alguma coisa. Por exemplo, eu tratei você mal e por isso me sinto culpado. Para nós, a culpa é a causa de uma série de problemas, nunca a consequência. Existe um trabalho do Freud no qual ele tenta demonstrar que o criminoso mata por se sentir culpado, e não se sente culpado porque matou. Ao entendermos isso podemos pensar, por exemplo, de maneira contrária ao que dizem as religiões, para as quais a culpa é resultado de um mau comportamento. No nosso entender, a pessoa se comporta mal porque sente-se culpada, ou seja, se sente muito importante, senão não trataria o outro desta maneira.
EC – A pessoa se sente imbuída de autoridade?
Paulo Sergio – Sim. Sendo ela a causa de tudo, fica com uma autoridade insuportável..
EC – Seria uma forma de suprir uma baixa autoestima?
Julio Cesar Walz – Seria criar uma autoestima falsa. Se supervalorizar.
EC – Que lugar o sentimento de culpa ocupa nas patologias psicológicas?
Paulo Sergio – Ocupa um lugar central. Para nós, as doenças mentais de origem emocional − pois algumas são decorrências de uso de medicamentos, da presença de um tumor cerebral etc. − só têm uma causa: o sentimento de culpa, ou seja, o delírio de grandeza, a sensação de ser onipotente.
Julio Cesar – Isso é tão evidente que em um hospital psiquiátrico os pacientes esquizofrênicos falam com Deus, e Deus fala com eles.
Paulo Sergio – Ou dizem que são Deus. Eu tive um paciente que colocava um cobertor nas costas e dizia que era Jesus Cristo. Na verdade, ele sentia que nem existia. Tinha um sentimento brutal de insignificância.
EC – Tudo começa na culpa?
Julio Cesar – Começa no delírio de grandeza. Se você trocar a palavra culpa pela expressão delírio de grandeza fica mais fácil entender. Culpa remete à causalidade, e já se pensa: eu fiz algo e deveria ter feito diferente. É senso comum que culpa é o resultado da relação entre causa e consequência. O lugar da culpa é tão central nas patologias que, ao longo do tempo, as pessoas fazem esforço para mantê-la. Por mais que digam querer se livrar dela, que aparentemente é incômoda, não querem largá-la, porque aparece como sentimento de grandeza. O mais difícil em terapia é a pessoa compreender que ao perder a ilusão de poder ela viverá melhor.
Paulo Sergio – A pessoa se queixa muito por se sentir culpada, mas é o que ela mais quer. Quem vem nos procurar por se sentir culpado quer diminuir o sofrimento, mas não a culpa.
EC – Como identificar até onde vai a responsabilidade e quando começa a culpa?
Paulo Sergio – Você precisa colocar de outra maneira. Quanto maior a culpa, menor o sentimento de responsabilidade. Internamente, dentro de nós, um exclui o outro. A pessoa que se sente responsável pela sua vida não se sente culpada; e aquele que se sente culpado não consegue, dentro de si, sentir sua responsabilidade pessoal.
EC – A pergunta anterior já estaria imbuída de sentimento de culpa?
Paulo Sergio – Exatamente. É que na linguagem comum isso fica como sinônimo: dizer ‘a culpa é sua’ ou ‘a responsabilidade é sua’ acaba tendo o mesmo significado. Nós procuramos mostrar que a pessoa que se sente culpada não se sente responsável.
Julio Cesar – Ela se sente causadora, mas não responsável.
Paulo Sergio – Se eu saio à rua hoje e, na esquina, um carro bate no meu, o causador do acidente foi ele, mas eu tenho que saber que se dirijo em uma cidade grande isso é algo que pode acontecer com qualquer um, pois os acidentes de trânsito acontecem nas cidades grandes. Eu sou responsável por isso.
Julio Cesar – Se não for assim, a pessoa toma o lado da vítima e, portanto, ela não tem nada para fazer. O mundo é ruim e ela é boa. A polícia precisa matar os bandidos para ela viver bem. Aí o indivíduo começa a criar as desculpas para viver mal. A ilusão das desculpas. Ele é a vítima, portanto, perde a capacidade de ação, para si próprio e até para a sociedade transformadora. A culpa paralisa.
Paulo Sergio – E é impossível prever uma situação como essa, pois se trata de um acidente. Freud diz que se eu discuto com você e lhe dou um tiro, eu só posso fazer isso porque me sinto com muito poder sobre você, com o direito, do meu jeito delirante, de tirar sua vida. Por isso entendemos que a causa do homicídio é a culpa, e não o contrário.
EC – E como o senso comum lida com isso?
Julio Cesar – Vou dar um exemplo. Eu digo a você que estou muito chateado porque esqueci de lhe mandar o e-mail que eu havia prometido. Certamente, você pensaria que eu fui negligente e começaria a buscar saber internamente o que causou o meu comportamento. Isso é feito para justificar que o fato continue grande, assim como a minha importância. É um constante processo de alimentação da culpa.
EC – Isso significa que o interlocutor compra a ideia do delírio de grandeza do outro?
Paulo Sergio – Isso mesmo. E a conversa segue, eu fico mais grandioso ainda, mais culpado, porque acho que poderia ter feito de maneira diferente.
Julio Cesar – Aplicando isso à terapia, a lógica corrente é a compreensão de que a culpa acontece por uma relação de causalidade. O terapeuta tentará buscar as razões conscientes e inconscientes para os sintomas, e isso só aumentará a ilusão de grandiosidade do paciente. Os manuais de Psicologia defendem a culpa, dizem que ela é necessária para o indivíduo defender-se da vida, da crueldade. É usual as pessoas acharem importante sentir culpa para reconhecerem os seus erros. Mas não é possível consertar nada com o reconhecimento. Ninguém conseguiu ainda provar que a vida melhora com o aumento da culpa.
EC – Vocês dizem que o sentimento inconsciente de culpa é a forma mais comum das pessoas não amarem a vida como ela é. Por quê?
Julio Cesar – Isso quer dizer que a pessoa, ao se sentir culpada, acha que tem condições de mudar a vida para trás. Ao ficar pensando no passado o tempo todo, no que podia ter feito diferente, ela não muda nada no presente. Ao não estar no presente, ela não ama.
EC – Vocês dizem no livro que a culpa é sentida como uma companhia. Por quê?
Paulo Sergio – Porque a pessoa que não consegue viver conhecendo a sua insignificância − uma vez que na história da humanidade a minha vida inteira é um grão de areia − precisa de uma companhia fiel que, no caso, é a culpa, causadora de tudo que acontece com ela. O sujeito está sempre incomodado consigo próprio, porque nunca foi capaz de ser quem deveria, ou seja, alguém perfeito, que não sinta as angústias que as pessoas em geral têm, que não se sinta insignificante, impotente em relação à morte de pessoas queridas. Ao se acompanhar da culpa, ele está acompanhado de um delírio de grandeza do qual nunca sairá e nem tirará proveito, pois a grandeza não existe, ela é uma ilusão. Se aceitamos essa condição de insignificância, tornamos a vida mais realizável, temos mais prazer nas coisas. Senão, a companhia da culpa é a única que se tem, e ela impede de poder curtir qualquer relação com outra pessoa.
Julio Cesar – Quando uma criança que sofre abuso inverte, por necessidade, a situação e entende que o pai, ou a mãe, autor da violência não é louco, mas vê a si mesma neste papel, ela fica acompanhada da ilusão de um pai bom para o resto da vida. Se pensar que o pai é um louco, ou o foi naquele instante, estará sozinha e terá que cuidar da própria vida. Então, a culpa é uma companhia, porque surge desta inversão fatal de que eu preciso do outro. E como preciso dele, vou aceitar que a loucura é minha, e aí eu paro de tentar resolver a minha vida.
EC – Quais são as chances de uma pessoa ser realmente tratada do sentimento de culpa e conseguir viver melhor?
Julio Cesar – As chances de o tratamento funcionar são maiores quando mesmo antes de começar o trabalho clínico a pessoa desconfia que é possível mudar a sua vida, ela apenas não sabe como. Ou quando se apaixona por alguém ou por algo e perde a ilusão do controle, ou seja, esse sentimento a desperta para a vida que pode acontecer. Isso exigirá a sua criatividade e participação.
Paulo Sergio – Eu estou com um livro pronto, que vou editar em cerca de dois meses, cujo título é A paixão: caminhos e descaminhos. Nele eu tento demonstrar que os caminhos e descaminhos da paixão são os fundamentos da psicanálise. Quando a pessoa realmente consegue se apaixonar, não só por alguém, mas pela sua vida, o poder ilusório desaparece e ela passa a conseguir aproveitar. Isso depende muito da sintonia entre terapeuta e paciente.
Julio Cesar – São inúmeros os casos em que o paciente não gosta do terapeuta, tem vontade de parar e ir embora, mas fica, para manter-se culpado. Aceita todas as intervenções passivamente, porque não quer aceitar que não está aprovando.
Paulo Sergio – E com isso ele está fazendo de tudo para manter a vida que tinha antes.
EC – Como vocês contextualizariam a questão da culpa ao longo da história em suas diferentes abordagens dentro e fora da psicanálise?
Paulo Sergio – Em nosso entender, esta questão sempre foi encarada dentro e fora da psicanálise como consequência e nunca como causa. Por exemplo, veja-se o que dizem as religiões: o indivíduo sente-se culpado por ter infringido alguma recomendação religiosa. Outro exemplo é a conceituação psicanalítica de que o sentimento de culpa decorre da conduta do indivíduo, chamada complexo de Édipo. Nós não concordamos em absoluto com essas conceituações e defendemos a ideia de que dentro da pessoa o sentimento de culpa exclui o de responsabilidade pessoal. Este último sim é de muito difícil aceitação por todos nós. É sabida e conhecida a dificuldade que as pessoas têm em assumir a responsabilidade pessoal por seus atos. A culpa, assim, protege o sujeito desta assunção de responsabilidade, ou seja, o transforma em alguém com “poder” para sentir-se irresponsável.
EC – Como esta forma de compreensão do tema se aplica aos criminosos de comportamento perverso, com ausência de culpa pelos seus atos?
Paulo Sergio – Os criminosos, em geral, sentem ausência de responsabilidade em seus atos, não de culpa. Aliás, por sentirem-se muito culpados – em outras palavras, muito “poderosos” – dão-se o direito de perpretar os mais bárbaros crimes. É a forma que encontram para dar algum sentido às suas vidas, lamentavelmente. Dizendo de outra forma, o indivíduo que não respeita às convenções necessárias para a vida com os demais não se sente responsável pelo convívio, e sim “poderoso”, “acima” dos outros, com forte sentimento de culpa e uma ilusão de grandeza que lhe permite viver à margem das regras do convívio social. (Chama-se a ela de “marginal”). É a forma que encontra de fornecer a si algum valor.