Ilustração: Sica
Ilustração: Sica
Os gatos escaldados tinham se precavido, eu sei, sobravam ali os gatos pingados. Me entusiasmei, quem sabe uma centelha memorável acudisse. Eu havia me preparado, tinha pensado num gancho maravilhoso para abrir a palestra. Levei algum tempo pra me dar conta que não, não tinha a ver com o Capitão Gancho. Muito menos com um gancho de direita de Muhammad Ali. Nem gancho das calças. O Esquecimento vive assim, distribuindo convites para assuntos não convidados.
Discorri um pouco sobre devaneios da cognição, sobre conexões desconexas e da falta de nexo que o Esquecimento provoca em palestrantes. Me foi dito, não tenho certeza se ouvi, que os estalidos do pessoal se mexendo nas cadeiras era um alerta sobre a impaciência como causa de assassinatos. Calculei que havia divagado por uns 30% do tempo da palestra e estava em busca de um plot inspirador para o próximo terço de papo quando me deu um branco.
Fui direto, mentalmente, ao catálogo pantone de brancos: sei que tem milhares de tons, incontáveis alvuras, certamente alguma compatível com a explosão de magnésio no cérebro que me dominava. Achei e me localizei. Estava firmemente agarrado ao tema da palestra, o Esquecimento.
Petrificado no púlpito, porém ciente da pauta. Da Groenlândia neurológica passei à brancura Rinso, que é quando a memória te socorre oferecendo o mais vago e inútil resquício de ilação. Sem consultar o relógio, pressenti que 60% do meu tempo se escoara, o que combinava com a evacuação de 90% dos assentos. O Esquecimento me trouxera até ali e o esquecimento não me atrapalharia na monumental tarefa de concluir a palestra. Principiei um rol sobre panes mentais, até chegar à degeneração integral da lembrança. Tão fácil a digressão, parecia que eu lia uma tomografia minha!
Me aprontei para encerrar a palestra ao vislumbrar a chave de ouro, aquela piadinha final que liquida com a letargia do público: citei um amigo meu cujo amigo seu agora sofre do Mal de Eisenhower. Ou algo do gênero. Acho que já me esqueceram.