Foto: Marcos Santos/USP imagens
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Ao longo desse período teve tiras e cartuns veiculados na Gazeta Mercantil, na Folha de S. Paulo e no Estado de S. Paulo e em muitos outros jornais. Criou, nesses veículos, dezenas de personagens – entre eles o Hugo (que se tornou Muriel), os Gatos, o Overman, o Fagundes, o Síndico. Na década de 2000, terminado um “ciclo”, como ela conta, abandonou os personagens e passou a explorar outros tipos de narrativa: não só o humor, mas também o absurdo, a metalinguagem e a autobiografia, além de outros estilos de traço e materiais pictóricos. Foram mais de 40 anos de produção transbordante de visão aguda sobre a realidade cotidiana.
As tirinhas e personagens estão acessíveis no site da artista; e a “segunda fase”, mais recente, no blog Manual do Minotauro. Nesta entrevista ao Extra Classe, de forma contundente, Laerte parafraseia Bertold Brecht, que afirmava que “a cadela do fascismo está sempre no cio” e crava: “os reaças estão no cio”, referindo à onda de neoconservadorismo que inunda as redes sociais e está muito bem representada no Legislativo, Executivo e Judiciário.
Extra Classe − Qual o seu envolvimento hoje contra a crescente onda de ódio e intolerância com as diferenças, em especial os atos contra homossexuais e travestis?
Laerte Coutinho − Procuro divulgar denúncias de ataques, participar de debates e de atos que possam ser positivos; procuro somar com os esforços de tantas pessoas interessadas no fim dessas barbaridades.
EC − Aliás, qual artigo definido você prefere antes do seu nome? Por quê?
Laerte − Gosto mais de ser tratada no feminino. Sinto identificação maior com o feminino.
EC − Enquanto artista, a exposição midiática da tua imagem pessoal, em virtude da tua opção de gênero, tem alguma influência no aspecto criativo?
Laerte – Acho que sim, porque eu não me componho de partes desconectadas − não deixo de ser quem sou quando produzo meu trabalho. Bem ao contrário! As histórias e desenhos que faço me ajudam muito a me entender.
EC − E então, você se considera transgênero, crossdresser ou travesti? Por quê?
Laerte − Eu me considero uma pessoa transgênero. Essas designações não deveriam ser grande problema, mas acabam sendo. Segundo o entendimento mais comum, hoje, crossdressers são pessoas cuja transgeneridade se manifesta em travestimentos ocasionais, numa espécie de vida dupla. Da mesma forma, entende-se que travestis são pessoas que vivem a expressão de gênero feminina de forma permanente. Acho que estou mais para esta última forma. Mas, como disse, vivemos um momento em que essas identidades têm sido usadas sob grande tensão e tratadas com rigor variado. Faz falta um debate sério que possa superar as animosidades e trazer mais racionalidade para a luta por direitos civis. Entendo que o termo transgênero compreende todas as vivências em conflito com as normas de gênero na nossa cultura: travestis, transexuais, crossdressers, drags, pessoas não binárias, queers etc.
EC − Essa exposição fez aumentar o interesse no teu trabalho ou está desviando o foco do público da obra para o artista? O que você pensa disso?
Laerte − Meu trabalho continua sendo visto e apreciado como antes. Um pouco mais, até. Nada de desvio.
EC − Algum novo projeto em andamento? Qual?
Laerte − Algumas coletâneas devem sair este ano − e estou tentando construir uma história mais comprida, sem prazo definido para terminar.
EC − Como foi ver o conjunto da sua obra, desde a origem até os dias de hoje, no recente evento Ocupação Laerte, realizado em SP, no final de 2014, e que teve curadoria do seu filho, Rafael Coutinho?
Laerte − Foi emocionante e um pouco perturbador, também. Não costumo ficar observando o que já fiz; não muito, pelo menos. A Ocupação me trouxe uma espécie de overdose de mim mesma!
EC − Você se considera uma militante transgênero?
Laerte – Sim, ou uma ativista. Não sei direito a diferença entre “militante” e “ativista”. Acho que militante supõe um envolvimento mais orgânico em grupos. Tenho esse envolvimento, mas com uma disciplina bastante relaxada.
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Laerte − Não sei se há tal onda de caretice hoje mais do que em outras épocas. Já vivemos proibições bem radicais, no passado. Bem ou mal, hoje discutimos a possibilidade real de certas aberturas que antes seriam impensáveis − no campo dos costumes, dos direitos, das inclusões sociais. Acredito que muitas posições que hoje nos chocam por sua explicitude existiam antes de forma tácita, porque não eram contestadas. Movimentos sociais que demandam direitos forçaram o conservadorismo a se manifestar também. Meu papel é ir pensando e produzindo conforme o que penso, sendo famosa ou não.
EC − Como Laerte enxerga o discurso do ódio e do preconceito de gênero e classe social? Isso reflete no processo criativo? Como?
Laerte − Tento identificar onde essas coisas aparecem. O modo como meu trabalho lida com elas é uma questão à parte. Algumas circunstâncias exigem que a abordagem seja menos “ficcional”, mais objetiva, vamos dizer. Mas tal procedimento me impõe um custo, enquanto autora, porque provocam uma quebra da sutileza que costumo usar − e que está na natureza do meu trabalho. Mas, como disse, em alguns momentos é o que sinto necessário fazer.
EC − Que parte da revolução sexual os homens não cumpriram e que as mulheres já ultrapassaram?
Laerte − Nossa, como vou saber? As coisas não são tão claras assim − ou são? Existiu mesmo uma revolução sexual ou grandes mudanças nos costumes sexuais provocadas pelo impacto do feminismo? O feminismo foi uma revolução sexual ou social? Acho que falta à parte da humanidade constituída pelos homens um movimento histórico de autoconsciência e de revolução, como o que as mulheres foram capazes de produzir. Como diz Christina Montenegro, em seu livro O homem ainda não existe. Não sei dizer qual parte desse movimento, ainda inexistente, será puramente sexual.
EC − Quais os maiores desafios da população transgênero no Brasil?
Laerte − Conseguir o gozo de direitos: liberdade de expressão de gênero, direito de identidade civil, fim das agressões e discriminações, igualdade de oportunidades, proteção contra a agressão fóbica. E, principalmente, conseguir a compreensão social de que não somos uma minoria, um grupo exterior ao conjunto da sociedade, mas parte dela.
EC − Como ex-militante comunista e sendo hoje uma voz ativa dos movimentos LGBT, como você vê a atual cena política brasileira e quais as grandes lutas dos dias de hoje?
Laerte − Pergunta meio amazônica pro meu riachinho ideológico. Há tanto o que fazer! Direitos e conquistas para assegurar, situações sociais críticas para defender, populações que continuam a ser espezinhadas, expulsas, humilhadas, por um modo opressivo de construir o país. Coisa demais!
EC − Qual a sua avaliação sobre o atual cenário político brasileiro. Setores pedem o impeachment de Dilma, de um lado, e de outro pipocam escândalos de corrupção ligados à Petrobras? Há humor nisso tudo?
Laerte −Humor é uma linguagem. Não “está” nos fatos e nas coisas. Não há assuntos melhores ou piores. Quem decide isso é quem produz a fala cômica ou humorística. Fora isso, tenho grande dificuldade em fazer análises de conjuntura. Fazer charges políticas é cansativo e desgastante, para mim. Tenho lá minhas opiniões, claro. Mas elas não se estruturam numa sólida engenharia ideológica, muito pelo contrário − é mais um almanaque. Aliás, o modo como, na pergunta, você coloca o “atual cenário”, não representa bem dois lados − trata-se de uma análise de um lado só (o que quer o impeachment, com o pretexto de combater a corrupção). Né não?
Foto: Marcos Santos/USP Imagens Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Laerte − Esse debate já existia por aqui, não depende da tragédia do Charlie Hebdo nem lança muitas luzes sobre o acontecido. É uma inquietação, uma ansiedade de nossa cultura, em torno da questão da liberdade criativa. Existe desde sempre e com direções muito variadas. Caetano foi criticadopor cantar “um tapinha não dói”, tenta-se enquadrar todo tipo de produção, seja através do que se convencionou chamar de politicamente correto ou politicamente incorreto (que também tem vocação censória, não se iluda). Minha opinião é de que não deve haver censura sobre qualquer discurso. Com isso, me refiro à censura prévia, aos acordos, tácitos ou não, em torno de temas proibidos. Fora isso, o humor, como qualquer manifestação ideológica, precisa responder pelo que diz, afirma, incita etc. É muita cara-de-pau alegar “neutralidade” (“é só uma piada!”) para exigir impunidade, ou imunidade. Toda piada se sujeita à crítica, à resposta; e também à lei, naquilo que se garante em termos de defesa da dignidade humana e dos direitos das pessoas. Discursos que incitam o ódio, que promovem o preconceito discriminador, que produzem prejuízo e danos às pessoas têm que ser criminalizados, sejam piadas, sermões ou vídeoaulas de filosofia. Pessoalmente, tenho vários filtros quando trabalho − não sei se dá para chamar de autocensura. Talvez dê. Não sei.
EC − Assim como no episódio do Charlie, em que muitos setores reacionários pegaram carona, o mesmo ocorre no Brasil, no episódio da Petrobras. De que forma os chargistas e cartunistas podem se vacinar para não dar munição aos seus alvos de crítica e, ao mesmo tempo, não tolher-se criativamente?
Laerte − Reaças estão no cio! Estão pegando carona onde pintar. Na prática, estão no governo − mesmo tendo a Dilma aparentemente vencido as eleições. Chargistas e cartunistas, ai de nós! Há quantos anos não rola um escandalozinho, uma polemiquinha em torno de charge ou cartum? Bons tempos − bons nada, claro − em que D. Pedro I gritando “EU QUERO MOCOTÓ!”, provocava apreensão de jornal ou mesmo prisão de cartunistas. As atenções se voltam para outras vozes – literalmente a comicidade em textos, em shows de comediantes, em programas de tevê, em tuitadas, em frases-míssil. É essa a preocupação geral quando se fala, no Brasil, em “limites”. O que nós, chargistas e cartunistas, podemos fazer é continuar nosso trampo da maneira mais consciente possível. Procurando enxergar o que há por trás da gritaria da grande mídia, identificando os joguinhos que estão sendo jogados. Não é fácil.
EC − A bancada evangélica, respaldada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, retomou o PL que proíbe adoção de crianças por casais homoafetivos e criou comissão para tratar do tema e bater de frente com parlamentares que defendem os direitos e causas ligadas aos movimentos LGBT. 2015 é um ano crucial para o acirramento desses debates? O enfraquecimento do governo pode trazer prejuízos às causas progressistas? Como manter a crítica ao que não vai bem sem perder o foco nas políticas que ainda podem ser implementadas para ampliar direitos dessas minorias tão discriminadas?
Laerte − Sim, claro que pode haver recuos. Por isso, precisamos ficar atentas e atentos, fazer pressão e continuar a expor a nossa voz. Não entendi bem o resto da pergunta. Você acha que há uma contradição entre manter atitudes críticas em relação ao governo federal e contar com a força dele para garantir direitos? Se é isso, não vejo contradição, não − acho que é totalmente possível e recomendável.