Vida de artista na terceira idade
Foto: Igor Sperotto
Não existem números precisos do número de artistas idosos desempregados. Porém, com o avanço da idade, o brilho do sucesso e da exposição torna-se opaco pela falta de espaço no mercado de trabalho ou por limitações impostas pela saúde. Resta a esses artistas aguardar por uma oportunidade ou apenas recordar. É o que faz, sentado à mesa de uma sala da Casa do Artista, Carlos La Porta, quando lamenta, com os olhos azuis marejados de lágrimas, que a sua voz, instrumento de trabalho, está comprometida: uma paralisia na corda vocal esquerda provoca falhas em sua fala. La Porta, hoje com 79 anos de idade, foi o primeiro manequim e garoto propaganda do Rio Grande do Sul, cantou em óperas, atuou e dirigiu radionovelas e teatro.
Há três anos, o ator vive na residência que abriga idosos, ex-profissionais do cinema, música, teatro e técnicos de bastidores que, por falta de recursos, aposentadoria baixa ou de oferta de trabalho, não têm condições de se manterem sozinhos. A residência, que está localizada no bairro Glória, em Porto Alegre, e conta com 11 moradores, não cobra pela moradia. A manutenção é feita por meio de doações da comunidade, de entidades que se sensibilizam com a classe ou pela inscrição em projetos e editais.
Parte de uma geração em que as fãs “rasgavam a roupa” do ídolo, hoje, La Porta segue uma rotina sem assédio e sem espetáculos. “A única coisa que eu faço aqui é radioteatro”, conta ele sobre a sua participação no sarau promovido no último sábado de cada mês. “Eu sempre digo ao Luciano, ‘arruma alguma coisa para a gente fazer. Vamos montar uma peça de teatro’”, relata La Porta.
Luciano Fernandes, que há cinco anos dirige a Casa do Artista, não apenas concorda, como também incentiva a promoção de atividades e busca dar maior visibilidade ao espaço e aos moradores. “O ator é um multiplicador. O La Porta, por exemplo, era um cara que fazia novelas. Imagina o grau de pessoas que ele atingia, para no fim da vida estar esquecido aqui”. O diretor da casa, de 39 anos, explica que um dos critérios adotados para estar na casa é o interessado ter aberto mão de tudo para se dedicar à arte. Para ele, essa é uma forma de valorizar a trajetória do artista e a sua idade, já que Fernandes percebe poucas pessoas idosas atuando no mercado. “Creio que é um problema do Ocidente. Não é como no Oriente, que encaram os mais velhos como mestres. Aqui não. É como se eles ficassem obsoletos, ultrapassados”, lamenta o diretor da casa.
Os percalços têm motivações distintas e não generalizadas, mas, Fernandes, que faz carreira no teatro e no circo, diz que as dificuldades nascem ainda durante a juventude do artista. “A gente vive de cachê. Às vezes tem, às vezes não tem. Em outras situações, tu fazes um filme, mas que leva dois anos para entrar em cartaz e, com isso, deixa de obter algum benefício daquele trabalho”, explica. É nesta fase que muitos − por falta de planejamento ou recursos limitados − deixam de contribuir para a Previdência. Esse, aliás, é um alerta que a atriz e ex-presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado do Rio Grande do Sul (Sated), Rosa Campos Velho, não cansa de emitir. “Não dá para viver só de arte. Digo permanentemente para a gurizada contribuir para a Previdência. Por mais absurdo que seja o valor, já é alguma coisa”, adverte a ex-diretora do Teatro de Arena (1996-2006).
Para aqueles que ainda atuam no mercado, Rosa também aponta como entrave o baixo valor do cachê para publicidade e cinema. “Se me convidarem para atuar, eu vou, porém, não por R$ 50,00. Eu já tenho uma história e isso deve ser levado em consideração”, explica. Ainda que o Sated tenha conseguido estabelecer uma tabela salarial – reconhecida como baixa por Rosa − mesmo assim os contratantes costumam não seguir a sugestão.
Administrar a carreira e preparar o futuro para a aposentadoria
A importância em programar a carreira e se preparar para o futuro torna-se mais relevante pelo fato de que os governos não mantêm um programa específico que atenda aos artistas idosos − exceto em casos isolados, como a Prefeitura de São Paulo, por exemplo, que, no ano passado, entregou um conjunto habitacional para artistas com mais de 60 anos, que contassem com renda mensal de até três salários mínimos.
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O cidadão brasileiro, seja da classe artística ou não, deve contribuir para a Previdência para obter a aposentadoria. Há também outro recurso fornecido pelo governo federal: o Benefício Assistencial ao Idoso − que se estende a portadores de deficiência. O amparo social corresponde a um salário mínimo (R$ 788,00), concedido a pessoas com 65 anos, ou mais, que comprovem não possuir meios de se sustentar nem por meio da família. Para obtê-lo, é preciso agendar atendimento na própria Previdência Social.
No caso do governo do Rio Grande do Sul, conforme a assessoria da Secretaria Estadual da Cultura, não há um programa específico voltado a este público, pelo menos não efetivamente. Enfatizam, no entanto, a existência de editais abertos a receber propostas destinadas a esta área.
O mesmo ocorre por parte da Prefeitura de Porto Alegre. Mesmo assim, a partir de iniciativas bastante isoladas, o Estado já concedeu aposentadoria para alguns artistas, como Lourdes Rodrigues (1938-2014) − Lei nº 14.170/2012 − e Plauto Cruz (Lei nº 14.186/2012). O benefício foi solicitado por amigos e familiares diretamente ao governador Tarso Genro. Já na velhice, o escritor Mario Quintana (1906-1994), que passou por dificuldades financeiras, também foi beneficiado com a aposentadoria concedida pela Estado ((Lei nº 8.743/1988). Para a fotógrafa Dulce Helfer, amiga do escritor, tal cenário não tomou forma pela idade avançada, mas pela personalidade de Quintana. Dulce acredita que a situação do artista idoso depende muito de como ele se posiciona diante da vida e carreira. “O Mario era mais isolado, quieto”, conta Dulce.
Beatriz Presser, amiga e assessora de Lourdes Rodrigues, batalhou durante dois anos pela aposentadoria da cantora. Bia, como é conhecida, cuidou da amiga durante seis anos, quando o estado de saúde de Lourdes exigia maiores cuidados. Ela lembra que, nos últimos dez anos, a artista fazia shows − um ou dois por mês −, mas já não era como antes. Bia acredita que Lourdes foi esquecida nas comemorações do centenário de Lupicínio Rodrigues (1914-1974), apesar das homenagens isoladas. “Ela é um mito da história gaúcha, merecia coisa melhor. A Lourdes dizia, ‘se eu parar de cantar, eu morro’”, conta emocionada a amiga que, por alguns momentos, ainda usa o tempo presente para se referir à Lourdes.
Ciente das dificuldades que os artistas mais velhos passam, o presidente do Sindicato dos Músicos Profissionais do Rio Grande do Sul, Adair Batista Antunes, ressalta que o benefício concedido pelo Estado é uma exceção. “Isso é só para os que estão na mídia, que têm visibilidade”, destaca Adair. Antunes, de 71 anos e que também é músico, defende que a categoria deveria receber uma aposentadoria digna por prestar um serviço à cultura. “A doença que atinge muito o músico é a melancolia”.
Rosa Campos Velho reconhece que os governos dificilmente dão valor à área da Cultura e que a pasta é uma das que oferece a menor dotação orçamentária. Mesmo assim, ela se diz contra o paternalismo do Estado. “O governo tem a obrigação de oferecer condições de trabalho, casas de espetáculos equipadas e em maior número. Mas não tem como manter toda uma classe, senão terá que manter outras também”.
Inquietação que transcende a idade
Ainda que a garantia de uma aposentadoria estável seja fundamental para artistas que ingressam na terceira idade, há outro fator tão importante quanto a segurança financeira: o contínuo e ininterrupto exercício da arte. Indagados se escolheriam a mesma profissão, caso fosse possível voltar no tempo, a resposta é unânime entre os entrevistados: sim. “O artista tem uma inquietação que transcende a idade. Ele não se preocupa com a morte, mas com a obra que ele está fazendo. O cara que é artista, é durante toda a vida”, filosofa o ator de teatro de rua, Zé da Terreira, de 70 anos de idade e que, desde 2001, mora na Casa do Artista. Assim como muitos colegas de classe, Zé recebe hoje um benefício do governo federal, já que não conseguiu contribuir integralmente com a Previdência.
Catulo Parra, de 67 anos, também morou na Casa dos Artista, e não conseguiu garantir aposentadoria quando jovem. Hoje, por exigir cuidados especiais em função do Mal de Alzheimer, o ator vive em uma clínica geriátrica. “Eles (os artistas) sentem falta de trabalhar, do público. Já fazia parte da doença, mas lembro que o pai se vestia de palhaço e ficava na frente de casa”, recorda uma dos quatro filhos do ator, Gabriela Parra. Ela faz uma campanha entre os amigos da classe artística com o objetivo de angariar recursos para manter o pai que se dedicou 40 anos à arte encarnando o Palhaço Carambola, entre outros papéis no teatro.
Poucos são os artistas como Miguel Pimenta, que se considera um homem de sorte. Profissional concursado, aposentado há dez anos da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) e, mais recentemente, da escola Pablo Komlós, o violinista diz que deve muito à Ospa. “Trabalhei bastante, conquistei muita coisa. Mas isso só foi possível pelo conforto proporcionado pela Ospa. A estabilidade é fundamental”, pontua ele que atualmente trabalha na Orquestra da PUCRS.
Para o violinista de 69 anos, a aposentadoria é a página legal usufruída, mesmo assim ressalta: “Um músico não se aposenta. Isso porque nós mexemos com o sentimento, com o lado emocional. A música entra no corpo como uma droga benéfica que nos inspira e nos faz viver melhor”.