Comida ultraprocessada, mais letal que a violência
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Todos os anos o receituário tende a se repetir: vendas da indústria de alimentos crescem no fim de ano – panetones e refrigerantes estão entre os produtos que puxam a alta.
Os ganhos são ampliados nas indústrias de grande porte. Em consequência, o saldo negativo é da saúde dos consumidores de alimentos ultraprocessados: em 2019, foram aproximadamente 57 mil mortes prematuras de pessoas com idades entre 30 e 69 anos. Ou seja, mais de 155 óbitos que ocorreram por dia naquele ano estão relacionados ao consumo de comida ultraprocessada.
As evidências integram o estudo do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), Fiocruz, Universidade Federal de São Paulo e a Universidad de Santiago de Chile, divulgadas no American Journal of Preventive Medicine em 2022.
É a primeira vez que a ciência revela esse tipo de dado. Só para se ter uma ideia do problema, no ano recortado o número total de mortes por homicídios no Brasil foi de 45,5 mil, conforme o Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
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Eduardo Nilson, pesquisador do Nupens/USP e um dos autores do trabalho, enfatiza que os resultados demonstram que os efeitos negativos da ingestão de ultraprocessados vêm crescendo ao longo dos últimos anos, “confirmando a associação desse consumo a mortes por todas as causas e por causas específicas, bem como risco de muitas doenças”.
A pesquisa, afirma o cientista, é fundamental pelo ineditismo e pela robustez das estimativas epidemiológicas relacionadas ao consumo de produtos altamente industrializados e por sua relevância para apoiar as recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde e, principalmente, na orientação das políticas nacionais.
Segundo Nilson, é preciso apoiar medidas que promovam escolhas alimentares mais saudáveis, incluindo as agendas regulatória e fiscal. A regulação da publicidade e a tributação seletiva, ou ao menos sem redução de impostos, dos produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente são caminhos a perseguir, sugere.
A comparação com outras causas de mortes, como homicídios, ajuda a dar uma dimensão do problema de saúde pública que os ultraprocessados representam e revela a necessidade de políticas efetivas para enfrentá-los, acrescenta o pesquisador.
Sem esse enfrentamento, diz, a realidade tende a piorar muito e se assemelhar ao que ocorre nos EUA e no Reino Unido, onde os ultraprocessados respondem por 60% do consumo de alimentos. No Brasil, esse tipo de comida oscila em 20% da dieta da população adulta.
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“Isso significa que a dieta dos brasileiros ainda é predominantemente composta por alimentos saudáveis (in natura e minimamente processados). Contudo, é necessário frear o consumo de ultraprocessados para que as doenças ligadas à alimentação não continuem a aumentar”, alerta.
Por serem de fácil acesso, práticos e mais baratos, os ultraprocessados geram muito lucro. As grandes empresas vêm expandindo rapidamente seu mercado nas populações mais vulneráveis, nas periferias e favelas do Brasil e da África. Nesse cenário, além do problema da qualidade, há o da quantidade, avalia a pesquisadora do Instituto de Nutrição da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Inês Rugani.
Embora o direito à alimentação esteja na Constituição, lembra a professora, muitas famílias não têm o suficiente para garantir uma alimentação mínima nem saudável.
“É preciso facilitar o acesso aos alimentos saudáveis na periferia, nas escolas, creches, com política pública, porque é uma questão de saúde pública”, sinaliza. Inês afirma que, em uma alimentação com esse enfoque, as crianças são as mais beneficiadas, pois auxilia na prevenção de obesidade e cáries, além de possibilitar a criação de hábitos mais saudáveis a partir da infância.
“Fome deve ser combatida com comida de verdade”, alerta Nilson. A coordenadora de pós-graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da Ufrgs, Raquel Canuto, acrescenta que a alimentação saudável também evita uma série de doenças crônicas, como obesidade e hipertensão, além de certos tipos de cânceres e depressão.
Nos estudos do Nupens/USP, por exemplo, isso ficou comprovado: o maior consumo de ultraprocessados está associado a riscos 25% maiores de mortes por todas as causas e 29% maiores para doenças cardiovasculares, 20% para depressão e 31% para diabetes.
Em um estudo clínico randomizado da equipe de Nilson, um grupo de pessoas consumiu ultraprocessados e outro, somente alimentos in natura e minimamente processados. Ao final de duas semanas, as pessoas do primeiro grupo apresentaram um ganho de peso de um quilo. Enquanto isso, o grupo que consumiu alimentos saudáveis perdeu um quilo.
Rotulagem: Anvisa se rende ao lobby da indústria
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Laís Amaral, coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), lembra que, em 2014, entidades e sociedade civil passaram a cobrar informações mais claras e inteligíveis nas embalagens dos alimentos processados e ultraprocessados.
A rotulagem nutricional foi finalizada em 2020, quando a Anvisa aprovou o selo frontal com a lupa “alto em” (açúcar adicionado, sódio, gordura saturada, etc). A nova norma só entrou em vigor em outubro de 2022.
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O prazo para a adequação da maioria dos produtos alimentícios com tais nutrientes críticos se encerraria em 9 de outubro de 2023. No mesmo dia, entretanto, a Anvisa publicou uma resolução (RDC nº 819/2023), prorrogando o prazo para outubro de 2024.
“Essa publicação foi uma surpresa para todos que acompanham de perto o tema da rotulagem. Só resta desconfiar e lamentar que, no apagar das luzes, a Agência tenha decidido atender a empresas que provavelmente foram ineficientes e descompromissadas com os direitos do público-consumidor e desinteressadas em cumprir uma importante regra”, reagiu o diretor de Relações Institucionais do Idec, Igor Britto.
Laís ressalta que a decisão não foi debatida com a sociedade e prejudica o direito de as pessoas serem informadas sobre o excesso de nutrientes críticos em produtos alimentícios.
“Essa atitude é danosa à reputação da agência reguladora, até então conhecida por ser técnica e independente”, avalia.
A professora aposentada da Faculdade de Medicina da Ufrgs Noemia Goldraich, que foi uma das principais mobilizadoras do processo de rotulagem no RS, classifica a decisão como retrocesso e uma imoralidade. “A luta é desigual. A indústria é muito poderosa e age onde menos se espera. É capaz de reverter até mesmo decisões já estabelecidas da Anvisa”, denuncia.