A mudança da polícia deve ser ideológica
Ascom/Assembleia Legislativa de São Paulo
Ascom/Assembleia Legislativa de São Paulo
O promotor público José Carlos Blat, titular da 10ª Promotoria do Patrimônio Público e Social do MP de São Paulo, fez inimigos barra-pesada em duas décadas de investigação de escândalos financeiros, todos envolvendo agentes públicos acusados de desvio de dinheiro público, corrupção e violência policial – Favela Naval, Fiscais, Pirataria, Bancoop. Agora, é um dos promotores que investigam a Siemens e Astom por formação de cartel com ramificações nos governos Mario Covas, Geraldo Alckmin e José Serra. Fora a Veja, que ele já processou por calúnia, o promotor diz que é odiado por policiais, políticos e figura como o quinto pior inimigo do PCC. “Os ataques sempre são indicativo de que a investigação está no caminho certo”, provoca Blat nesta entrevista, em que resgata o impacto do livro que escancarou a corrupção e a violência policiais no caso da favela Naval e defende uma reforma da segurança pública, com extinção da PM e criação da polícia única.
Extra Classe – A parte final do livro O caso da Favela Naval – Polícia contra o povo, que o senhor escreveu em 2000 em coautoria com o jornalista Sérgio Saraiva, propõe a extinção das estruturas policiais existentes no país e a criação de uma nova polícia. O que justifica a proposta de uma reforma nas polícias?
José Carlos Blat – No caso da favela Naval foi possível demonstrar o que acontece entre quatro paredes de um quartel da Polícia Militar ou nas dependências de uma Delegacia de Polícia em que determinados crimes que envolvam policiais são acobertados por um espírito corporativista que não tem mais lugar no Estado Democrático de Direito. Por outro lado, através de levantamentos realizados pelo coautor do livro, o jornalista Sérgio Saraiva, foi possível verificar a total ineficiência do instrumento de investigação pelos denominados inquéritos policiais. Na época da pesquisa foi possível chegar ao número da ineficiência policial, pois, 97,5% dos crimes cometidos ficaram sem solução. A reforma deve ser estrutural, com a criação de uma única polícia e também acompanhada de uma mudança legislativa abrangendo instrumentos investigatórios mais eficientes com a efetiva participação do Ministério Público na coleta da prova como ocorre em países desenvolvidos. O modelo brasileiro de estrutura policial com o inquérito policial só é encontrado em alguns países da África.
EC – Em se tratando de violência e impunidade policiais, mudou alguma coisa no país desde o lançamento do seu livro?
Blat – O episódio da favela Naval foi um marco histórico na questão da violência policial. As imagens gravadas pela câmera do cinegrafista amador passaram a ser os olhos de toda a sociedade, que assistiu em horário nobre e em rede nacional o que acontecia nos becos espalhados pelo Brasil. A visão distorcida até então estabelecia que a Polícia Militar trabalhava dentro da legalidade e que o uso da força e de armas eram necessários para coibir a criminalidade. Isso caiu por terra. Muitos policiais foram desmascarados e começaram a ser vistos com desconfiança. De lá para cá algumas coisas mudaram. Por exemplo, podemos mencionar em São Paulo a criação da matéria de direitos humanos, obrigatória na Escola de Oficiais da PM paulista. Recordo que fui convidado para dar a aula inaugural na aludida matéria e foi um episódio bizarro, pois os oficiais da polícia à época se posicionaram com muita resistência ao cenário que obrigava uma mudança de postura de toda a Polícia Militar em São Paulo. Com o escândalo da favela Naval foi instaurada uma CPI na Assembleia Legislativa para discutir a violência policial e chegou-se à conclusão (óbvia) de que a Polícia Militar aquartelada ao sair às ruas na época visava combater o inimigo e não proteger a sociedade.
“A sociedade clama por uma reforma profunda no sistema de segurança pública em âmbito nacional, como aconteceu na Inglaterra: com a corrupção na Scotland Yard foi deliberada a extinção daquela força policial, com a demissão de todos os policiais e a criação da New Scotland Yard”
EC – Mas a violência policial só aumentou, como mostram as ações da PM paulista e de outras capitais durante manifestações de rua.
Blat – Atualmente, com as manifestações populares no histórico mês de junho de 2013, a violência policial serviu como estopim a insufiar ainda mais a população a sair nas ruas pedindo as reformas no sistema político, no combate à impunidade e à corrupção. A repressão violenta da polícia aos movimentos sociais é baseada na luta contra um inimigo e não na efetiva proteção da sociedade, aí que está a distorção. A mudança deve ser ideológica como foi a mudança do Ministério Público na Constituição Federal de 1988, que foi transformado de acusador oficial do Estado para defensor da sociedade. De promotor público, para promotor de justiça.
EC – Como seria essa nova polícia?
Blat – A sociedade clama por uma reforma profunda no sistema de segurança pública em âmbito nacional, como aconteceu na Inglaterra: com a corrupção na Scotland Yard foi deliberada a extinção daquela força policial, com a demissão de todos os policiais e a criação da New Scotland Yard. No Brasil, precisamos pensar nessa nova polícia. Não tenho a fórmula pronta, mas acredito que a reforma deve passar pela verificação do modelo inglês, francês, espanhol e americano e adequar as nossas leis, em especial ao que dispõem os artigos da Constituição Federal no que tange às garantias individuais de todos os cidadãos.
EC – A que instituição ela seria subordinada?
Blat – O sistema político interfere diretamente no funcionamento das polícias civil e federal, isto porque os chefes dessas instituições são escolhidos pelos chefes do poder Executivo estaduais e federal, respectivamente. Os policiais não possuem garantias constitucionais para investigar casos que impliquem políticos e poderosos. Por isso, acredito que um novo modelo deve ter a subordinação da polícia judiciária ao Ministério Público que, por seu turno, precisa estar próximo à polícia para a produção de provas visando a condenação de criminosos.
EC – Acredita que seria possível promover uma reforma na segurança pública com os congressistas que temos?
Blat – Infelizmente, podemos afirmar que nossos políticos não têm interesse nessa mudança profunda por razões que conhecemos. Não têm interesse em colocar a polícia no próprio encalço…
EC – No caso de uma reforma, policiais na ativa seriam mantidos? Como seriam os critérios de ingresso e progressão?
Blat – Uma nova polícia representaria um novo concurso com uma seleção rigorosa e nada impediria o aproveitamento dos policiais, desde que preencham os requisitos para ingresso. Mas isso tudo é apenas uma de muitas hipóteses que devem ser estudadas e discutidas por toda a sociedade. Não se pode também conceber uma fórmula pronta de reforma, todos os operadores de direito deveriam discutir um novo modelo de segurança pública no país.
EC – Um dos argumentos de quem defende a existência de duas estruturas policiais no país é a separação entre policiamento ostensivo e preventivo (PM) e investigação (Polícia Civil). Isso procede?
Blat – Essa divisão de polícia investigativa e polícia ostensiva pode ser estabelecida dentro de uma única polícia, com divisões internas. Aliás, essa divisão já é verificada, por exemplo, na Polícia Militar em São Paulo, que possui divisões de Inteligência que realizam investigações policiais no denominado serviço reservado. Do mesmo modo, se verifica essa divisão na Polícia Civil de São Paulo, sendo que existem divisões de caráter meramente repressivo que não realizam investigações policiais, como é o caso do Grupo Armado de Operações Especiais (GOE), que usam fardas e realizam policiamento ostensivo. Tudo isso depende de uma corajosa reforma do aparato policial com a participação de toda a sociedade.
EC – Investigar é tarefa da polícia, do Ministério Público ou de ambos?
Blat – Investigação é tarefa do Estado, através de seus órgãos policiais e do Ministério Público que é titular da ação penal. Aliás, qualquer pessoa pode realizar investigações criminais. A investigação não pode ser exclusiva de um determinado órgão. No Brasil, podem realizar investigações os advogados nas ações penais privadas, como a concorrência desleal, crimes contra a propriedade imaterial; os fiscais de renda e tributários municipais, estaduais e federais ao verificar ações de sonegadores. Mas não é só: os inspetores do Banco Central, ao verificarem desvios em bancos e outras instituições financeiras, também têm essa prerrogativa. Os deputados estaduais e federais e os senadores, através das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs); a própria administração pública, direta ou indireta, através de sindicâncias e processos disciplinares, verificando a conduta de funcionários públicos. Enfim, no Brasil todo mundo pode e deve investigar, mas para alguns, só o Ministério Público não poderia investigar. A razão disso tem relação direta com os resultados obtidos nos últimos anos pelos promotores de Justiça e procuradores da República, que têm alcançado políticos corruptos, empreiteiros etc.
EC – Como o Estado lidaria com a insubordinação, a cultura de violência contra a população civil, o corporativismo e a sensação de impunidade que impera entre policiais civis e militares?
Blat – A acirrada disputa entre as polícias revela o forte corporativismo arraigado nessas instituições e a defesa que se impõe não é em nome da sociedade brasileira, mas das aludidas classes policiais. A insubordinação acabaria com a existência de uma única polícia e com um comando único sem vinculações políticas. O chefe de polícia seria escolhido internamente, sem qualquer ingerência de governantes.
Fernando Bocalari / Assessoria de Comunicação MP-SP Fernando Bocalari / Assessoria de Comunicação MP-SP
Blat – A violência policial não ocorre apenas no Brasil. Os aparatos de repressão policial se desenvolvem de acordo com a estrutura social ou com a necessidade de impor um Estado forte e uma sociedade fraca. A violência policial é consequência de uma série de fatores políticos, legislativos e judiciais. A lei de tortura, por exemplo, só foi sancionada depois do episódio da favela Naval. Aliás, os policiais de Diadema foram punidos por abuso de autoridade e não pela tortura praticada, por falta de legislação. A Lei 9.455, de 07 de abril de 1997, foi sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, que mandou a lei para o gabinete do Procurador Geral de Justiça de São Paulo e, em retribuição, enviamos ao presidente uma cópia da denúncia contra os policiais da favela Naval, que assim foram acusados naquele mesmo dia. O instrumento legal que existia para coibir a violência policial era a lei de abuso de autoridade, cuja pena é ridícula, pois vai de dez dias a seis meses de detenção. Um absurdo!
EC – Qual o sentido de o país manter uma Polícia Militar criada à época da ditadura militar e com uma cultura explícita de repressão ao cidadão e historicamente em rota de colisão com outra Polícia, a Civil?
Blat – Enquanto a população for enxergada como inimiga e a Polícia Militar estiver aquartelada, com disciplina similar à das forças armadas, continuaremos verificando distorções e abusos. Em muitos países, o que se tem é uma divisão interna, como é o caso da Swat e os demais departamentos de polícia que integram o sistema norte-americano. Mas é necessária a estrita observância de nossa legislação, especialmente a Constituição Federal.
EC – Aí teríamos uma polícia cidadã e não a serviço da segurança nacional.
Blat – Se na Constituição Federal de 1988 os nossos constituintes tivessem pensado na criação de uma polícia que defende a sociedade e não o Estado, certamente hoje teríamos uma polícia menos violenta e menos corrupta.
“Os aparatos de repressão policial se desenvolvem de acordo com a estrutura social ou com a necessidade de impor um Estado forte e uma sociedade fraca. A violência policial é consequência de uma série de fatores políticos, legislativos e judiciais”
EC – Sofre represálias pelas denúncias contidas no livro ou por sua atuação como promotor no combate à ação criminosa de policiais?
Blat – As ameaças foram muitas, inclusive em situações que punimos policiais violentos e corruptos em diversas investigações realizadas ao longo desses 20 anos que atuo como promotor de Justiça. Toda vez que realizo alguma investigação envolvendo agentes públicos e, por conseguinte, dinheiro público, aparecem os críticos de ocasião tentando desqualificar a investigação colocando sob suspeita a minha pessoa. Estou acostumado a esses ataques. Aliás, o termômetro das investigações é o volume de ataques pessoais que sofro durante uma investigação. Assim, quanto mais me atacam, maior é o meu convencimento de que estou seguindo pelo caminho certo na investigação. A revista Veja, em 2006, colocou uma matéria baseada em denúncias anônimas e em fatos plantados por pessoas que foram alvo de minhas investigações ao longo de minha carreira. Aliás, tudo aquilo que foi mencionado na matéria jornalística foi analisado pelo procurador geral de Justiça e pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo e foi determinado o arquivamento por se revelarem absurdas. Se existisse uma mácula sequer em minha conduta profissional ou pessoal, pela quantidade de inimigos que acumulei nestes anos, já teria sido punido. Aliás, hoje sou odiado por muitos policiais militares, policiais civis, militantes dos partidos políticos do PP, PT, PMDB, PSDB, PTB e outras siglas. Isso sem contar que sou o número 5 da lista de inimigos do PCC. Enfim, tudo isso faz parte da atividade no combate à corrupção, impunidade, violência policial etc. Me lembro que quando ingressei na carreira ouvi do procurador geral de Justiça que o promotor não pode exercer suas atividades embaixo de uma cama, acovardado.
EC – Como reage a setores da imprensa que o qualificam como “midiático”, a exemplo daVeja?
Blat – Assim: se me chamam de midiático respondo que na verdade dou publicidade a todos os fatos investigados porque devo satisfação a quem paga meu salário, que é a sociedade. A informação é fundamental na manutenção do Estado Democrático de Direito.
Nota do Editor: o livro O caso da favela Naval (Ed. Contexto), do promotor José Carlos Blat e do jornalista gaúcho Sérgio Saraiva, citado na entrevista, foi um dos ganhadores do Prêmio Jabuti de Reportagem em 2001.