Antidemocracia não se sustenta
Foto: Igor Sperotto
Antecipando-se às manifestações pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff agendadas para o domingo de 15 de março, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), União Nacional dos Estudantes (UNE) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) organizaram na sexta-feira, 13, o Ato Nacional em Defesa da Petrobras, dos Direitos e da Reforma Política, que mobilizou 23 estados e o Distrito Federal. Também identificado como Dia Nacional de Lutas, o movimento no Rio Grande do Sul e no Tocantins foi antecipado para o dia 12 para agregar outras mobilizações como, no caso gaúcho, 4 mil pequenos agricultores acampados em Porto Alegre.
A pauta inicial de defesa da Petrobras e críticas ao ajuste fiscal anunciado pelo governo agregou a defesa da democracia e a reforma política. No RS, o movimento reuniu, de acordo com a CUT, mais de 12 mil pessoas e, em São Paulo, no dia 13, em torno de 100 mil manifestantes. Diante do Palácio Piratini, dirigente nacional do MST, João Pedro Stédile, encerrou o ato em Porto Alegre, lembrando a Campanha da Legalidade. “Em 1961, a burguesia brasileira quis dar um golpe e, nesta praça, Brizola iniciou a Campanha da Legalidade e garantiu a posse de Jango. Depois, em 64, eles conseguiram dar o golpe. Não aceitaremos um golpe. Então, se preparem, engraxem as chuteiras que o jogo está só começando. A luta de classes está se agudizando no Brasil”, advertiu.
ÓDIO – De fato, no domingo, 15, manifestações de ódio, como dois bonecos simbolizando Lula e Dilma Rousseff dependurados pelo pescoço em um viaduto em Jundiaí, no interior paulista, onde a sede do PT foi incendiada, permearam os protestos da classe média, a maioria vestida com camisetas da Seleção Brasileira, pedindo a deposição da presidente por impeachment ou intervenção militar. As manifestações tiveram ampla cobertura dos meios de comunicação, destaque para a Rede Globo, que mobilizou toda sua equipe de jornalismo país afora, enfatizando o caráter “pacífico”, “ordeiro” e “familiar” do “movimento”, associando-o à “defesa da democracia”. Desde as primeiras horas da manhã estabeleceu-se uma polêmica em torno do número de manifestantes nas ruas.
Contrapondo estimativas da Polícia Militar com a contagem dos organizadores, as capitais e mais 125 cidades teriam mobilizado entre 877 mil e 1,7 milhão de pessoas, segundo a cobertura dos meios de comunicação, o que foi desmentido às 19h pela própria Folha de S. Paulo ao divulgar pesquisa do Datafolha: “Ato levou 210 mil à Paulista”, estampou o jornal. Um público bem inferior a outro evento reacionário, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que antecipou o golpe militar de 1964. Também não faltaram manifestações de falta de memória, a julgar pelo comportamento antagônico de alguns “revoltosos” e conteúdo de certas mensagens pregando “democracia e volta do regime militar” numa só frase. De Che Guevara a Paulo Freire, não faltaram ícones da esquerda que tiveram seu pensamento grosseiramente distorcido para engrossar os protestos antiPT e antiDilma ou que foram hostilizados pelos descontentes.
Foto: Igor Sperotto
SURREAL – “Dos aspectos surreais e insólitos das manifestações de domingo, o que mais me impressionou foi um grupo de verde e amarelo (eles viram nacionalistas nesses momentos) cantando ‘Para não dizer que não falei de flores’, do Geraldo Vandré. Neste momento me dei conta do que a manipulação, intencional ou não, pode fazer. Vandré foi um dos intelectuais mais perseguidos pela ditadura militar”, anotou em sua página de uma rede social o jornalista Celso Schröder, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas. Para o sociólogo e cientista político Emir Sader, a direita está cansada de perder eleições, acena com golpe ou com impeachment, ou o golpe branco, como ocorreu em Honduras e no Paraguai em processos que estavam apenas começando e que não haviam se consolidado politicamente.
“No Brasil e na Argentina, a direita tem uma longa tradição golpista. Ela se constituiu na oposição às maiores lideranças populares desses países no século 20 – Getúlio e Perón – e por isso têm fortes ranços elitistas, racistas, oligárquicos, entreguistas. Nunca se conformaram em ver países que consideravam seus serem governados por líderes com forte apoio popular”, afirmou em artigo publicado no dia 2 de março na Rede Brasil Atual.
Foto: Robson Fernandjes/Fotos Públicas
Despolitização e negação da democracia
As manifestações fazem parte do jogo democrático, exceto aquelas que se voltam contra a democracia e pregam o golpe, analisa o professor da pós-graduação em Ciência Política, da Ufrgs, Fabiano Engelmann. “Não há grupos organizados politicamente que preguem soluções fora da democracia”, contrapõe. Integrante do Núcleo de Estudos em Justiça e Poder Político da universidade, Engelmann avalia que a mobilização organizada pela CUT trouxe uma pauta de reivindicações mais organizada por ser um movimento liderado por movimentos associativos, sindicatos, entre outros, que têm maior inserção no debate político. “Também por se tratarem de manifestações que tinham o propósito de evidenciar apoio ao governo, houve a preocupação de apresentar demandas organizadas e pontuais”, pontua Engelmann.
No caso das mobilizações do dia 15, explica o cientista político, de uma parte, trata-se de movimentos que não estão vinculados a associações ou sindicatos com grande expressão política. “Têm maiores características espontâneas, são mais ‘despolitizadas’ poder-se-ia dizer, no sentido de não apresentarem uma pauta de reivindicação pontual, são movimentos de contestação das práticas políticas, dos partidos e, em alguns casos, da própria democracia”. As mobilizações de 15 de março “expressam o discurso dos opositores ao governo atual, das forças derrotadas no segundo turno da eleição presidencial, mas mesmo nesse caso, não fica evidente uma liderança nítida dos partidos de oposição nessas manifestações”.
INSTITUIÇÕES – As pautas antidemocráticas, como a ideia de pedir o impeachment e intervenção das forças armadas, diz Engelmann, remetem a uma ideia de desgaste das instituições políticas representativas, à deslegitimação dos partidos políticos e até a uma contestação do resultado das eleições presidenciais. “O impeachment só é cabível em caso de crime de responsabilidade da presidência, do qual não há até o momento nenhum indício. A ideia de intervenção militar é completamente absurda, expressão máxima da despolitização, da negação da democracia”, sentencia.
Para o professor da Ufrgs, o conflito é expressão do regime democrático. “O avanço de conquistas importantes para inclusão de minorias sociais do ponto de vista econômico, político, cultural, sem dúvida gera reações em outros setores mais conservadores. Trata-se de uma batalha política e também simbólica, cultural. Adiciona-se a isso o crescimento de bancadas organizadas no Congresso identificadas a crenças religiosas com posturas expressamente contra a inclusão desses segmentos da sociedade”.
TERCEIRO TURNO – A tentativa de associar a presidente da República à corrupção por parte de setores reacionários e mesmo as críticas dos movimentos sociais que colocam o governo contra a parede representam um desgaste real e um custo alto para a sociedade. E pedem uma redefinição de rumos ao governo. “Todo regime político tem problemas de corrupção em graus que variam conforme o histórico político e de culturas. A diferença é que em regimes democráticos com instituições de controle público que combatem a corrupção, como Ministério Público, controladorias, imprensa livre etc., a corrupção aparece, em regimes autoritários ela não aparece”, define. Para Engelmann, a tentativa de terceiro turno buscou se legitimar em um quadro de crise econômica. “Entendo que o quadro é grave. Temos uma tentativa de terceiro turno das eleições presidenciais, associada a uma crise econômica. Então, em termos de legitimidade política é um custo alto para a presidente ser identificada como a ‘chefe da corrupção’ do país. O governo poderá reverter essa imagem e evitar a desestabilização do país na medida em que conseguir recompor a coalizão que sustenta o governo no Congresso, e com melhores resultados econômicos. Foi isso, por exemplo, que fez o governo Lula, em outra conjuntura: sobreviver ao bombardeio do ‘escândalo do mensalão’, constata.
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
Negação dos avanços sociais
Neste ano, o país completa 30 anos de processo democrático, o mais longo período em 126 anos desde a proclamação da República. A insurgência de movimentos de direita e o avanço do pensamento de extrema direita seriam uma ameaça à democracia ou trata-se de um momento de instabilidade própria do seu amadurecimento? Para o professor da Ufrgs, Fabiano Engelmann, são muitos os fatores que explicam as manifestações antidemocráticas. Engelmann explica que são muitas questões envolvidas, desde a proliferação das manifestações por redes sociais onde o debate político em alguns casos vira uma espécie de debate futebolístico, até um desgaste mesmo das instituições representativas que ocorre pela excessiva fragmentação partidária, pela formação de coalizões, que embora necessárias no caso de sistemas presidencialistas, não têm nenhuma ideologia; pelo alto grau de práticas de corrupção que são cada vez menos toleradas pelos eleitores, pela oposição sistemática da grande mídia a um governo mais à esquerda. “Enfim, são muitos fatores que levam ao aparecimento de manifestações conservadoras que tendem a negar avanços sociais e a dinâmica conflituosa da democracia. Entretanto, creio que nesse momento não há uma ameaça ao regime democrático, visto que não há grupos organizados politicamente que preguem soluções fora da democracia”, conclui.
ACIRRAMENTO – Para o presidente estadual do PT, Ary Vanazzi, as mobilizações de junho 2013 e março 2015 “mostram a vitalidade da sociedade brasileira e de uma democracia participativa, na qual há espaço, inclusive, para bandeiras que vão contra a nossa democracia e a nossa história”. São acontecimentos que propõem um aprofundamento do processo democrático, “com a ressalva de que as manifestações por impeachment, cassação, intervenção militar estão fora do contexto”, diz. O dirigente vê um acirramento na luta política e de classes no país. “Isso traz de volta a luta social, pois há um projeto de disputa com a direita, que tem uma estratégia política de longo prazo. No meio está o governo, andando muito no fio da navalha e nós, do PT, tentando puxar o governo para a esquerda”, sinaliza. Foram muitos anos de equívocos, confidencia, referindo-se à crença em uma conciliação de classes e às alianças políticas. “Estamos pagando o preço por aquilo que a gente não fez, ou seja, nos adaptamos ao estado burocratizado, criado pela ditadura militar, que não é capaz de fazer políticas sociais. Não tivemos vontade política e não criamos as condições objetivas para fazer a ruptura”, avalia.
“É preciso reconhecer e respeitar o direito democrático das manifestações, sejam elas contra ou a favor de governos. Repudiamos manifestações que pedem o retorno do regime militar ou golpes institucionais, como o impeachment, sem base legal ou fato que o justifique. O ódio e a intolerância não devem ser armas do debate político. A democracia é a melhor arma”, acrescenta o deputado Henrique Fontana (PT/RS).