AMBIENTE

Um laboratório de novas formas de viver

Aquecimento global, poluição de águas, terra e ar, desmatamentos e outras ameaças ao planeta exigem novos tempos baseados em sustentabilidade ambiental. A ecovila que começou a receber seus primeiros habit
Por José Antônio Silva / Publicado em 24 de agosto de 2008

A um primeiro olhar, a impressão é de apenas mais um condomínio de classe média na Vila Nova, uma das poucas áreas rurais preservadas no perímetro de Porto Alegre. Quem prestar mais atenção, porém, logo perceberá que é muito mais que isso – a começar pelos telhados das casas, cobertos por plantas “ suculentas” ou por espelhos de água, onde vivem peixes e tartarugas, em meio a placas de energia solar. Ou se observar os filtros biológicos, formados por raízes especiais e areia, que começam a “transformar o esgoto das habitações em córregos paisagísticos”, como diz o arquiteto Otávio Urquiza, idealizador desta ecovila (ou mais precisamente Ecoovila 1) e coordenador da Arcoo, cooperativa responsável por todos os passos do projeto.

Baseado nos princípios da Permacultura – metodologia criada no final dos anos 70 pelo ecologista australiano Bill Mollison, que procura atender as necessidades básicas de uma comunidade de modo sustentável e eficiente, com baixo custo e evitando danos à natureza – pode-se dizer que esta Ecoovila 1 é uma espécie de laboratório vivo de novas formas de morar e interagir com o espaço cotidiano.

Do total de 28 casas previstas – com dois ou três dormitórios, e construídas com paredes duplas, trazendo isolamento e conforto térmico, no inverno e verão –, há 21 que já têm moradores, e mais duas famílias mudam-se em breve para lá. Outras cinco residências ainda serão erguidas.

Localizado numa das encostas da Vila Nova, a partir da rua João Passuelo, o terreno tem um dos seus 2,5 hectares tomado por uma mata nativa preservada (o Bosque do Silêncio) que se espalha por terrenos vizinhos. Na parte alta, ficam 16 casas; na parte baixa do terreno, situam-se outras 12, incluindo o prédio simples do escritório da Arcoo – bem próximo a um pequeno açude, hoje tomado por plantas, para tratamento das águas servidas e que será o desaguadouro futuro dos “córregos paisagísticos”.

Todas as residências, em tijolo aparente e com pouco menos de 300 m2 de área construída – com porão ou não, conforme a inclinação do terreno e a vontade do morador – seguem um padrão. Enquanto a camada de ar entre as paredes duplas evita o excesso de calor no verão e o frio extremo no inverno, um fogão-lareira no meio da sala do andar térreo, por meio das características da escada e por dutos internos, aquece todas as peças da casa. Um canteiro de ervas e temperos, pelo mesmo sistema, deverá espalhar por toda a casa um suave aroma natural.

TELHADOS VIVOS – A complementação do chamado “conforto térmico” é realizada pelos telhados vivos. No caso dos terraços isolados por água, há desde carpas até tartarugas e lambaris, entre outros peixinhos e plantas aquáticas.

Palavras como “complementar” e “integrado” surgem com freqüência nas explicações técnicas do arquiteto, e remetem de certo modo ao conceito de ciclos existentes na natureza. Assim, a captação de energia solar pelas placas e a reutilização e uso racional da água podem resultar em até 50% de economia financeira e de desperdício, e para os dois ou três meses do ano com céu encoberto e menor ensolação é utilizado – de forma complementar – um pequeno aquecedor a gás (“o menor do mercado”, reforça Otávio Urquiza).

Escorado num tripé formado por conceitos como “paisagismo produtivo”, “infra-estrutura integrativa” e “edificação solidária” – o projeto desta ecovila urbana enfrenta ainda alguns entraves com órgãos públicos, como a estranheza de funcionários com as soluções propostas, legislações rígidas e antiquadas – e burocracia. “Nosso poço artesiano com 120 metros de profundidade, por exemplo, está sendo aprofundado mais ainda. Acredito que sua utilização ficará para o futuro”, diz o arquiteto.

Já o Bosque do Silêncio, por cuja trilha na mata se faz a ligação entre as casas das partes alta e baixa do terreno, conta com um singelo minhocário, em um tonel cortado ao meio. Singelo mas eficiente – e integrado: as minhocas são alimentadas por resíduos crus de alimentos. E terminam servindo de chamariz para os pássaros. “Por aqui avistamos sempre aracuãs, pica-paus, sabiás, bem-te-vis e muitos outros”, informa o coordenador da Ecoovila. Lagartos, gambás, ouriços vivem ou circulam pela mata – e até as pegadas de um gato do mato já foram identificadas.

Agindo com critérios

O projeto não é fechado às iniciativas de seus moradores, claro. O engenheiro civil Carlos Eugênio Neves, 46 anos, cuja casa está quase concluída, já projeta: “Pretendo ter minha própria horta orgânica, fazer o tratamento residual de lixo e usar composteiras”. Casado, vai experimentar a nova vida com a mulher e a filha menor, de 9 anos. De olho no meio ambiente e no bolso, Carlos acredita que apenas com a economia com ar-condicionado, aliado ao uso da energia solar, a conta de luz deve baixar no mínimo 30%.

Água? Por sua conta, já mandou instalar dois diferentes botões nos vasos sanitários da residência, para três ou seis litros, dependendo do dejeto a ser excluído. E aí sua iniciativa soma-se ao projeto geral do condomínio, com a canalização e filtragem geral das águas servidas de modo natural, para o futuro “córrego paisagístico”, que formará um leito e receberá também a água das chuvas.

Carlos representa bem a média dos moradores da ecovila – professores, funcionários públicos, bancários e muitos profissionais liberais. A escolha deste local e destas características inovadoras de moradia, para este engenheiro, é coerente com o que acredita: “Busco qualidade de vida, mas com uma visão responsável do meio ambiente, agindo com critérios”, define.

Nascendo com uma nova consciência

Depois de cinco anos morando em Brasília, a administradora de empresas Patrícia Duarte, 34 anos, e o marido, o bancário Edson Schneider, ambos gaúchos, descobriram na proposta da Ecoovila em Porto Alegre, através da internet, a chance de levarem uma vida melhor e fazerem sua parte na preservação do planeta. Contou muito para isso, também, o projeto de terem um filho o quanto antes. “Acho que ele já vai nascer com uma consciência ecológica”, projeta Patrícia.

Hoje secretária da Arcoo, ela e o marido moram há quase três anos no condomínio da Vila Nova. “Para mim, no dia-a-dia, o diferencial é que aqui não tem a barulheira do trânsito, a gente consegue dormir em paz e o ar é puro”, diz. Mas as características específicas da ecovila lhe deram alguns encargos a mais: “Quase sempre eu é que cuido do telhado vivo. Eu me amarro ao telhado, tiro o inço, planto, podo as suculentas”… O marido cultiva uma horta perto da casa, com pimentão, tomate-cereja, rabanete, aipim, milho – e muitas flores.

Eles aprenderam a lidar com as tecnologias alternativas da proposta. As placas de captação solar garantem o aquecimento do chuveiro e de quase todas as torneiras da casa.

A chamada “água cinza” (usada dos banheiros) é encaminhada ao filtro natural que fica próximo à morada de Patrícia. “Serão instalados mais dois ou três filtros naturais para atender a todas as casas”, explica a secretária da Arcoo. “Assim, esta água servida vai para a rede de esgotos já despoluída”. Um dos próximos passos será a utilização da água das chuvas.

Olhando para as casas da ecovila, ela reflete: “Nós somos privilegiados por estarmos vivendo assim, e quanto mais este tipo de modo de vida se espalhar, melhor será para a cidade, para o país e para o planeta”. Que assim seja.

Operários também são sócios

De acordo com os princípios cooperativistas da Ecoovila, os 13 operários que erguem as residências também são cooperativados. “Somos associados, pois é uma cooperativa de moradia e de trabalho”, explica o mestre-deobras Everaldo Batista da Silva, 50 anos, morador do vizinho bairro de Belém Velho. Remuneração melhor, um serviço certo, seguro em caso de acidente e um fundo que arca com o valor do INSS, são algumas das vantagens trabalhistas que ele enumera.

“Mas posso te dizer que estou aprendendo muito aqui. Logo que eu cheguei, mentalizei as primeiras regras: não se corta uma árvore, não se mata um passarinho. Hoje os lagartos andam por aí sem medo da gente, parece que entendem que aqui não tem perigo”, relata Everaldo.

Fora das cercas do condomínio, as lições ambientalistas também geram resultados. “Lá em casa já botei uma calha no telhado para recolher a água da chuva, que cai num tonel. Ao invés de usar água tratada, que a gente paga, agora só lavo a calçada e o carro com essa água da chuva”, exemplifica. “Enfrentei dois desafios aqui: um profissional, por causa das diferenças no tipo de construção. E outro no jeito de defender a natureza. E tento ir passando essas lições para os meus três filhos. Às vezes, trago eles aqui para mostrar como é”.

Um modelo em expansão

O conceito criado nos anos 70 pelos cientistas e ambientalistas Bill Mollison e David Holmgren, na Austrália, a partir das palavras permanent agriculture, traduz uma ciência transdisciplinar. A idéia original – a auto suficiência doméstica e comunitária, em integração com a natureza conservada – hoje engloba e combina arquitetura com biologia, e agricultura com estudos de floresta e zootecnia.

Há milhares de ecovilas rurais e urbanas em mais de cem países, inspiradas pela Permacultura, que atualmente ainda abrange estratégias financeiras (como o cooperativismo) para garantir acesso à terra e autofinanciamento. Alguns dos países em que este conceito mais se difundiu são a própria Austrália, Alemanha, Portugal, Inglaterra, Nova Zelândia, entre outros.

Há dezenas de ecovilas e outras entidades de Permacultura por todo o Brasil, organizadas em oito institutos de Permacultura, incluindo o Ipers, no Rio Grande do Sul (fundado em 1998). Nosso estado tem ainda uma ecovila em Bagé e outra na região dos Aparados da Serra, em formação.

E a Arcoo já trabalha na implantação de uma ecovila rural, para 56 famílias de agricultores familiares, no vizinho bairro de Belém Velho, também em Porto Alegre, com ênfase na produção de uvas e vinhos, utilizando uma centenária tradição da região.

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