Esta paisagem pode desaparecer
Foto: Cristiano Hickel/Inga/Divulgação
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A construção da Usina Hidrelétrica de Pai Querê, prevista para o Rio Pelotas, na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina, entre os municípios de Bom Jesus (RS) e Lages (SC), é um projeto prioritário do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), no âmbito da geração de energia para o país.
Pai Querê tem investimentos projetados de R$ 968,2 milhões e deve gerar 2 mil empregos diretos, além de outros 6 mil indiretos.
O empreendimento será controlado pelo Consórcio Empresarial Pai Querê, constituído pela Votorantim (80,10%), DME Energética (4,50%) e Alcoa (15,34%). Há três anos organização não-governamentais e movimentos sociais lutam contra a construção da barragem.
Nesse período, foram feitos levantamentos de dados, expedições à região e análises sobre a importância ambiental e social do local, além da elaboração de documentos. acionamento judicial, seminários e mobilizações.
Se implantada, Pai Querê será a quinta hidrelétrica construída no rio Pelotas, região situada em uma zona-núcleo da reserva da biosfera da Mata Atlântica, nativas mundial, segundo a Unesco, onde pelo menos duas dezenas de espécies endêmicas de peixes e outros animais em extinção, além da flora, estão ameaçados.
A obra causará a destruição de 4 mil hectares de florestas e morte de mais de 3 milhões de árvores, sendo pelo menos 180 mil araucárias, uma das espécies ameaçadas de extinção.
A região ainda possui valor histórico e cultural, pois é onde se encontra o Passo de Santa Vitória, primeira alfândega entre os estados do RS e SC, no Caminho das Tropas, da é poca colonial, além de abrigar mais de 40 sítios arqueológicos. Tudo isso desaparecerá quando a UHE Pai Querê sair do papel.
Custo
Outro argumento contra o empreendimento é que ele geraria pouca energia frente ao seu altíssimo custo ambiental, pois seus 292 MW equivalem à geração do Parque Eólico de Osório, no RS, quando duplicado, bem como a menos da metade da média das demais hidrelétricas já construídas na bacia do rio Uruguai.
Por outro lado, segundo informações da assessoria de imprensa da Casa Civil, órgão que coordena e monitora o PAC, “o critério que orienta o planejamento dos empreendimentos é a expectativa da sociedade brasileira por crescimento econômico com desenvolvimento sustentável do país”.
O PAC somará R$ 1,1 trilhão de investimentos até 2010 e a intenção do governo é usar as obras contidas no programa para garantir um crescimento de 4% do produto interno bruto (PIB) em 2009.
Mata Atlântica ameaçada
Foto: Cristiano Hickel/Inga/Divulgação
Foto: Cristiano Hickel/Inga/Divulgação
A Mata Atlântica é um complexo conjunto de ecossistemas que abriga parcela significativa da diversidade biológica do Brasil. Segundo o IBGE (2005), 61% dos municípios brasileiros estão na Mata Atlântica; mais de 120 milhões de brasileiros, ou 67% da população brasileira, vivem nestes municípios (IBGE, 2007).
A última edição do Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica, feito pela Fundação SOS Mata Atlântica e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe, referente ao período de 2000-2005, mostra que o Bioma está reduzido a 7,26% de sua área original – 1,3 milhão de km² em 17 estados brasileiros.
Licenciamento ambiental
A questão do licenciamento ambiental se estende desde 2003, quando o primeiro Estudo de Impacto Ambiental (EIA-Rima) foi elaborado pela Engevix, empresa contratada na época pelo Consórcio empresarial.
O estudo foi contestado. Segundo pesquisadores da Ufrgs, ele era “incompleto e tecnicamente inconsistente”. Foram emitidos pareceres técnicos contrários à implantação da obra pela Fepam/RS, pela Fatma/SC e pelo Comitê Estadual da Reservada Biosfera da Mata Atlântica do RS.
Atualmente, Ibama aguarda o novo EIA-Rima para dar prosseguimento ao processo de licenciamento da obra. A Votorantim, majoritária no Consórcio, informou que empresa Bourscheid Engenharia foi contratada para realizar a “atualização”.
Questionada sobre os impactos ambientais, a empresa respondeu que “mantém a sua atuação pautada nos princípios da sustentabilidade e que possui políticas consistentes e eficazes de monitoramento e preservação do meio ambiente…”
O biólogo Marcio Rappening, da PUC/RS, lembra que ao contrário de Barra Grande, última Usina construída no Rio Pelotas, este é um local sobre o qual já se tem conhecimento referente à biodiversidade lá existente. “Fazer novo EIA é chover no molhado”, afirma.
O Ibama tenta se isentar de responsabilidade ao informar que a escolha da empresa para elaboração do EIA-Rima fica a cargo do Consórcio interessado na obra.
“A consultora contratada para elaborar os novos estudos para atualização do EIA não é de conhecimento do Ibama, nem cabe ao órgão indicar ou desabonar uma empresa”, disse Moara Menta Giasson, coordenadora de licenciamento de Hidrelétricas do Ibama.
A Bourscheid está subcontratando empresas para fazer partes do EIA, em função do prazo e da complexidade do trabalho. Uma delas é a Bioconserv, contratada para avaliar a fauna terrestre da região. O doutor em Ecologia pela Ufrgs e biólogo da Bioconserv, Iury de Almeida Accordi, confirma a contratação e o curto prazo.
“Um EIARima precisa de no mínimo um ano de estudos, para que se possa avaliar todas as variações climáticas da região. Há apenas duas semanas o Ibama aprovou nosso plano de trabalho e vamos fazer a primeira expedição para a região em maio“, contou. Ninguém soube informar ao certo quando ficará pronto o novo estudo.
Criação de refúgio se perde na burocracia
Na ocasião do processo de licenciamento da Usina de Barra Grande, aprovado em 2005, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) encaminhou processo para Casa Civil para decretar uma unidade de conservação denominada Refúgio de Vida Silvestre do Rio Pelotas e Campos de Cima da Serra, como garantia de compensação ambiental pelo lago da UHE Barra Grande, responsável pela destruição de 8 mil hectares de Mata Atlântica.
Em 2008, diversas audiências de consulta popular aconteceram em SC e no RS e o processo tinha aprovação prevista para outubro de 2008. O processo está parado no MMA, aguardando a atualização do EIA-Rima de Pai Querê.
“Baseados no EIA-Rima apresentado pelo Ibama no ano passado, não foi possível darmos um parecer fiel sobre a viabilidade do refúgio, por isso aguardamos a complementação”, explicou João de Deus, diretor do Departamento de Áreas protegidas do MMA. Entidades como a Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida (Apremavi), de Santa Catarina, apontam incompatibilidade entre a Hidrelétrica de Pai Querê e a criação do refúgio.
“É falsa a ideia de que se pode fazer um corredor de biodiversidade ao redor do futuro lago de uma barragem, porque estarão submersas as florestas que possuem a identidade genética das espécies da região, seja de espécies vegetais, seja de espécies animais. Não é possível se fazer um corredor de fluxo gênico sem as margens preservadas”, argumenta Miriam Prochnow, coordenadora de Políticas Públicas da Apremavi.
Relatório do Gepac aponta ações contra as obras
O Extra Classe teve acesso ao 8º Relatório do Grupo Executivo de Acompanhamento do Programa de Aceleração do Crescimento (Gepac), sobre o alto índice de ações judiciais contra empreendimentos do PAC. Nos últimos dois anos, foram 1026 ações em todo o país, sendo que 65% são provenientes da região Sul e, destas, 31,2% são do Rio Grande do Sul. Santa Catarina vem em segundo lugar com 31% das ações.
O maior número de ações — 780 casos — questiona o valor das indenizações por terras tomadas pelo governo federal. As desapropriações são frequentes principalmente para a construção de rodovias e hidrelétricas. O eixo temático de geração de energia elétrica é responsável por 21,1% das ações, em primeiro lugar ficam as rodovias com 51% das ações. Em relação ao número de ações por objeto da ação, 75% são por desapropriação por utilidade pública ou imóvel particular. Em segundo lugar, aparecem as ações por danos ao meio ambiente, com 6,5%.
Tudo é uma questão de manter…
Foto: Cristiano Hickel/Inga/Divulgação
Foto: Cristiano Hickel/Inga/Divulgação
Deslizando em uma canoa pelo afluente Lavatudo do Rio Pelotas, cercados pelo verde da Mata Atlântica, os biólogos Daniel Slomp e Virginia Talbot, o educador Mateus Raymundo da Silva e o estudante de Engenharia Ambiental Cristiano Hickel registraram com uma filmadora emprestada uma imagem de beleza perturbadora.
Está ali o canto dos pássaros, a serenidade do rio e a perfeita integração da natureza. Em uma sequência sob a luz indireta dos holofotes do sol, e ao ritmo do barco, se ouve Silva cantarolando baixinho, para não destoar do entorno, a música de Walter Franco:
“Tudo é uma questão de manter…a mente quieta, a espinha ereta, e o coração tranquilo”. As imagens fazem parte do projeto de vídeo que a ONG InGá Estudos Ambientais, do qual os três participam, está fazendo sobre a Barragem de Pai Querê.
A letra da música tem a ver com o objetivo da viagem e com o esforço de evitar a destruição da riqueza encontrada na mata. Durante quatro dias, em novembro de 2007, os três percorreram cenários de corredeiras e trilhas de um verde quase intocado, recolheram espécies e falaram com moradores que, em sua maioria, pouca ou nenhuma informação tinham sobre a hidrelétrica.
Inquietos, intranquilos e inconformados, os integrantes do InGá tentam conscientizar e alertar a população através de abaixo-assinados, informações no site e outras ações como o vídeo.
Esta foi a quinta visita ao local, e haverá outras para complementar o trabalho. O documentário, que deverá ser lançado ainda este ano, pretende mostrar à população os prejuízos que a hidrelétrica vai trazer ao equilíbrio ambiental da região.
“Achamos bromélias, orquídeas e indivíduos de xaxim Dicksonia sellowiana imensos, muito antigos, ameaçados de extinção”, explica Virginia. Exemplares das plantas foram levados para o herbário do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).
A ameaça já é visível
Foto: Cristiano Hickel/Inga/Divulgação
Foto: Cristiano Hickel/Inga/Divulgação
Mesmo antes da implantação da barragem, a ameaça já é visível. A floresta de araucária dos arredores está sendo substituída pela de pinus. Nem pomares os agricultores acreditam que vão poder plantar mais.
“Abaixo, em Barra Grande, foi construída uma barragem, e, mais para cima, a hidrelétrica do Passo da Cadeia também está prevista – se Pai Querê sair, o Rio Pelotas praticamente vai desaparecer, restando uma sequência de lagos, o que certamente impedirá a migração de peixes e mudará todo o ecossistema”, prevê Virginia.
Com a barragem, a água vai subir até 150 metros, deixando submersos exemplares que impressionaram os ambientalistas do InGá. “Isto aqui é um ancião das matas”, mostrou Silva, abraçado a um enorme xaxim.
“Eu me sinto num dos lugares mais inóspitos e maravilhosos do mundo”, arrematou, para depois afirmar:
“Se um biólogo (do governo) visse uma planta destas, jamais diria que pode ser alagado”.
O documentário captou as dúvidas de pessoas que vivem e trabalham próximo ao local da futura hidrelétrica.
“Quando encher o rio, a gente vai ter que sair, o problema é a indenização”, diz um morador. Incrédulo, ele há anos aguarda a prometida instalação da luz elétrica que ainda não chegou a sua casa.
“Admito que precisa energia, alguém tem que sofrer, mas hoje tem tanto meio… acho que não precisaria estragar a mata”, reclama outro.
Futuro prejudicado
Foto: Acervo/Inga
Foto: Acervo/Inga
Ali próximo, Sérgio da Silva Cardoso, mecânico de Vacaria, município localizado a 80 km do ponto onde será instalada Pai Querê, confirma a impressão passada pelo vídeo.
“Ninguém está sabendo de nada”, diz. Aos 66 anos, dos quais 30 anos vivendo na região, e influenciado por um filho biólogo que trabalha na Amazônia, ele tem a consciência de que, se não preservar o que resta da mata nativa, no futuro seus netos serão prejudicados.
Cardoso participou de duas das quatro audiências públicas sobre o refúgio da calha do Pelotas proposto para compensar a destruição da Mata Atlântica a partir da construção da Hidrelétrica de Barra Grande.
Durante os encontros, ouviu os donos de empresas de pinus reclamarem da diminuição das áreas de suas plantações e prefeitos revoltados com possíveis perdas econômicas. Ninguém mais falou do refúgio, nada foi feito até agora.
Por isso, está preocupado. “Ao atravessar a ponte para Santa Catarina, o que se avista do Rio Pelotas é apenas uma água suja e cheia de galhos.
E em Pinhal da Serra, próximo à hidrelétrica de Barra Grande, dizem que é um horror o que tem de mosquito e cerração”, comenta. Em Vacaria, pássaros típicos da araucária estão buscando as árvores da cidade porque a floresta está sendo derrubada. Pumas, que não entravam na área urbana, começam a se aproximar das casas.
A hidrelétrica vai destruir ainda mais, prevê Cardoso. Vai acabar com a travessia dos tropeiros pelo Passo do Rio, uma tradição de séculos.
“Não vejo as pessoas que trabalham com turismo e troperismo falarem sobre isso”, reclama. “Os únicos que estão de acordo são uns poucos fazendeiros que têm terras no penhasco e acham que vão receber uma grande indenização”, arrisca.
Mesmo sem EIA-Rima, o processo já começou. Em agosto de 2006, quando esteve visitando o local da Barragem de Pai Querê junto com um funcionário do Ibama, Cardoso fotografou a movimentação de máquinas em andamento, tirando pedras.
Quando viram que estavam sendo fotografados, os funcionários desligaram o motor e seguiram de canoa para outro lado do rio, no território de Santa Catarina.