Porto Alegre: uma cidade no limite
Foto: René Cabrales
Foto: René Cabrales
Dois assuntos de dimensões diferentes mas não menos impactantes na vida dos cidadãos ganham destaque neste final de ano: as mudanças nas leis ambientais estaduais e a revisão das normas que, em síntese, regulam a ocupação da capital, chamado de Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental.
O projeto de lei que pretende alterar profundamente o Código Estadual do Meio Ambiente está sendo analisado na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa e pode ir à votação a qualquer momento. A polarização dos debates, característica peculiar no estado, se dá entre ruralistas que defendem uma legislação menos punitiva aos produtores, e uma coalizão de ONGs ambientalistas e movimentos comunitários, que querem manter as leis como estão e até torná-las mais restritivas. Ambos contam com o apoio de entidades de classe e agentes públicos.
O outro tema diz respeito aos porto-alegrenses, o que não restringe a discussão aos limites da cidade, já que nos últimos anos Porto Alegre tem se notabilizado por exportar modelos de participação popular em políticas públicas, como o Orçamento Participativo, e por ser o berço do Fórum Social Mundial, que faz dez anos no próximo mês. Coincidência ou não, neste mês de dezembro, quando completa meio século o 1º Plano Diretor de Porto Alegre – e uma década o PDDUA em vigor – , os vereadores votam mudanças nessa legislação, que determinarão o futuro da capital e sua relação com seus habitantes e o meio ambiente pelo menos nos próximos 20 anos.
Foto: Maria Helena Sponchiado/Divulgação CMPA
FUTURO – A estimativa do Fundo de População das Nações Unidas é de que entre 60% e 75% da população mundial viverá em cidades até 2025 (UNFPA, 2007). Atualmente as cidades já contribuem com a contaminação global numa proporção superior a 75%, utilizando mais de 70% da energia consumida pela humanidade. Se não houver planejamento, o impacto social e ambiental pode se tornar insustentável.
Cidadania versus especulação
“Há muito tempo a cidade deixou de ser sustentável, e nossos filhos e netos vão pagar um preço bem alto pelo que está se fazendo agora”. A declaração é de um dos mais atuantes líderes dos conselhos representativos da sociedade gaúcha, o arquiteto e urbanista Nestor Ibraim Nadruz. E reflete seu desânimo com o processo de revisão do atual Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre.
O PDDUA foi aprovado em dezembro de 1999, mas só entrou em vigor em 27 de março de 2000. A votação das emendas na Câmara começou em 18 de novembro deste ano. No dia seguinte, as associações que compõem o Fórum Municipal de Entidades manifestaram indignação por verem rejeitadas suas emendas mais importantes, que reforçam o conceito de cidade sustentável. “O pesado lobby da construção civil cooptou a maioria dos políticos comprometida com seus financiamentos de campanha”, denunciaram.
Aos 81 anos, funcionário aposentado da Secretaria do Planejamento e ex-aluno de Edvaldo Paiva, Nadruz diz que está quase no seu limite: “A situação é muito difícil. Os arquitetos não se preocupam mais com a cidade, as construtoras se apropriaram da sua mercadoria. Estádios foram aprovados no apagar das luzes de 2008, com a justificativa da Copa de 2014, mas estão em desacordo com as leis ambientais. A Prefeitura anuncia portais da cidade sem debater com as comunidades. O metrô não vai sair e, ao que tudo indica, nem as propagandeadas ciclovias, que ficaram só no papel. A questão do solo criado, por exemplo, eu nunca vi a Prefeitura usar o dinheiro da venda na construção de habitações populares”, desabafa o conselheiro da Agapan e coordenador do Fórum de Entidades.
Foto:René Cabrales
Os 50 anos do primeiro plano diretor
Porto Alegre tem planejamento desde 1914, mas foi somente em 30 de dezembro de 1959 que foi concluído o 1º Plano Diretor (Lei 2.046). Foi a primeira cidade do país a ter seu crescimento disciplinado por um P.D., conjunto de diretrizes organizado pelo arquiteto Edvaldo Pereira Paiva, com a colaboração do arquiteto Demétrio Ribeiro. Dias antes, nesse mesmo ano, foi criada oficialmente a maioria dos bairros da capital: 56 dos 78 bairros existentes, pela Lei 2.022/07.12.1959. Ocupava a cadeira número um da cidade com mais de 600 mil habitantes, Tristão Sucupira Viana, então vice-prefeito da administração de Leonel Brizola. Viana governou a cidade por todo o ano de 1959, para que o companheiro do PTB pudesse se candidatar ao governo do estado.
O PD adotou o sistema de zoneamento, distinguindo o uso do solo para áreas residenciais e para atividades de comércio e indústria, e estabeleceu um sistema viário radiocêntrico – constituído de grandes artérias radiais e avenidas perimetrais. Uma faixa circular foi criada para facilitar a comunicação nos diversos distritos entre si, desde o Navegantes até o Cristal. Esse arco limitou o estudo do 1º Plano Diretor. As demais regiões foram incluídas nos anos seguintes como “extensões” do plano, em quatro etapas. Embora as alterações do Plano tenham se restringido às zonas mais intensamente edificadas, suas regras influíram no perfil das novas construções, definindo a altura dos prédios e taxas de ocupação dos terrenos.
ESTADO – Entidades denunciam retrocesso ambiental
Uma coalização de ONGs, movimentos sociais, conselhos e entidades de classe desencadearam em novembro uma campanha para convencer os deputados a retirar da pauta da Assembleia Legislativa o Projeto de Lei (PL) 154, que propõe alterações no Código Estadual do Meio Ambiente. Eles criticam a forma como foi elaborado o PL, “de maneira quase secreta”, havendo apenas quatro audiências públicas. Ele foi protocolado na AL em 16 de julho de 2009 pela Comissão de Agricultura, Pecuária e Cooperativismo, sob a liderança do deputado Edson Brum (PMDB).
A Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural) divulgou um manifesto onde enumera 14 motivos para rejeitar a proposta, que recebeu inimigos até mesmo de setores produtivos. O presidente da Agapan, Eduardo Finardi Rodrigues, diz que o objetivo é derrubar todas as conquistas históricas da área ambiental no estado. “Termina com nossas leis ambientais”, resume.
Rodrigues ressalta que o projeto despreza qualquer tentativa de agricultura sustentável e facilita a impunidade ao retirar do comando ambiental da Brigada Militar a competência para fiscalizar e autuar os infratores. “Fragilizar a legislação ambiental, retirar diversos conceitos sobre animais silvestres, estudos de impacto, áreas de preservação permanente (APPs), mata atlântica, patrimônio genético e zonas de transição, e reduzir o valor das multas. Isso demonstra um desrespeito total com a sociedade”, conclui.
O vereador Beto Moesch (PP), classifica o projeto como um dos maiores retrocessos na história do estado. “Além de ser ilegal, é uma afronta à cidadania”, denuncia. E destaca que entidades como Famurs, Crea e até mesmo Ageflor, ligadas às empresas florestais, já manifestaram contrariedade ao projeto. “Eles entendem que o Código Estadual do Meio Ambiente decorreu de mais de dez anos de um profundo debate e não pode ser modificado da noite para o dia”.
Foto: Divulgação/ MPRS
MP diz que PL é inconstitucional
O Ministério Público Estadual garante que o PL 154 é inconstitucional. De acordo com o promotor Júlio Alfredo de Almeida, coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente (Caoma), do MP, em caso de aprovação do PL 154, o MP deverá ingressar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) frente à Constituição Estadual e uma representação frente à ofensa à Constituição Federal.
“O projeto é uma ameaça à legislação ambiental gaúcha, que sempre foi uma referência nacional. Ele permite, por exemplo, que possam ser exploradas as APPs, que são áreas intocáveis. Vai se poder explorar nas áreas não impactadas até 5 metros de sua margem. Isso é uma agressão ao meio ambiente. Retira a proibição do corte raso e altera pontos que dão a impressão que as queimadas estão liberadas”, justifica. O promotor ressalta ainda que a proposta transformaria a polícia ambiental em mera segurança dos integrantes do Departamento de Florestas e Áreas Protegidas (Defap) e da Fepam. “Eles não têm condições de efetuar a fiscalização necessária”.
Oficiais da BM manifestaram repúdio ao projeto. Reclamaram que não foram ouvidos e sugeriram assegurar as funções de fiscalização da corporação. O major José Carlos Albino, do Comando Ambiental, classificou o PL 154 como um retrocesso no trabalho de mais de duas décadas da polícia ambiental contra abusos na natureza.
Deputado pede respeito ao produtor rural
O deputado Edson Brum (PMDB) ressalta que o projeto prevê a legislação ambiental com sustentabilidade, onde há respeito ao agricultor e ao meio ambiente. “As alterações são necessárias para os produtores, que não podem ser tratados como vilões”, defende o parlamentar, ressaltando que o projeto contempla, sem nenhuma alteração, um total de 241 artigos, outros 44 receberam pequenas modificações e 10 artigos são novos. Brum rebate as críticas de que o projeto não foi amplamente discutido com a sociedade. “A elaboração do projeto acolheu sugestões dos mais diversos segmentos, entre os quais da Fetraf, Fetag e Farsul que representam o setor produtivo, Sintargs, Sargs, Crea, Senge, representando a área tecnológica, bem como contemplou as sugestões de vereadores, prefeitos e do ministro Carlos Minc, num total de mais de 60 encontros. Tivemos também as quatro grandes audiências públicas realizadas em Santo Ângelo, Santa Cruz do Sul, Passo Fundo e Porto Alegre”.