O conflito da água
Essa desconfiança não é gratuita e deve expor ainda mais um conflito entre agentes e entidades que vivem do rio e são responsáveis pelo atual estado de deterioração. Basicamente, o conflito consiste em um jogo de empurra em relação às responsabilidades. Resume-se ao tipo de acusação que pesa sobre quem não fez nada para impedir que o rio chegasse ao estágio em que se encontra – à beira de um colapso – e quem poluiu. De um lado, empresários das indústrias calçadistas, metal-mecânica e das lavouras de arroz, usuários pesados da água, dizem que precisam gerar riquezas. De outro, agentes políticos dizem que têm feito a sua parte, investindo em tratamento de esgoto. Acima deles, ecologistas e o Ministério Público catalisam involuntariamente esse conflito ao cobrar mudanças, defendendo prisões e multas pesadas. Todos, no entanto, parecem convergir para um ponto: se nada for feito, e logo, a água ficará tão escassa que levará o Vale do Sinos ao colapso financeiro e ecológico.
Responsável por 25% do PIB gaúcho, o rio emite há anos alertas em relação à iminência de seu colapso. A água que falta nos meses de seca sobra na época das cheias, quando o rio transborda e provoca enchentes como a de 21 de julho. O Sinos e seu afluente, o Paranhana, saíram da caixa, provocando mortes e deixando centenas de pessoas desabrigadas nas suas margens. É assim quase todos os anos e uma das explicações para o fenômeno pode ser encontrada na parte alta do rio.
A disputa pelas águas e pela manutenção de uma qualidade opõe municípios, indústrias e lavouras de arroz. Na cabeceira do rio, entre Rolante e Campo Bom, num espaço de cerca de 60 quilômetros de leito, uma grande quantidade da melhor água que se podia dispor para consumo fica retida entre os meses de setembro e fevereiro, nos cerca de 2,2 mil hectares de arroz. Para os produtores, trata-se da Região da Planície Costeira Externa à Lagoa dos Patos. Se, há dez anos, o rio apresentava problemas de abastecimento nos meses de verão, depois do crescimento da área de lavouras de arroz essa situação piorou. Os 13 municípios banhados pelo Sinos consomem o equivalente a 20% de toda a água doce do estado. E o rio recebe apenas 2% de toda a água da chuva que cai anualmente. É um indicador importante de fragilidade. Se acrescentarmos que os cerca de 1,5 milhão de habitantes, 15% da população do estado, vivem nas suas margens, é possível dimensionar ainda mais os efeitos da degradação do rio.
Foto: Jackson Muller/ Ministério Público/ Divulgação
José Gallego Tronchoni, coordenador regional do Instituto Riograndense do Arroz (Irga) no Litoral Norte, assinala que o conflito pela água do Sinos só será debelado com investimentos. Para ele, o problema da escassez deve ser resolvido com investimentos públicos. São barragens a receita do representante arrozeiro para estancar o conflito. Armazena-se água nas cheias e inundam-se as lavouras de arroz a partir de setembro, quando os arrozais já começam a ser cultivados, para aproveitar a época de chuvas. “Essa água que passa para a Lagoa dos Patos e depois para o oceano não é consumida. Passa pela planta, evapora pelas folhas e entra no ciclo das águas. Chove depois aqui e ali. Se continuar como está, em dez anos não tem mais água”, alerta.
As bombas que retiram água do rio para o cultivo do arroz nas margens superiores são a mais impactante variável no jogo da autossustentabilidade e da geração de riqueza. Na parte baixa, situada entre Sapucaia do Sul e Canoas, o cultivo do arroz é de 2,8 mil hectares. Somando os 2,2 mil hectares de área da parte superior do leito, são 5 mil hectares de prejuízo. Na atual temporada, os arrozeiros reclamam que têm comercializado a saca de 60 quilos a R$ 22,00 ante um custo médio de R$ 29,00. Não seria o sinal de que é preciso diversificar em vez de apostar num cereal que dá prejuízo e responde por menos de 1% da produção global de arroz gaúcho?
A Agência Nacional de Águas (ANA), na Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil – Informe 2011 –, pela terceira vez consecutiva registrou que a agricultura é a maior responsável pelo consumo de água no Brasil. As irrigações respondem por 69% de todo o consumo nacional. Do total consumido, 986,4 metros cúbicos por segundo, 10% são de consumo urbano, 7% industrial, 12% animal e 2% rural.
O presidente do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos (Comitesinos), Silvio Klein, acredita que ainda resta tempo para ações de sustentabilidade. Klein aposta no Plano da Bacia do Sinos, um programa de conhecimento do rio. A proposta visa organizar o uso da água. Por exemplo, ao prever a redução da vazão em época de seca e determinar o que as várias indústrias, as lavouras e as populações das cidades banhadas pelo rio precisam fazer, muito pode melhorar. “É muito fácil termos estudos. O mais difícil é acordar e mudar nosso comportamento”, diz.
Rio infestado de agrotóxicos e sem peixes
Na manhã em que cerca de 15 toneladas de peixes apareceram mortos entre Sapiranga e Novo Hamburgo, em 1º de dezembro de 2010, técnicos da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Novo Hamburgo correram até a Prainha do Sinos, o Balneário Vítor Matheus Teixeira. Coletaram espécies de cascudos e violinhas e levaram a laboratório. As análises das brânquias dos peixes, 20 dias depois, determinaram que uma concentração de manganês 14 vezes superior ao aceitável havia causado a morte daquelas espécies consideradas das mais resistentes.
O manganês é um metal utilizado em sua forma iônica na composição de vários tipos de herbicidas e fungicidas. As conclusões do Dano Ambiental em Trecho do Rio dos Sinos – Relatório, avalizadas por técnicos da Prefeitura de Novo Hamburgo, expõem a utilização de herbicidas em lavoura de arroz localizada em Campo Bom. O comportamento errático dos peixes que nadavam para todos os lados e a facilidade com que eram capturados nas margens do Sinos prenunciaram a seguinte conclusão na página 37 do relatório: “variação e aumento na ordem de 14 vezes do teor de manganês e presença dos herbicidas ametrina, clomazone e simazine e do acaricida spirodiclofen”. São todos agrotóxicos utilizados para “melhorar” as condições de crescimento das lavouras de arroz.
O secretário de Meio Ambiente de Novo Hamburgo, Ubiratan Hack, diz que a responsabilidade foi do arrozal mais próximo do desastre, plantado em Campo Bom. “Na noite anterior, tinha chovido muito. De certo, a quadra de arroz ficou cheia demais e eles abriram. O herbicida vazou todo para o rio. Não era esgoto porque o rio estava cheio”, conclui ele.
O secretário de Meio Ambiente de São Leopoldo, Darci Zanini, diz que a origem do conflito pela água do rio está concentrada na grande produção e no baixo índice de tratamento do esgoto doméstico e também na lentidão do Comitesinos em preparar um estudo completo sobre a natureza e o efeito do consumo da água pelos diversos setores econômicos localizados na Bacia. E reivindica maior participação das prefeituras no Comitesinos. “O Comitê se atrasou muito. Só hoje buscam informações sobre o número de indústrias que consomem água do rio, os tipos, as lavouras. Não se sabe o consumo. Dos 32 municípios da Bacia do Sinos só têm quatro representantes de prefeituras no Comitê. É pouco”, alerta. Para Zanini, um rio como o Sinos não irá morrer. Afinal, são quase 4 mil quilômetros de arroios e rios menores que o abastecem, número de efluentes suficiente. “Não sou pessimista. A divergência central diz que o problema é o esgoto sanitário e isso já está começando a ser atacado”, argumenta.
Foto: Jackson Muller/ Ministério Público/ Divulgação