Cadê o Pró-Guaíba?
Foto: Ricardo Giusti/PMPA
Um dos projetos ambientais mais ambiciosos da história do Rio Grande do Sul está morto, abandonado em uma vala comum sem epitáfio nem túmulo para que seus entes queridos chorem a sua morte. Existe como um zumbi. Debilitado por escolhas equivocadas de sucessivos governos gaúchos. Os efeitos dessa crônica de uma morte ainda não anunciada se fazem sentir nos rios da maior bacia do estado. Se o Rio dos Sinos está em coma, e se ele, junto com o Rio Gravataí, figura entre os piores rios do país em qualidade da água, isto está diretamente ligado à opção por matar aos poucos o Pró-Guaíba. Não será surpreendente se estes dois rios roubarem o primeiro lugar no ranking da degradação do Rio Tietê, em São Paulo, num futuro próximo.
É fato que técnicos da área ambiental, engenheiros de obras de saneamento e até as instituições governamentais têm certo desconforto quando o interlocutor avisa que quer falar sobre o Pró-Guaíba. Também é fato que há um consenso: se o Pró-Guaíba fosse tocado como deveria a partir da década de 1990, as obras de saneamento básico da região hidrográfica de 86 mil quilômetros quadrados, nove bacias, cerca de 270 municípios, 7 milhões de habitantes e 86% do Produto Interno Bruto (PIB) gaúcho estariam bem mais adiantadas e evitariam desastres ecológicos sucessivos que se propagaram a partir da metade da década de 2000.
O projeto foi dividido em três módulos e apenas um foi concluído. Com 60% de investimento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), cerca de R$ 378,4 milhões, o programa iniciou e terminou no Módulo I. A parceria com o BID, iniciada em 1995, previa a contrapartida de 40% do governo do estado, em atividades de educação ecológica, recuperação de mata ciliar, garantia de mão de obra para tocar as obras de tratamento de esgoto doméstico. Na prática, três estações de tratamento de esgoto, uma na divisa entre Cachoeirinha e Gravataí e as outras duas nas zonas Sul e Norte de Porto Alegre, construção de unidades de reciclagem de lixo, monitoramento da água, ar e solo, investimentos em reflorestamento, na melhoria das condições do Parque Ecológico Delta do Jacuí e educação ambiental concentraram a primeira década de investimentos.
E parou por aí. A sinalização de que o Pró-Guaíba seria liquidado, mesmo com o interesse do BID em renová-lo e aportar mais recursos, tem data. O seu início foi em 2003. Na época, o governo Olívio Dutra passou a gestão do projeto da Secretaria de Planejamento (Seplan) para a Secretaria de Meio Ambiente (Sema). Na prática, o Pró-Guaíba deixou de ser um programa prioritário para viver das verbas de umas das secretarias estaduais menos prestigiadas em termos de aporte de recursos. Indicativos dessa redução drástica são os sucessivos recuos de verbas aportadas, segundo as peças orçamentárias dos governos que se seguiram. Se, em 2002, R$ 2,7 milhões haviam sido aportados para o Fundo Pró-Guaíba, no ano seguinte, o da passagem para a Sema, os valores começaram a desabar.
Em 2004, o repasse projetado caiu para 1,27 milhão e sofreu uma queda livre no ano seguinte. No segundo ano do governo Germano Rigotto (2005), a projeção de investimento no Pró-Guaíba caiu quase quatro vezes, chegando a R$ 345 mil. Em 2007, nova queda: no primeiro ano do governo Yeda Crusius, a projeção de receita e investimento chegou a R$ 8,7 mil e passou a zero em 2008.
ABANDONO – Em 2012, o governo Tarso Genro não previu aporte de recursos. O Fundo Pró-Guaíba, então, deixou de existir. Não há indicações da existência do cargo de diretor-executivo do programa e, nolink do site da Sema, um informe de poucas linhas recupera a história do programa. O Módulo I fora executado entre 1995 e 2005, tendo a última atualização sido feita há mais de um ano: às 10h35min do dia 15 de setembro de 2010.
Há um consenso de que a situação dos rios das nove bacias seria outra se o Módulo II fosse implementado a partir de 2005 e que os desastres ecológicos poderiam ter sido minimizados ou evitados. Entre 1999 e 2002, o atual presidente do Movimento Roessler Para Defesa Ambiental e técnico da Fepam (Fundação Estadual de Proteção Ambiental), Arno Kayser, acompanhou a evolução da implantação do projeto junto à secretaria-executiva como representante indicado pelas ONGs ambientais do estado. Hoje, Kayser lamenta que o Módulo II e suas 39 obras transversais – recuperação de mata ciliar, tratamento de esgoto doméstico etc. – tenha sido abandonado. “Os consultores do BID vinham aqui no estado e diziam que adoravam o projeto porque ele era transversal, atacava todos os problemas” conta Kayser.
Segundo ele, alguns problemas de ordem financeira, como a dívida pública do estado, no início da maturação e após a execução da primeira etapa, ajudaram a enterrar o projeto. Outro teria sido um estigma do que as obras de saneamento representavam como efeito nas urnas: políticos, sobretudo gestores públicos, não gostavam de enterrar canos, algo que os eleitores não viam, o que poderia resultar em um efeito quase nulo nas urnas. Isso mudou. Segundo Kayser, se fosse executado, o Pró-Guaíba, em 2012, deveria estar encerrando o segundo Módulo e entrando no terceiro. Depois das obras de tratamento de esgoto doméstico, chegaria o momento de interligar as residências no sistema, o que reduziria o impacto nos rios.
Diante do fim do projeto, Kayser tem um cálculo preditivo acerca do efeito da ausência de investimento. Se o Pró-Guaíba tivesse sido executado, muito provavelmente a situação do Rio dos Sinos seria outra. “O Módulo I foi executado em sete anos a partir de 1995. Se tivéssemos começado o Módulo II lá por 2004 ou 2005, hoje 39 obras provavelmente estariam prontas e não teríamos mortandade de peixes no Sinos em 2006 e 2007. “Acredito também que as praias da Zona Sul, de Porto Alegre, a partir de Ipanema, também teriam balneabilidade”, diz.
Foto: Guilherme Santos/PMPA
Notícias de um atraso
Algumas questões sobre o Pró-Guaíba ainda esperam por respostas. O governo do estado investiu tudo que deveria investir? Sua contrapartida de 40% foi cumprida? O sistema de tratamento de esgoto na Região Metropolitana está atrasado? O que se sabe é que, segundo os valores investidos e atualizados pela cotação do dólar atual, o BID cumpriu à risca sua parte. Aportou recursos da ordem de quase R$ 400 milhões e os sucessivos governos do estado teriam investido cerca de R$ 155 milhões até 2005, cerca de 34%. A partir de 2005, então, faltaria investir em torno de R$ 25 milhões. Registre-se que a soma dos repasses previstos para o Pró-Guaíba nos últimos oito anos chegou a algo em torno de R$ 500 mil. O que se sabe é que a Lei 11.445, de 5 de janeiro de 2007, a chamada Lei do Saneamento, estabelece como limite para a universalização o ano de 2030. Até lá, os governantes terão que universalizar todo o tratamento de esgoto doméstico e industrial antes de ser lançado nos recursos hídricos naturais. O efeito dessa lei foi estilhaçar os investimentos em saneamento básico no Rio Grande do Sul. Desde o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), as prefeituras, em parceria com os governos federais e estaduais, passaram a tocar as próprias obras de saneamento. Um dos exemplos é o Projeto Integrado Socioambiental (Pisa), em Porto Alegre. Orçado em 586,7 milhões tem, ironicamente, financiamento do BID, da Caixa Econômica Federal e uma contrapartida da Prefeitura, a partir do ano 2000, quando os investimentos no Pró-Guaíba começaram a despencar. Desde o ano passado, a chegada de 22 tubos de 1,60 metros de diâmetro e 515 metros cada foi a parte mais visível da implantação desse projeto junto com uma Estação de Bombeamento na Zona Sul. Mais irônico ainda é que obra de concepção semelhante estava prevista para ser implantada no Módulo II do Pró-Guaíba.
Outra dimensão do atraso: se o Módulo II do Pró-Guaíba tivesse sido executado, muito provavelmente a fase de ligação das residências ao sistema coletor de esgoto cloacal e doméstico estaria adiantada. Ela nem começou em Porto Alegre. Constitui a segunda fase do Pisa. Responsável pela obra, o Dmae (Departamento Municipal de Água e Esgoto), por meio de sua assessoria, prefere não comentar o efeito do fim do Pró-Guaíba. Mas admite. O nó da questão estaria vinculado à terceira etapa daquilo que o Pró-Guaíba não executou: interligar as 75 mil unidades residenciais de Porto Alegre que ainda faltam ao sistema coletor que recém começa a ser implantado. O preço do investimento para universalizar o tratamento de esgoto doméstico na capital? O Dmae calcula a necessidade de outros R$ 1,2 bilhão. Isso porque a execução de rede coletora por uma unidade residencial, em média, custa R$ 1,2 mil. O preço a ser pago terá consequências na tarifa de água. Será necessário acrescentar valores. Especialistas ouvidos calculam que, diante do fato de que cerca de 80% da água consumida em uma residência vira esgoto, o custo do tratamento incidiria na elevação proporcional da tarifa. Portanto, se um consumidor paga R$ 10 pelo uso da água, estima-se que passaria a pagar R$ 18 pelo seu tratamento. Mais um motivo de o Pró-Guaíba ter sido encerrado: qual político assumiria o ônus de aumentar a tarifa?
O exemplo do Pró-Tietê
Foto: Igor Sperotto
Há um rio sobre o qual recai todo o tipo de preconceito e ojeriza. O Tietê, este é aquele que é considerado pela Agência Nacional das Águas (ANA), o pior rio do país, no entanto, tem sido tomado como exemplo por ecologistas no que diz respeito à sua recuperação. Por analogia, o Pró-Tietê seria um irmão gêmeo do Pró-Guaíba, mas aquele irmão bem-sucedido. Desde 1998, quando o projeto foi pensado e apresentado ao BID, até 2012, foram investidos cerca de R$ 3 bilhões na recuperação da Bacia do Tietê. Duas etapas foram cumpridas totalmente, segundo a assessoria de imprensa da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) até 2008. E uma terceira está programada para atingir metas até 2015.
Os benefícios começam a aparecer. Na etapa anterior, foram realizadas, segundo a Sabesp, 290 mil ligações domésticas à rede coletora, que tem 1,4 mil quilômetros de extensão. Numa comparação com Porto Alegre, nessa primeira etapa, o Pisa entregará 11,83 quilômetros de rede coletora. Sem contar que o Pró-Tietê já começa a mudar as feições do rio. Há pontos mais afastados da zona urbana em que já é possível pescar espécies de peixes como jundiá e lambari. Seguido, na ordem de degradação pelo Sinos e pelo Gravataí, o Tietê, ganha tempo. Nada impede que passe o título de pior rio do país para um de seus irmãos gaúchos num futuro não tão distante. Mais um sinal de que o Rio Grande do Sul perdeu tempo demais.
Foto: Ivo Gonçalves/PMPA