Licença para poluir
Igor Sperotto
A decisão de retomar o projeto de quadruplicação da fábrica de celulose de Guaíba (RS), anunciada pelo conselho diretor da Compañia Manufacturera de Papeles e Cartones no dia 6 de dezembro de 2012 no Chile, foi noticiada pela imprensa gaúcha como um presente de natal antecipado para o Rio Grande do Sul. Trata-se da ex-Borregard, que também já foi Riocell, que já foi da Klabin, que já foi da Aracruz, que já foi da Fibria (que quase quebrou em 2008), e desde dezembro de 2009 é dos chilenos e passou a se chamar CMPC Celulose Riograndense.
No dia 12 de dezembro, a Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente (Apedema/RS) divulgou carta aberta endereçada ao governador Tarso Genro questionando a obra: “Estamos lidando com um voo no escuro, tanto do ponto de vista ambiental como econômico”. Os ecologistas, no entanto, não se deram conta que se tratava de um fato consumado. O empreendimento será retomado com o licenciamento obtido em 2008 pela Aracruz. Legalmente, os chilenos já tem a licença de que precisam sem passar previamente por qualquer debate público sobre o aumento de poluição.
“Esta informação de que estão utilizando uma licença de instalação concedida há quase cinco anos para retomar o projeto de quadruplicação da fábrica de celulose de Guaíba (RS) de fato nos pegou de surpresa. Reabrir a discussão sobre o enorme impacto ambiental deste empreendimento é o mínimo que esperamos, não apenas no âmbito do órgão ambiental do estado. Queremos também um posicionamento do BNDES, que irá financiar parte da obra”, afirma Francisco Milanez, 56 anos, presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan).
O investimento em ativos industriais aprovado pela diretoria da CMPC no Chile foi de US$ 2,1 bilhões. Deste total, um pouco mais da metade, US$ 1,2 bilhão (o equivalente a 2,5 bilhões de reais em dezembro do ano passado), virá de um empréstimo que está sendo negociado junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Com a quadruplicação da fábrica de Guaíba, o grupo chileno pretende se consolidar como um dos principais fornecedores mundiais de celulose branqueada, com um volume anual que deverá chegar a 4,1 milhões de toneladas.
Pedido de renovação engatilhado
O projeto de expansão anunciado é o mesmo da Aracruz Celulose S/A que gerou enorme polêmica durante a gestão da governadora Yeda Crusius e que acabou recebendo a Licença de Instalação (LI) 687/2008-DL no dia 1º de julho de 2008, válida até 30 de junho de 2013. Esta LI, cujo pedido de renovação já está sendo encaminhado pela indústria, autoriza um aumento da capacidade da linha atual de 460 mil para 500 mil toneladas ao ano de celulose e a construção de uma segunda linha, chamada Guaíba II, capaz de produzir 1,3 milhão de toneladas de celulose branqueada ao ano.
O incremento da produção será de 3,9 vezes e o aumento do volume de efluentes de até 3,3 vezes (330%). Quando a planta quadruplicada entrar em operação, no primeiro trimestre de 2015, segundo a previsão dos chilenos, a quantidade de efluentes industriais lançados no lago Guaíba poderá subir para 154.400 m3/dia. A Licença de Operação 6561/2009-DL expedida pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) para a planta atual permite um lançamento diário de até 46.400 m3. A fábrica, no entanto, não chega a lançar tudo isso. A média fica em torno de 38 a 39 mil m3.
“Os estudos apresentados durante o processo de licenciamento mostraram que o Guaíba tem capacidade de absorver este aumento na emissão de efluentes industriais. Mesmo assim nossas exigências foram as mais restritivas possíveis. Condicionamos a construção da nova linha à modernização da planta atual e à adoção de padrões de emissão atmosférica muito mais rigorosos”, garante Renato das Chagas e Silva, 54 anos, atual chefe do Departamento de Controle da Fepam, um dos técnicos que participou do licenciamento do projeto de expansão da fábrica no governo anterior.
Mais empregos e impostos em troca do aumento de poluição no Guaíba
Na licença emitida em 2008, o órgão ambiental do estado reduziu o padrão de emissão a ser atendido pelo efluente da fábrica quadruplicada para Compostos Orgânicos Halogenados (AOX) dos atuais 0,13 kg por tonelada de polpa de celulose branqueada para 0,10 kg/t, mas aumentou a quantidade de mercúrio permitido de 0,008 mg/l para 0,009 mg/l. Estudo divulgado em janeiro deste ano pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) defende a redução das emissões de mercúrio.
Uma licença ambiental que autoriza um aumento no padrão de emissão de mercúrio em um corpo hídrico como o lago Guaíba, por menor que seja, parece estar completamente fora de contexto em 2013, ano em que será finalmente aberto para assinatura dos países membros da ONU o texto da Convenção de Minamata que tem como principal objetivo combater os efeitos negativos deste metal pesado, que pode causar problemas para a saúde e o meio ambiente.
Para elevar sua produção anual de 460 mil para 1,8 milhão de toneladas de celulose branqueada, gerando mais empregos e impostos, a CMPC Celulose Riograndense foi autorizada a aumentar em até 330% o volume de efluentes líquidos industriais, passando dos atuais 46,4 mil m3/dia para 154,4 mil m3/dia. Como o tratamento que recebe não elimina totalmente os químicos resultantes do processo industrial, o efluente continuará sendo lançado com uma série de poluentes residuais no Guaíba, entre eles o mercúrio.
Igor Sperotto
Tecnologia europeia mais eficiente
A emissão de efluentes industriais da CMPC Celulose Riograndense deverá ficar bem abaixo dos 154.400 m3/dia autorizados pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental devido à utilização dos pacotes tecnológicos que serão adquiridos, com equipamentos novos e mais eficientes, informa Clovis Zimmer, 48 anos, gerente de Qualidade e Meio Ambiente da fábrica que será quadruplicada em Guaíba (RS).
“A carga de poluentes vai aumentar, mas podemos garantir à população que isso não representará alteração significativa na qualidade da água do Guaíba. Vamos utilizar o mais alto padrão de excelência. No ano passado já alcançamos 29 m3 de efluentes lançados por tonelada de celulose branqueada, abaixo do padrão internacional que oscila entre 30 e 50 m3”, ressalta o químico industrial Clovis Zimmer.
Até abril será definido o fornecedor da Linha de Fibras e da Caldeira de Recuperação, as duas partes principais do processo de fabricação de celulose. Concorrem a Andritz e a Metso, ambas fornecedoras europeias de tecnologia. A montagem dos equipamentos importados inicia- -se no próximo ano. Pela previsão dos chilenos, a terceira chaminé da Celulose Riograndense estará fumegando no primeiro semestre de 2015.
Benefícios econômicos
O valor total do investimento previsto pelos chilenos na quadruplicação da CMPC Celulose Riograndense será de R$ 4,6 bilhões, divididos em três grandes áreas: industrial, florestal e infraestrutura. Durante a implantação do projeto, a previsão é que sejam criados mais de 7 mil postos de trabalho diretos e 17,1 mil indiretos, até 2015. Com a entrada em funcionamento da unidade, 2,5 mil empregos diretos serão criados, segundo a empresa.
Ainda segundo cálculos da CMPC, os investimentos gerarão, durante a fase de construção, R$ 102 milhões de recolhimento de ICMS para o Estado. Com a entrada em funcionamento, esse valor passará para R$ 1,4 bilhão/ano. Ao todo, 40 municípios serão beneficiados pelos investimentos da Celulose Riograndense. A empresa já havia dado início à expansão da sua base florestal, através da implantação de 15 mil hectares de eucalipto e da recuperação de 18 mil hectares de florestas.
Dioxinas e furanos são lançados diariamente no Guaíba
Igor Sperotto
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Das 27 análises semestrais realizadas entre 25 de maio de 1998 e 19 de novembro de 2012, apenas três (02/07/07; 08/01/08; 24/03/09) apresentaram Equivalente Tóxico (TEQ) 0,0000 na unidade ppq, ou fentograma, um milionésimo de milhão de milhar (10 na potência menos 15) de gramas por quilo de efluente. Nas duas últimas, o TEQ foi de 0,5000 ppq (22/05/12) e de 0,1020 ppq (19/11/12).
Segundo a conclusão do último laudo do laboratório canadense, os resultados atendem plenamente aos níveis máximos das referências (Estados Unidos, Austrália e Japão) e estão de acordo com o esperado para o processo de branqueamento adotado (com dióxido de cloro), bem como para o nível de tratamento dos efluentes industriais (primário, secundário e terciário). Consultado sobre estes resultados pela reportagem do Extra Classe, o geneticista aposentado Flávio Lewgoy, 87 anos, primeiro ecologista gaúcho a denunciar a presença de dioxinas nos efluentes da fábrica, em 1991, mostrou-se preocupado: “Eles sempre desvalorizam estes resultados dizendo que são quantidades ínfimas. Mas não são. O bom para nós não serve, queremos o ótimo”.
Igor Sperotto
Lewgoy ressalta que se o projeto continua o mesmo, há lançamento de dioxinas também na caldeira de força à carvão (a menor das duas chaminés atuais), usada para complementar a geração de energia da fábrica e que será mantida pela empresa. Um dessulfurizador deverá ser instalado para atender padrão mais rígido de emissão de dióxido de enxofre exigido pela Fepam na licença de instalação de 2008. “Nós queremos que a indústria use um processo totalmente livre de cloro. Vão produzir com dióxido de cloro, vão ter paciência. Com estes processos de tratamento deles é impossível evitar impacto no ecossistema. Esse insignificante deles não tem valor toxicológico. Dioxina é cumulativa, não tem valor mínimo”, protesta.
Citando trabalho publicado em 2004 por Keiichi Nakamata na revista da The Japan Wood Research Society, Lewgoy informa ainda que há uma emissão considerável de clorofórmio para o ar no primeiro estágio da estação de tratamento de efluentes resultantes do processo Kraft de produção de celulose, o mesmo utilizado em Guaíba (RS). A emissão é 1,08 grama de clorofórmio por tonelada de celulose seca, calcula ele.
Igor Sperotto
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