Ação humana ameaça botos na Barra do rio Tramandaí
Foto: Ignacio Moreno/Divulgação
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O espaço de 1,5 quilômetro de leito do rio Tramandaí, canal de água doce que estabelece a ligação entre as lagoas Tramandaí e Armazém e o mar e demarca a divisa entre os municípios de Tramandaí e Imbé, no Litoral Norte, é cada vez mais um território de disputa. No estuário, a sobrevivência das diversas espécies de mamíferos, aves, peixes e crustáceos, mais do que a busca por alimento, reprodução e fuga dos predadores naturais, consiste em uma corrida contra a degradação ambiental.
A população de Tramandaí, projetada pelo IBGE em 45 mil habitantes em 2013, na baixa temporada, supera fácil os 200 mil com a invasão de turistas a partir de setembro e pelo menos 2 milhões de pessoas se aglomeram nas praias dos principais municípios nos meses de verão. A infraestrutura precária, que mal dá conta dos moradores, entra em colapso durante o veraneio e a expansão imobiliária avança sobre a faixa de areia com os empreendimentos cada vez mais sofisticados tanto quanto irregulares no que concerne à legislação ambiental.
O condomínio horizontal Las Olas, em Imbé, é alvo de uma ação civil pública do Ministério Público Federal (MPF), que determinou a demolição de casas construídas sobre a área de dunas. A incorporadora de outro condomínio de luxo, o Costa Serena, também foi interpelada judicialmente devido a problema semelhante: uma piscina com borda infinita e deck molhado que invadem a faixa de 60 metros reservados para dunas.
O relatório Situação Ambiental do Litoral Norte do RS, realizado em 2010 por um Grupo de Trabalho (GT) do MPF e Ministério Público Estadual (MPE), aponta que a pressão das atividades econômicas e do turismo nos meses de verão na região, além do crescimento da urbanização nas margens do rio Tramandaí, acarreta riscos importantes ao meio ambiente como, por exemplo, a destruição de recursos pesqueiros e de habitats, inclusive de mamíferos marinhos; e conclui que falta conhecimento dos diversos atores sociais e autoridades sobre a importância de se preservar o ambiente da região. Para mudar esse quadro de degradação, o GT propõe o apoio à pesquisa relacionada à preservação ambiental por instituições de ensino da região vinculadas a universidades, incentivo ao trabalho conjunto dos atores sociais, políticos e econômicos para a participação efetiva da sociedade nas decisões. Pelo menos dois condomínios foram autuados por edificações sobre dunas. Os processos ainda estão tramitando.
Foto: Ignacio Moreno/Divulgação
Nenhum município do Litoral possui Plano de Saneamento Básico ou Plano de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos, de acordo com a pesquisa divulgada em 17 de julho passado pelo Tribunal de Contas do Estado. A exceção seria Xangri-Lá, que alega dispor desses planejamentos, mas não enviou documentação. Na orla, os problemas se multiplicam. O trânsito de embarcações de carga que transportam petróleo e nafta para o terminal da Petrobras em Tramandaí, a prática de esportes náuticos como jetsky e kitesurf (modalidade de surf impulsionada pelo vento com uso de uma pipa que lembra um paraquedas), o lixo das praias e o esgoto doméstico sem qualquer tratamento, além dos resíduos químicos de agrotóxicos usados especialmente nas lavouras de arroz, contribuem ainda mais para aniquilar a fauna e a flora e já atingem animais do topo da cadeia alimentar.
É o caso dos golfinhos da Barra, também chamados pelos moradores da orla de nariz-de-garrafa – ou, para os pesquisadores que mapeiam a espécie, Tursiops truncatus –, parceiros dos pescadores na pesca artesanal da tainha. Pelo menos dez desses mamíferos marinhos, que pesam em média 300 quilos, aparecem na orla regularmente, mas o número é variável devido às crias que aparecem todos os anos e as mortes. A aparição do boto é sinal de que cardumes de tainha estão nadando contra a corrente, do mar para o rio, o que mobiliza os pescadores. Os peixes são empurrados pelo mamífero na direção dos pescadores, que se posicionam ao longo da margem do rio com as tarrafas em punho. A um sinal do boto, que eleva a cabeça ou salta acima das ondas, as redes são jogadas e os peixes que escapam da tarrafa são abocanhados. O ritual é secular e só acontece dessa forma em Tramandaí e em Laguna, embora variações da pesca cooperativa tenham registros na foz dos rios Mampituba e Araranguá ou ainda na costa da Mauritânia, na África.
MORTE NA PRAIA – Para se ter uma ideia da familiaridade que se estabeleceu entre pescadores e botos na Barra do Tramandaí, basta reparar que os nativos batizam os mamíferos como se fossem animais de estimação: Coquinho, Manchada, Geraldão, Bagrinho, Catatau e Esquisito. Outros nunca mais foram vistos, como Galhamol, Barata e Pomba, o que leva os pesquisadores a concluir que morreram naturalmente ou presos a redes de pesca em alto mar ou abandonaram o estuário para fugir da poluição e do ruído dos motores das embarcações e jetskys. Já o boto Lobisomem apareceu morto na praia em 2005. Uma análise da carcaça confirmou o que os pesquisadores já desconfiavam: o animal morreu em consequência de um quadro de deficiência imunológica e estresse, provavelmente provocado pela poluição, e devido à Lobomicose, uma patologia também associada à contaminação ambiental e se manifesta por manchas brancas na pele.
Investigações sobre a origem da Lobomicose revelaram concentração de compostos organopersistentes (substâncias com capacidade mutagênica utilizadas na agricultura e na indústria de inseticidas e pesticidas) nas carcaças dos animais atingidos. Absorvidos pelo fitoplâncton, esses compostos se instalam em toda a cadeia alimentar e nenhum ser vivo é capaz de quebrá-los, explicam os pesquisadores. Os golfinhos e baleias funcionam como reservatórios, pois estão no topo da cadeia e porque gordura que reveste o corpo dos mamíferos marinhos absorve com facilidade essas substâncias.
De acordo com o biólogo Fábio Daura Jorge, professor do Laboratório de Mamíferos Aquáticos (Lamaq), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), os 55 botos da Lagoa Santo Antônio, em Laguna, outro local em que ocorre a pesca cooperativa no país, estão adoecendo em virtude da poluição. Registrada pela primeira vez em Laguna em 1993, a doença mereceu nova pesquisa em 2011, quando os pesquisadores do Lamaq estimaram que cerca de 9% dos animais da época estivessem contaminados.
Daura Jorge acredita que o número de botos contaminados aumentou. Nova pesquisa desenvolvida em parceria com a Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) e Associação R3 Animal será concluída setembro. Para o professor do departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da Ufrgs e coordenador do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar), Ignacio Benites Moreno, a aparição dos animais no estuário é menor a cada verão. Detalhes como o aprendizado dos filhotes, que são iniciados na pesca cooperativa pelas mães, se perdem no ambiente saturado de ruídos, sujeira e aglomeração em que se transforma a orla no verão. “Nos anos 1990, quando iniciamos as pesquisas com os botos no estuário do Tramandaí, eles apareciam constantemente. Era comum ver esses mamíferos durante o verão. Atualmente eles são cada vez mais raros”, alerta o biólogo, que coordena o grupo de pesquisas sobre os impactos do turismo e da degradação ambiental na pesca associativa.
Foto: Igor Sperotto
“A proposta é apresentar dados científicos, porque isentos, e propor alternativas como o zoneamento e regras para o esporte aquático, não proibir, mas integrar os grupos que frequentam a orla”, sinaliza. “O intenso trânsito de embarcações e o ruído de lanchas e motos aquáticas que cruzam a orla em alta velocidade perturbam os golfinhos, que abandonam a pesca e se afastam da Barra por horas. Alguns nem retornam mais no mesmo dia”, diz a bióloga Gabrieli da Silva Afonso, que está trabalhando em seu mestrado no curso de Pós-graduação em Biologia Animal do Departamentoo de Zoologia da Ufrgs.
A dissertação apontará soluções como o manejo sustentável do turismo e dos recursos em parceria com as prefeituras de Imbé e Tramandaí e a valorização do boto – já declarado patrimônio natural de Imbé por um decreto de 1990. “O lixo é um problema gravíssimo, que precisa ser revertido com urgência. Muitas espécies marinhas, como esses golfinhos, que são de uma espécie ameaçada de extinção, estão morrendo pela ingestão de resíduos como o plástico, ficam presas a esses materiais ou se contaminam por componentes químicos. A ausência do tratamento de esgoto em grande parte do Litoral Norte também é alarmante”, destaca a pesquisadora.
A degradação ambiental e as atividades relacionadas ao turismo, como o trânsito de lanchas e motos aquáticas e a redução da frequência dos botos na Barra, são reconhecidas por grupos socioeconômicos que frequentam o local, de acordo com pesquisa que ouviu moradores, turistas, pescadores, comerciantes, desportistas e funcionários públicos. “Circulação de lanchas e jetskis, degradação do meio ambiente e poluição sonora representam grande risco para os botos e estão aumentando consideravelmente com o passar do tempo, segundo a opinião de todos os grupos estudados. Os resultados fornecem subsídios importantes para que, no momento em que medidas de manejo ou empreendimentos urbanos sejam propostos, a população da região da Barra, residente ou não, tenha voz ativa e participação efetiva na tomada de decisões”, explica o biólogo Yuri Roxo de Camargo, da equipe de pesquisa coordenada por Ignacio Moreno, da Ufrgs. “Todos os grupos reconhecem que nos últimos anos os botos aparecem menos na Barra, mas os pescadores demonstram uma preocupação maior em relação a comerciantes e turistas”, aponta.
As linhas de pesquisa do grupo avançam ainda para o mapeamento de novas espécies e comportamentos dos golfinhos. “Diversos estudos levam a crer que a diversidade de golfinhos, no Brasil e no mundo, vem sendo sistematicamente subestimada. É bastante possível que existam espécies ainda desconhecidas para a ciência”, diz Janaína Wickert, que em sua dissertação de mestrado confirmou a existência de uma segunda espécie de golfinho do gênero Tursiops na costa brasileira, o Boto de Lahille. Agora ela investiga as relações de parentesco em uma subfamília de golfinhos composta por pelo menos 21 espécies diferentes através da análise de material osteológico de animais vivos e fósseis em museus e da análise de coloração em fotos de animais vivos de diversas regiões do planeta.
Contaminação por metais pesados
Bacia do Tramandaí apresentam índices de metais pesados – possivelmente oriundos da agroquímica, de agrotóxicos usados na região –, que extrapolam os níveis aceitáveis pelas agências reguladoras. A constatação é da pesquisadora Cacinele Mariana da Rocha, Química do Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar) que, em parceria com a ONG Anama, analisou os índices de metais pesados nos peixes, sedimentos e águas de nove lagoas do Litoral Norte, entre Torres e Mostardas, entre 2011 e 2013, no desenvolvimento de projeto vencedor do edital Petrobras Ambiental.
Foto: Eloísa Bianchi/Divulgação
“Há resultados elevados para as três matrizes, sendo que alguns ultrapassam os limites propostos pelos órgãos reguladores”, conclui Cacinele, que desenvolveu a pesquisa como tese de mestrado em Oceanografia Física, Química e Geológica pela Furg. Nas amostras de peixes foram determinados chumbo, cádmio, cromo e mercúrio, metais encontrados acima dos níveis máximos propostos pela Anvisa em pescados destinados à alimentação, com destaque para as espécies dentuças e violas, que apresentaram os maiores teores dessas substâncias.
Os químicos podem causar desde problemas respiratórios, câncer, teratogênese (dano ao embrião ou feto durante a gravidez que causa malformação), entre outras doenças. Nas águas, reguladas pelo Conama, os resultados demonstraram médias acima do permitido para mercúrio, que é de 0,2 micrograma por litro. Já nos sedimentos, que são compartimentos de reserva de metais em permanente troca com as águas, o destaque foi para Lagoa do Gentil e Lagoa do Passo que apresentaram níveis próximos do limite para chumbo e cromo, respectivamente, enquanto que todas as nove lagoas monitoradas – Itapeva, Quadros, Passo, Tramandaí, Gentil, Fortaleza, Cidreira, Rondinha e Bacopari – excederam os limites para mercúrio, que é de 0,05 micrograma por grama. “Conseguimos fazer amostragens conjuntas de água, sedimento e pescado, que normalmente são analisados de forma isolada. Isso é importante porque existe uma cadeia entre esses compartimentos, através da qual os teores de metais oscilam”, ressalta. Os dados da pesquisa, entre outras informações que integram o Projeto Taramandahy – Gestão integrada dos recursos hídricos da bacia do rio Tramandaí, podem ser acessados no Atlas Ambiental da Bacia Hidrográfica do Rio Tramandaí em www.anama.org.br.
Vida de pescador
Território de índios mbyá-Guarani até a chegada de imigrantes açorianos em 1748, a bacia do Rio Tramandaí tem atualmente 3.664 famílias dependentes da pesca artesanal em uma área de 2,7 mil quilômetros quadrados que vai de Torres a Mostardas, conforme levantamento da ONG Ação Nascente Maquiné (Anama), que atua desde 1997 na promoção de estratégias de desenvolvimento socioambiental sustentável no bioma da Mata Atlântica e está desenvolvendo pesquisas e publicações sobre a Bacia, além de um documentário sobre os botos da Barra – no âmbito do projeto Taramandahy. Em Tramandaí e Imbé não existe censo atualizado de pescadores. De acordo com Joaquim Eme, presidente da Colônia de Pescadores Z-40, um total de 130 pescadores têm a licença especial do Ibama para pescar na Barra, de um total de mil famílias credenciadas pelo Ministério da Pesca.
Foto: Igor Sperotto
A pesca da tainha ainda mobiliza boa parte dos moradores, especialmente em virtude da Festa Nacional do Peixe, realizada durante 20 dias em julho, e que reúne até 250 mil visitantes, movimentando a economia local. Para quem vive da pesca, no entanto, os problemas se multiplicam. Filho de pescador, Itamar Silva, 57 anos, diz que o trânsito intenso de embarcações no canal e a contaminação da água com óleo e nafta estão comprometendo a pesca a cada dia. “Coisa boa ter esse botinho pra ajudar a pescar, senão não se pega peixe pra comer”, atalha Dinarte Jovino, 70 anos. “Sem boto, tu pega uma tainha, com o boto, 50”, explica.
Já Valdomiro Lentz Pereira, 34 anos, acredita que a próxima geração da comunidade não vai querer saber de pescar. “As pranchas de kitesurf espantam o boto, porque vistas de baixo, as quilhas se parecem com o predador. Sem boto não tem tainha. É uma vida dura que não vou deixar meu filho seguir. Isso sem falar nos arrastões que o pessoal de fora da comunidade fazem à noite e o Ibama não vê”, lamenta. Uma manhã de pescaria não rende mais do que três peixes, vendidos a R$ 40,00 em uma peixaria. Os restaurantes da orla servem tainha assada a R$ 70,00 na baixa temporada, mas o peixe que o visitante consome nada tem a ver com a economia local. Ele vem congelado de Laguna.
ENTREVISTA | Interação entre botos e pescadores pode desaparecer
Um dos primeiros biólogos a investigar o comportamento dos golfinhos no país, o gaúcho Paulo César Simões-Lopes é referência obrigatória em trabalhos acadêmicos relativos à da vida marinha – e sua literatura é reverenciada até em linhas de pesquisas de outras áreas. Professor do Centro de Ciências Biológicas da UFSC, começou a pesquisar a ecologia comportamental dos golfinhos durante as interações com a pesca artesanal de tainhas na década de 1990, em Laguna. O estudo originou o livro Luar do Delfim: a maravilhosa aventura da história natural (Letradágua), que trata da pesca cooperativa, da transmissão de culturas e da biologia geral dos botos e abriu caminho para novas descobertas – e projetos em parceria com a Furg, o laboratório Mote Marine, da Florida (EUA) e das universidades de St. Andrews e Plymouth, no Reino Unido. À frente do Grupo de Pesquisa Laboratório de Mamíferos Aquáticos (Lamaq), coordenou em 2009 estudo que reafirma a transmissão de conhecimento entre golfinhos ao orientar pesquisa de mestrado do hoje professor do Laboratório, Fábio Daura Jorge. Licenciado em Biologia pela Ufrgs e doutor em Zoologia pela PUCRS, Simões-Lopes, que é autor ainda de Os parceiros da sobrevivência: a interação entre botos e homens no sul do Brasil (Insular) e do livro sobre o tema para crianças, A história de Hermes (Cortez), afirma nesta entrevista que os botos não estão na rota de extinção, mas podem ser considerados uma espécie ameaçada.
Extra Classe – Como a tradição da pesca cooperativa é transmitida entre gerações pelos golfinhos?
Simões-Lopes – O aprendizado dos botos se dá de mãe para filho. Em 1998 acompanhamos uma sequência de comportamentos muito esclarecedora, em que um filhote de cerca de seis meses copiava sua mãe durante a pesca cooperativa. Primeiro ela executava os movimentos de agrupar as tainhas e levá-las para a linha de pescadores (tarrafeiros). Nesse momento, o filhote se mantinha atrás dela, fazendo os mesmos movimentos. Em outra oportunidade, o filhote manteve-se ao lado da mãe, executando os comportamentos em sincronia. Depois, numa terceira oportunidade o filhote foi à frente, fazendo sozinho todos os movimentos, enquanto a mãe se mantinha atrás, apenas acompanhando. Aquilo funcionava como um ensaio, um treinamento motor para automatizar toda a sequência. Naquele dia, as águas estavam incrivelmente claras devido a uma prolongada falta de chuvas. Desde então, vimos outros filhotes realizarem essas seções de treinamento.
EC – A pesca cooperativa depende da continuidade desse aprendizado?
Simões-Lopes – A questão da manutenção da pesca cooperativa dependerá do treinamento dessa técnica, oportunizado pelas mães experientes. Como qualquer cultura, ela será mantida enquanto existirem os experts no assunto. Da mesma maneira que a técnica de fazer “renda de bilro”, tão tradicional em Santa Catarina, está ameaçada a desaparecer se as rendeiras mais velhas não ensinarem as mais novas (ou estas não desejarem mais aprender), assim também pode ocorrer com a pesca cooperativa. Porém, como existe uma vantagem também para os botos, isso está se mantendo. Na Austrália, o evento similar já não existe mais. De nossa parte, devemos fazer tudo que esteja ao nosso alcance para preservar essa tradição que é bilateral, isto é, a pesca cooperativa é uma tradição para alguns pescadores e para alguns botos que se especializaram nessa tarefa.
EC – As pesquisas sobre esse comportamento específico tiveram continuidade?
Simões-Lopes – Desde o início do meu doutoramento no começo da década de 1990, seguimos com o trabalho, abordando várias áreas da ciência para explicar o fenômeno. Trabalhos de censos populacionais de botos, estudos de deslocamentos a curta e longa distâncias (inclusive de Laguna para Tramandaí), estudos de estrutura social dos botos utilizando redes complexas, abordagens de etnobiologia sobre o conhecimento dos pescadores e sobre o aparato de pesca, estudos bioacústicos para compreender os padrões sonoros dos botos que interagem com a pesca e dos que não interagem, estudos de biomarcadores para conhecer os contaminantes que podem afetar esses animais e também estudos de doenças que possam afetar os botos.
EC – Por que o boto-da-tainha e o fenômeno da pesca cooperativa despertam tanto o interesse da comunidade científica?
Simões-Lopes – Porque a transmissão cultural fora do âmbito humano é um tema extraordinário e suscita interesse de várias áreas correlatas como a Biologia, a Oceanografia, a Sociologia etc. Por si só este fenômeno deve ser considerado como patrimônio da nação.
EC – Há uma relação entre a preservação do boto (espécie guarda-chuva) e as demais espécies?
Simões-Lopes – O boto-da-tainha, como é conhecido em Tramandaí e Laguna, não é uma espécie ameaçada, mas algumas de suas populações costeiras são muito pequenas e seguramente estão sob pressão. Isto é motivo de preocupações. As ameaças são várias, mas a mortalidade acidental em redes de pesca e a contaminação ambiental são os maiores problemas.
EC – Existe pesca cooperativa em outros locais?
Simões-Lopes – Além de Laguna e Tramandaí, essa pesca cooperativa ocorre também no Mampituba, em Torres, e na foz do Rio Araranguá. Fenômenos semelhantes, mas não iguais, foram registrados para a Mauritânia, na África, e Moreton Bay, na Austrália, mas nesse último aparentemente se perdeu.
EC – A legislação ambiental é deficiente?
Simões-Lopes – É fácil cumprir a legislação ambiental. Não faltam leis. O que falta, geralmente, é seriedade para aplicá-las.
EC – Como conscientizar a população sobre a importância da interação boto-pescador?
Simões-Lopes – Esse é um tema fundamental. As pessoas têm direito ao conhecimento. Eu e o Fábio Daura Jorge escrevemos um livro, Parceiros da Sobrevivência, que é doado às escolas e serve para informar e formar professores, alunos e seus familiares. Não é o único caminho, mas é um bom caminho. A escola fundamental deveria ser muito mais valorizada para que tenhamos progresso inteligente.