Os campos do Sul pedem socorro
Foto: Ronai Rocha
Abre e se alarga a porteira para a compreensão desse bioma chamado pampa, suas pradarias, sua diversidade, sua imensa riqueza. O livro Os Campos do Sul, que reúne uma série de pesquisadores através da Rede Campos Sulinos, se propõe a uma radiografia íntima, traçando um painel da cultura, da biodiversidade, dos aspectos históricos e econômicos dessa ampla região que abrange campos de altitude, florestas, imensas pradarias e sobretudo gente enraizada à terra. A segunda parte do livro se propõe a discutir o futuro e a conservação de tudo isso através de práticas sustentáveis e métodos que podem ajudar a recuperar áreas degradadas ou infestadas por espécies exóticas invasoras. “É importante mostrar a riqueza da biodiversidade campestre e também situá-la no contexto histórico, cultural e econômico, e mostrar saídas para sua conservação através de boas práticas de manejo e políticas públicas”, afirma o engenheiro agrônomo Valério Pillar, um dos organizadores da obra junto à bióloga Omara Lange.
Coube ao músico e pesquisador Demétrio Xavier ser, na definição própria, “o menino da porteira”. É o texto dele, Campo da palavra, da literatura, da música crioula, que abre a cortina onde se seguem mais 16 capítulos. Esse campo da palavra trata da nostalgia, das expressões musicais, dos atavismos que podem ser sintetizados numa expressão inca cunhada pelo autor: “o homem é a terra que anda”. Apesar de abordar o campo simbólico, Demétrio fala da intenção da obra de “aproximar as pessoas do campo real, do que ele determina, do que de fato existe”. Para ele, o livro como um todo une duas coisas. “É a melhor ciência cheia de paixão”. Uma mistura bem equilibrada de ciência e paixão plasmada em palavra e imagem. Um tratado que vai de origens históricas das estâncias, dos primeiros caminhos traçados por estas terras durante as Missões, da biodiversidade que habita os campos com répteis, anfíbios, plantas, aves e mamíferos. E sobretudo de práticas e propostas que descortinam a preservação e o futuro dos campos, avançando ainda no esboço da necessidade de políticas públicas. Tudo isso numa linguagem acessível, que contempla o grande público sem perder a precisão e o rigor científico.
“Os autores foram orientados pelos editores a usar linguagem acessível. Procuramos também esclarecer alguns mitos sobre os campos, como sua origem e a questão do uso do fogo. Além disso, o livro foi ilustrado com muitas fotos, o que também é uma forma de comunicação bastante acessível, inclusive para leitores que normalmente não se interessariam por biodiversidade”, explica Valério Pillar.
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Os campos do Sul são únicos no planeta. Pillar fala de outras regiões semelhantes com grandes extensões de pradarias da América do Norte e Ásia Central. Mas são mais frias e secas, portanto menos produtivas do que os campos do denominado Bioma Pampa, que abrangem o Sul do Brasil, o Uruguai e parte da Argentina, incluindo ainda os campos de altitude do Bioma Mata Atlântica. “São únicos por conterem muitas espécies que somente ocorrem nesses campos. Há também remanescentes de pradarias em outras regiões úmidas do planeta, mas assim como aqui, esses ecossistemas foram negligenciados por não serem florestas”, avalia Pillar.
No capítulo sobre a biodiversidade de plantas, por exemplo, há um dado impressionante: há mais de 3 mil espécies conhecidas. No entanto, um alerta de que as alterações no manejo desse campo afetam sempre toda a biodiversidade. Os desequilíbrios dessa cadeia vêm especialmente da monocultura da lavoura e suas práticas de uso de agrotóxico e práticas predatórias de cultivo. Há também outros olhares que desvendam mitos em atividades históricas, como a pecuária. O professor Cláudio Marques Ribeiro, que atuou na extensão rural da Emater durante 32 anos, conheceu um tipo de pecuarista que é maioria, mas é pouco conhecido no estado: o pecuarista familiar, com propriedades de menos de 300 hectares.
Criadores de gado e ovinos em campo nativo, eles preservam o pasto natural por uma questão de sobrevivência. “Se eles destruírem o meio ambiente, sabem que sua atividade terá pouca duração. E para eles, isso é primeiro um modo de vida. Eles não têm a lógica de produzir mais, mas reproduzir, ter um estoque de gado e vender quando precisam”. Ribeiro fala também no equívoco que há numa visão, a de que o pampa é um bioma a ser explorado. “Isso significa mudar o bioma natural com o plantio da soja e do eucalipto”. Mas é o contrário: “É aumentar a produtividade do pampa como ele é a partir dos campos naturais”.
É uma tendência que hoje cresce em nível mundial, a partir do desafio de produzir mas sem destruir o meio ambiente. Nesse caso, seria assegurar o futuro voltando a práticas quase seculares que se pratica na pecuária familiar. “É algo que eles fazem há muito tempo: produzir carne e lã a campo nativo”, explica Ribeiro. Práticas antigas, atavismos que vêm há muito tempo povoando campos de povos que muitas vezes vivem isolados. São as maiorias esquecidas nesses campos imensos. Ao tratar a terra que alimenta e o meio que secularmente gerou essa gente, o livro Os Campos do Sul reestabelece nexo, aponta sustentabilidade e traça a trilha de sobrevivência da natureza e do homem. Estudo, obra aberta, generosamente partilhada a todos na versão on-line, a obra também serve de alerta, na visão de Valério Pillar. “Os campos do Sul (que incluem os campos de altitude e os campos do Bioma Pampa) pedem socorro”!
Foto: Ronai Rocha Foto: Ronai Rocha
As paisagens bucólicas que habitam o imaginário de um pampa distante, infinito e perdido no passado nascem de uma ótica distorcida. Demétrio Xavier fala de uma tendência geral do campo ser quase sempre descrito por gente urbana. Ou gente que vem do campo e perdeu esse elo pelo caminho. Daí nasce a nostalgia e aí se planta a idealização. E, então, o grande pampa se torna visível na idealização e invisível na realidade.
O que esse grupo de pesquisadores ligados à academia procuram nos 17 capítulos que compõem Os Campos do Sul é desmistificar conceitos e dar visibilidade a coisas que pouco se sabe. Por exemplo: o perigo ambiental que representam espécies invasoras como o capim annoni ou o terrível javalí, aniquilador de várias outras espécies, onívoro e com alta capacidade reprodutiva. O flagelo desses campos tem origem na sua depauperação com o extrativismo desenfreado que culmina com a monocultura agrícola. No início do povoamento desse território, porém, não está a produção, mas a defesa. Cláudio Ribeiro fez um estudo da ocupação de uma parte da região da Campanha na fronteira com o Uruguai. E constatou que ali se albergaram coronéis em sesmarias doadas pela Coroa basicamente para defender o território.
Eram extensões que beiravam os 40 mil hectares. Os campos foram se dividindo, ora por herança, ora até mesmo como pagamento de trabalho. Foi quando surgiu o pecuarista familiar, hoje maioria no estado. Por isso, para ele, não procede a visão da pecuária ligada exclusivamente ao latifúndio. Foi quase por intuição que os campos nativos dos pequenos pecuaristas foram preservados. Intuição e sobrevivência. Contra isso se ergue a mistificação do campo dos grandes negócios – as colheitadeiras enormes, as lavouras industriais e os rebanhos gordos nutridos na pastagem. A mesma mistificação desenvolvimentista que ligou a palavra prosperidade a chaminés de fábricas e automóveis.
Uma ilusão em que o predador ilude a presa com o modelo da felicidade comprada. O que está longe desse espalhafato se torna invisível. O pequeno produtor de gado ou as flores do trevo, da maçanilha, da carqueja. Eles sustentam esse lugar onde a vista se alonga e a alma se alarga. Campos do Sul com história, memória e cultura. Quanto mais se enxergar e preservar a riqueza desses campos, mais larga será a porteira do futuro.