A última fronteira energética da Amazônia
Foto: Flávio Ilha
Foto: Flávio Ilha
A rodovia Transamazônica corta a cidade de Itaituba literalmente ao meio, mas apenas alguns quilômetros a oeste – em direção ao Parque Nacional da Amazônia – se transforma em uma estrada de terra onde carros de passeio têm enormes dificuldades para transitar. É por esse caminho, a cerca de 80 quilômetros da maior cidade do oeste paraense, que se chega à comunidade de Raiol – uma vila com pouco mais de uma dezena de casas que ostenta praias de água verde e areias brancas. Do outro lado, a dez minutos de barco, São Luiz não é menos exuberante: é ali, no leito do majestoso rio Tapajós, que as corredeiras e pedregais que abrigam uma das maiores biodiversidades da Amazônia serão engolidas pelo lago de mais uma hidrelétrica.
As duas pequenas vilas, praticamente isoladas no meio da selva, são a última fronteira energética da Amazônia passível de ser explorada comercialmente. Com um déficit de abastecimento que só não é mais alarmante porque o país está em recessão, o oeste do Pará se transformou na solução de médio prazo para o governo. Por isso, a construção de usinas hidrelétricas em áreas de preservação ambiental – caso das unidades de São Luiz e Jatobá, na região do rio Tapajós (PA) – está longe de ser uma exceção. A Eletrobrás, que administra o sistema brasileiro de geração e distribuição, destaca que o Brasil precisa de energia “firme e com preço competitivo” para enfrentar os desafios do crescimento – mesmo que isso signifique atropelar áreas de proteção ou comunidades tradicionais.
“O Brasil não pode abrir mão de suas hidrelétricas, cujo maior potencial instalado está na região Norte. Mas é preciso conjugar o progresso com a preservação do meio ambiente”, reconhece o ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga. A estratégia do governo é esgotar a capacidade de geração de energia por meio de grandes hidrelétricas – o que deve ocorrer até meados de 2030.
Atualmente, cerca de 70% da produção de energia do país vem da matriz hidrelétrica – da qual a região amazônica apresenta o maior potencial, de acordo com o Plano Decenal de Expansão de Energia 2024 (PDE). Fontes renováveis consideradas menos impactantes, como vento e luz solar, representam cerca de 10%. Segundo o ministro, citando o plano decenal, o objetivo é expandir a geração a uma taxa de 3,8% ao ano – há três anos a taxa era de 4,6% ao ano. A meta é agregar 74 mil MW ao sistema.
Foto: Flávio Ilha
“A concretização desse plano depende principalmente da obtenção de licenças ambientais, de modo que as usinas possam participar dos leilões de compra. Mas não é uma equação simples, pois os licenciamentos são demorados. E as medidas mitigatórias, geralmente dispendiosas”, adverte Braga. O próximo leilão de energia está marcado para 5 de fevereiro de 2016.
Os grandes empreendimentos do Tapajós, entretanto, ainda ficarão de fora devido aos problemas de licenciamento. Em setembro, o ministério suspendeu o leilão marcado para 15 de dezembro motivado “pela necessidade de adequação associada ao tema do componente indígena”. Comunidades mundurukus que vivem há séculos na região reclamam que o governo está atrasando a demarcação de suas terras para viabilizar a construção da usina.
Mas o presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Maurício Tolmasquim, não garante o leilão das usinas de São Luiz e Jatobá nem para 2016. “Estamos trabalhando para isso ocorrer com celeridade”, limitou-se a dizer.Tolmasquin admite que o modelo de geração hídrica está com os dias contados, mas não arrisca um palpite definitivo sobre a fonte que irá substituí-la: geração térmica a partir de gás natural ou com base nuclear? “É uma tecnologia (a nuclear) para a qual não se pode fechar a porta. Pode ser necessária no futuro”, prevê.
Dos 21 projetos hidrelétricos listados pelo PDE para operarem até 2024, apenas quatro têm capacidade instalada superior a 1 mil MW – cujos impactos socioambientais são mais expressivos. Todos esses empreendimentos estão localizados no Pará. A usina de Teles Pires, que colocou a primeira turbina em operação em novembro, é a menor delas, mas já provocou danos “irreparáveis”, de acordo com o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama).
A concessionária da UHE, formada pelas empresas Neoenergia (50,1%), Eletrobras/Furnas (24,5%), Eletrobras/Eletrosul (24,5%) e Odebrecht (0,9%), recebeu Licença de Operação (LO) dia 19 de novembro de 2014 mesmo com o órgão federal alertando que a supressão vegetal (retirada da biomassa na área a ser alagada) “não estava concluída”. Com isso, a represa foi cheia rapidamente e milhares de troncos de árvores e galhadas permaneceram no local, a maior parte submersa.
De acordo com o biólogo e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Philip Fearnside, a “biomassa verde” vai apodrecer dentro da represa e emitir gás carbônico e metano por, pelo menos, dez anos. “Com a estratificação da água no lago, com muito material verde se decompondo, a morte de peixes será inevitável. Os peixes são sensíveis à falta de oxigênio, que é o que vai ocorrer com a água desse represamento”, critica o pesquisador.
O Ministério de Minas e Energia começou a pressionar o Ibama para acelerar as concessões de licenças ambientais para usinas hidrelétricas na Bacia Amazônica no final de 2014. O temor do governo federal é que o sistema elétrico entre em colapso em breve, com a alta demanda no consumo e a capacidade de geração estagnada, sobretudo devido à baixa no volume de água nos principais reservatórios da região Sudeste do país.
Erros alteram a vida no rio, a floresta, a economia local e o aquecimento global
No caso de Teles Pires, o programa de desmatamento e limpeza do reservatório é descrito em um relatório da Companhia Hidrelétrica Teles Pires de junho de 2014. O documento mostra que em junho do ano passado, apenas duas áreas haviam sido desmatadas – uma área de 1.040 hectares dos quase 11 mil que seria necessário limpar. “O Ibama sabia que a supressão vegetal não estava pronta, pois os técnicos do instituto faziam acompanhamento desse trabalho. Mesmo assim, emitiu a licença às vésperas de um feriado”, acrescenta Fearnside. O biólogo considera o licenciamento de Teles Pires “vergonhoso”.
Foto: Flávio Ilha
O Ibama só constatou que o plano de supressão não havia sido cumprido em fevereiro de 2015, quase três meses após autorizar o funcionamento da hidrelétrica. Segundo relatório assinado por técnicos do órgão, “as atividades de limpeza da bacia de acumulação foram realizadas de forma pouco criteriosa e até mesmo negligente”.
Antes da fiscalização do Ibama, os erros da usina já haviam sido diagnosticados pelo Instituto Centro de Vida, organização que monitora os impactos de Teles Pires nas comunidades locais (Pará e Mato Grosso). O instituto revelou que a usina não havia retirado nem metade da vegetação do local em outubro do ano passado, menos de um mês antes de receber a autorização para encher o reservatório. Dessa forma, pelas contas da entidade, 6,2 mil hectares podem ter sido alagados com vegetação – mais de mil hectares acima do que deveria ter sido retirado pela empresa.
Os erros cometidos pelo projeto, incluído na fase Dois do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) não afetarão só a vida no rio e o aquecimento global, mas também a floresta amazônica e a economia da região. Isso porque a madeira que boia sobre o lago deveria ter sido explorada por serrarias certificadas e vendida legalmente, diminuindo a demanda pela derrubada de mais árvores. Com o desperdício, a madeira necessária na região, inclusive nas obras da usina, terá que sair de outro lugar.
Região de expansão da soja, o norte do Mato Grosso está entre os locais com mais desmatamento no país. O município onde fica a maior parte do lago de Teles Pires, Paranaíta (MT), está na chamada “lista negra” do Ministério do Meio Ambiente das cidades que mais desmatam no país. Por isso, a população da cidade sofre restrições de acesso a algumas políticas públicas, como o crédito a produtores rurais.
Foto: amazonia.org.br/Divulgação
Mesmo que seguido à risca, o Plano de Desmatamento da usina não teria sido suficiente para conter os impactos ao meio ambiente. O plano, elaborado pelo consórcio e aprovado pelo Ibama, estabeleceu que apenas 58% da vegetação deveria ser retirada dos 10,7 mil hectares alagados.
“Não há rigor científico nesses 58%. O Ibama discutiu diferentes cenários com o empreendedor e estabeleceu um parâmetro ao que era mais econômico para a empresa”, diz Brent Millikan, diretor do programa para a Amazônia da International Rivers, ONG que acompanha o impacto de hidrelétricas em todo mundo. “Não há um processo aberto de debate com a comunidade científica, é um processo entre o Ibama e a empresa. E o Ibama não está, de maneira alguma, imune a pressões políticas e econômicas”, alerta.
Arte: Bold Comunicação/ Fábio Alves
Arte: Bold Comunicação/ Fábio Alves
NOTA: Esta reportagem completa a cobertura, iniciada na edição de novembro,
sobre o impacto ambiental e social das hidrelétricas na Amazônia, um complexo industrial de grande porte que irá alagar uma área de 729 quilômetros e terá capacidade de geração de até 14 mil MW de energia.