AMBIENTE

Vácuo jurídico deixa o Bioma Pampa desprotegido

Por Debora Gallas / Publicado em 5 de maio de 2016

Vácuo jurídico deixa o Bioma Pampa desprotegido

Fotos: Igor Sperotto

Fotos: Igor Sperotto

Governo gaúcho e Ministério Público divergem sobre Decreto Estadual que regulamenta cadastramento de imóveis rurais e a disputa judicial ainda se arrasta, mesmo com o fim do período de inscrição no dia 5 de maio.

Criado para reunir informações sobre a situação ambiental dos imóveis rurais em território brasileiro e ser uma ferramenta eficiente de planejamento e monitoramento para os gestores públicos, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) demora a emplacar no Rio Grande do Sul. O prazo de preenchimento foi postergado por um ano em maio de 2015 por iniciativa da Frente Parlamentar Ruralista, composta por deputados federais gaúchos como Luiz Carlos Heinze (PP), que já solicitou nova prorrogação através de emenda à Medida Provisória 707/2015, aprovada ontem (4) na Câmara. No entanto, a ausência de regulamentação jurídica específica para a exploração econômica dos ecossistemas campestres, que compreenda as diferenças dessas áreas em relação às florestas, dificulta o conhecimento das características do Bioma Pampa e, consequentemente, a sua conservação.

Com a publicação do Decreto Estadual 52.431, em julho de 2015, o Governo do Estado quis regulamentar o preenchimento do CAR de acordo com as especificidades do Bioma Pampa, por entender que ele não é contemplado pela legislação federal. Porém, o Ministério Público do Rio Grande do Sul, amparado por entidades ambientalistas e comunidades acadêmicas, contestou a possibilidade de os produtores, com base no decreto, não respeitarem a manutenção de 20% de Reserva Legal: área no interior do imóvel destinada ao uso sustentável. O percentual é previsto pela Lei Federal 12.651/2012, de proteção da vegetação nativa.

Em dezembro passado, o Tribunal de Justiça acatou as denúncias da ação civil pública encaminhada pela Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre. Em evento na OAB/RS sobre as implicações jurídicas do Cadastro Ambiental Rural no Bioma Pampa, ocorrido nesta quinta-feira (5), a secretária-adjunta da Secretaria de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMA), Maria Patricia Mollmann, reconheceu a importância de haver legislação específica para Bioma Pampa e afirmou que o Decreto Estadual foi pensado para ser um documento de consenso entre a secretarias estaduais e para “quebrar dicotomia entre meio ambiente e produção”. O promotor Alexandre Saltz, também entende que é preciso haver legislação própria para garantir a proteção do bioma, mas em forma de lei, e não decreto. Ele ressalta que o MP ainda aguarda o julgamento do processo, já que a entidade ajuizou nova ação relativa aos pontos indeferidos na decisão judicial de dezembro, mas entende que as exigências da lei federal se sobressaem.

A permissão para o desrespeito à Reserva Legal teria origem no artigo do Decreto que, em relação ao Bioma Pampa, descreve “área rural consolidada por supressão de vegetação nativa com atividades pastoris” como “área com ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008, com atividades pastoris em que se manteve parte da vegetação nativa” (art. 5º, II). Como ressaltam Lucas Richter e Orlen Dornelles Ramos, servidores da Divisão de Cadastro Ambiental Rural da SEMA, o Decreto Estadual provocou algumas modificações do SiCAR no Rio Grande do Sul, como a divisão do território de acordo com os biomas Pampa e Mata Atlântica.

Vácuo jurídico deixa o Bioma Pampa desprotegido

Foto: Igor Sperotto

A liminar da Justiça concorda que a atividade pastoril não degrada o Bioma Pampa

Foto: Igor Sperotto

Decreto burla os 20% de reserva legal
De acordo com o professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Valério De Patta Pillar, a intenção do Decreto em burlar a exigência de delimitação de Reserva Legal no Pampa teria relação com o Artigo 68 da Lei Federal, de 2012, que desobriga a preservação nos casos em que a vegetação nativa tiver sido suprimida antes de existir lei exigindo Reserva Legal. 22 de julho de 2008 foi a data de publicação do Decreto Federal 6.514, que dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente. “Como o uso pastoril dos campos desta região é muito antigo (desde a introdução do gado nas Missões pelos jesuítas), podemos perceber a má intenção”. Os servidores da SEMA observam, também, que até 2001, a manutenção de Reserva Legal no campo não era necessária.

Pillar, que também é coordenador da Rede Campos Sulinos, que pesquisa a biodiversidade e a conservação dessas regiões, expressa a posição do grupo. “Temos ressaltado que a exigência de Reserva Legal não prejudica a atividade pastoril realizada sobre campos nativos. Ou seja, o proprietário que delimitá-la poderá continuar utilizando a área de campos para pastejo, desde que adote boas práticas de manejo que conservem a vegetação nativa campestre”. A liminar da Justiça concorda que a atividade pastoril não degrada o Bioma Pampa, pois a atividade contribuiria para a conservação dos campos na medida em que o manejo sustentável das áreas de pastoreio está associado à manutenção da vegetação característica do bioma e da existência de espécies endêmicas.

Incertezas afetam produtores 
Conforme apontam Richter e Ramos, da SEMA, o CAR serve como medida para responsabilização cujo objetivo é identificar inconsistências, e não penalizar. “É uma chance para se procurar a regularização”, afirmou Orlen Ramos. No entanto, o percentual de preenchimento foi muito baixo mesmo após a decisão judicial: em fevereiro, somente 97.226 imóveis haviam sido cadastrados no sistema, 20,25% em relação ao total de imóveis estimado no Estado, que é de 480.000. Já a área total cadastrada foi de 2.154.754 hectares, o que representa apenas 7,65% da área total cadastrável. À época, os técnicos avaliaram que os proprietários de grandes propriedades não estariam cadastrando no aguardo de alguma resolução sobre o Decreto. A uma semana do prazo final de preenchimento, o número de imóveis inscritos foi 293.937, 61,23% em relação ao total estimado.

Segundo Eduardo Condorelli, assessor do Sistema Farsul (Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul), a orientação da entidade aos produtores situados no Bioma Pampa foi que preenchessem o cadastro normalmente, preocupando-se em cumprir a legislação. Porém, antes do envio,  deveriam “certificar-se dos prós e contras da ação do Ministério Público”. O técnico, que ministrou oficinas de orientação para o preenchimento do CAR aos produtores do Estado, observou que, quando o decreto saiu, houve uma evolução muito grande no número de cadastros, “mais de mil por dia”, mas acredita que a questão judicial trouxe insegurança aos proprietários. Condorelli ressalta que o decreto não foi revogado e continua em vigor. Em sua avaliação, o que pode acontecer é a mudança de parâmetros sobre o bioma ocorrer no momento da análise do cadastro pelo órgão ambiental.

Vácuo jurídico deixa o Bioma Pampa desprotegido

Foto: Igor Sperotto

Decreto Estadual foi feito para burlar os 20% de reserva legal

Foto: Igor Sperotto

Os técnicos da divisão do CAR, por sua vez, ressaltam que, por conta da liminar, a categoria “área de atividade pastoril” deveria ter sido desabilitada, já que a decisão judicial exige que o Estado abstenha-se de aprovar o cadastramento de área rural consolidada através de atividade pastoris, devendo esta ser considerada remanescente de vegetação nativa. De toda forma, os alertam para a necessidade do preenchimento, pois quem não faz a inscrição está descumprindo a lei e está sujeito a sanções, como a impossibilidade de acesso ao crédito rural a partir de 2017, previsto pelo Artigo 78 da Lei Federal, e a perda da possibilidade de recomposição da área de preservação permanente (APP) de forma proporcional ao tamanho da propriedade (benefício conhecido como “escadinha”).

O professor Valério Pillar defende como solução para o impasse a adaptação do Decreto do CAR em conformidade com a decisão judicial. Ele destaca que todos saem perdendo com a possibilidade de burla à legislação ambiental, inclusive os produtores que suprimem a vegetação nativa e contribuem para o aumento dos riscos climáticos e, consequentemente, de mercado.  “Quando ocorrem essas perdas, o poder público é acionado para socorrer com renegociação das dívidas a juros subsidiados, ou seja, os prejuízos são socializados”.

Como funciona o registro da propriedade no SiCAR
O Cadastro Ambiental Rural é um registro público eletrônico obrigatório para pessoas físicas ou jurídicas que possuem imóveis rurais. Os cadastros enviados ficam abertos para retificação até o momento da análise individual. Após, a retificação ocorre somente por solicitação do órgão público.

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