Tem inço na lavoura de orgânicos
Foto: Adriana Lampert
Em um país onde o consumo de veneno é de pelo menos 7 kg/per capita – o que confere ao Brasil o título de maior usuário de agrotóxicos do mundo – tocar a consciência de quem lucra com isso é uma tarefa árdua. Ainda assim, o viés desta transformação tem sido traçado por pequenos agricultores, comprometidos com aspectos ecológicos e de bem-estar animal. Há pelo menos uma década, diariamente, esses produtores têm travado verdadeiras lutas para conseguir qualificar a terra e a água, controlar pragas e doenças de forma natural (sem o uso de insumos artificiais) e utilizar remédios homeopáticos para o gado. Os empecilhos estão além da porteira, mas, em muitos casos, a distância que os separa é muito curta. “Todo dia é uma briga, pois os vizinhos querem produzir e produzir, sem se importar com o mal que é colocar veneno na lavoura, afinal não são eles que irão comer”, lamenta o laticinista e engenheiro de alimentos de Novo Hamburgo, Irineu Cesar Scheuer.
Foto; Adriana Lampert
“Fechamos nossas propriedades com barreiras naturais para evitar que nossas 20 vacas bebam água contaminada pelo veneno que os vizinhos jogam nas lavouras ao lado”, comenta Scheuer. “Passamos anos chamando o Ministério Público, a Defensoria Pública, para nos proteger”, relata o produtor, frisando que falta conscientização entre a imensa maioria dos agricultores. O sistema de irrigação usado nas lavouras, com canais que cruzam inúmeras propriedades carregando o veneno que vai servir aos animas obriga produtores orgânicos a bloquearem esses canais e construírem açudes ou bebedouros independentes.
Foi o que fez Scheuer. Além de conseguir na Justiça a garantia de que o entorno da propriedade (50 metros) virasse área de proteção permanente, ele hoje assegura a qualidade da água com açudes próprios, onde são realizadas análises a cada seis meses. Agricultor desde 1997, ele conta que entrou para o mercado do leite em 2013, e – no processo de aprendizado sobre o trabalho – visitou algumas fazendas de criação, principalmente no Paraná. “Em geral é muito triste: os animais são arredios, agitados, maltratados. Na minha propriedade, é proibido bater nas vacas e não é permitido realizar trajetos onde há pedregulhos, que machucam os cascos. Também a pastagem é natural, sem uso de aditivo químico, com hormônio”, garante.
“Quando o vizinho ao lado usa agrotóxicos aos montes, com aviãozinho jogando veneno na sua plantação, o vento espalha para todo lado”, reclama o produtor de gado Claudio Sander. Ele vem tentando implementar pecuária orgânica em Santa Vitória do Palmar, mas as plantações de arroz (no estilo tradicional) do entorno têm sido empecilhos fortes. No entanto, graças à insistência de produtores de orgânicos, a pauta – que antes não chegava nem às disciplinas das faculdades de agronomia – hoje é tema de cursos de capacitação profissional direcionados a professores, técnicos, produtores e demais interessados. “Eu iniciei de forma convencional e nem sabia que era possível produzir carne orgânica”, admite. Foi após um curso sobre orgânicos em 2015 que Sander se conscientizou da quantidade de veneno que a maior parte da sociedade consome todo dia. “Atualmente, estou na fase de preparar as bases, qualificando a terra e a água, não usando agrotóxicos e pesquisando os remédios homeopáticos que irão substituir a alopatia tradicional”, explica.
A concorrência dos agroquímicos
Considerando as áreas ainda não utilizadas, o número de agricultores familiares espalhados pelo país e a relação do surgimento de doenças, como o câncer, vinculadas ao consumo de agrotóxicos, a produção de orgânicos tem forte potencial para crescer no Brasil. Em 2016, foram registrados 277 novos agroquímicos no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), um recorde histórico. Na contramão, surgiram apenas 38 registros de produtos biológicos/orgânicos em 2016, ainda assim representando um aumento (de 65%) ante os 23 de 2015. “Como limitante eu diria que, por exemplo, a oferta de adubo químico é enorme e a de adubo orgânico é muito pequena”, comenta Claudio Sander. Para o produtor, “à medida que aumentar o número de produtores orgânicos, tudo estará mais perto e vai baratear”. Sander idealiza que, a partir daí, o esterco do gado orgânico poderá servir como adubo para as hortaliças, assim como a palha do arroz orgânico pode vir a ser alimento para o gado. “Atualmente, temos que trazer tudo de longe, o que torna o processo muito caro”, explica.
Capacitar para expandir a oferta
Foto: Adriana Lampert
As universidades têm dado pouca importância para a produção orgânica por ser um modelo novo. Não está no currículo das faculdades, mas o Instituto Bem Estar (Ibem) oferece cursos para capacitar e treinar produtores e estudantes”, comenta a médica veterinária e presidente do Ibem, Angela Escosteguy. Coordenadora na área de treinamento para pecuária orgânica e qualidade de alimentos da entidade, ela avalia que algumas barreiras precisam ser vencidas: “é toda uma cadeia, que precisa de acompanhamento”. Como estímulo aos produtores, ela garante: “Há muita demanda reprimida no Brasil. É uma tendência crescente no mundo todo. Além da preocupação com o meio ambiente, as pessoas também não querem ter veneno no prato”, constata.
Angela lembra que os fertilizantes e herbicidas causam desequilíbrio, matando a vegetação de cobertura. Desta forma, o solo fica nu e exposto ao sol, provocando ressecamento da terra. “Quando vem a chuva, o solo é carregado, mandando embora os primeiros centímetros da terra, que são a parte mais fértil. Tudo isso vai para rios, provocando assoreamento e enchentes”. A médica veterinária chama atenção para a diminuição de pássaros que comem parasitas. “É uma preocupação que tem impulsionado muito a busca de um outro modelo de produção. Além disso, temos que começar a pensar no bem-estar dos animais, de forma ética”, alerta. Para a especialista, a conscientização dos consumidores é um dos caminhos. “No momento que o consumidor compra orgânicos, apoia quem preza por tudo isso lá no campo”, explica. O engenheiro agrônomo Bernardo Iochpe completa: “Os orgânicos não devem ser considerados mais caros, mas vistos como um plano de saúde, pois evitam doenças no futuro já que têm mais vitaminas e sais minerais, além de livres de veneno”.
Consumidores ainda são minoria
Foto: Adriana Lampert
Apesar das sete feiras orgânicas disponíveis aos consumidores em Porto Alegre, ainda há muito preconceito em relação aos alimentos produzidos sem a utilização de venenos. “Algumas pessoas ainda não confiam na procedência e acham caro”, comenta Iochpe. Produtor de hortaliças orgânicas, Jonato Moreira concorda que “há muitos obstáculos”. “Mas seguimos. Tem que ter vontade de combater o uso de agrotóxicos”, afirma. Por outro lado, a luta dos produtores conta com inúmeros adeptos entre os consumidores, a exemplo da bióloga Raquel Klein Taulsen e a artesã Andrea Prates Pedroso, que defendem o consumo de alimentos orgânicos. Ambas são consumidoras assíduas em feiras orgânicas. A chef de cozinha Bianca Forner reforça a importância do consumo consciente. À frente do restaurante Antique, Bianca usa produtos orgânicos na elaboração dos pratos. “De fato, encarece uns 50% o orçamento junto aos fornecedores, mas é preciso dar valor ao que comemos. Além de ser mais saudável, o produto orgânico é mais saboroso, tem outra textura e é muito nutritivo”, ensina.
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