Quatro décadas vivendo embaixo da terra
Foto: Igor Sperotto
Depois de mais de quatro décadas vivendo a maior parte dos dias embaixo da terra como técnico de segurança do trabalho na mineração de carvão, Paulo Assis Brandão, 66 anos, relata neste depoimento o fascínio que o extinto ofício exercia sobre os “baratas de mina” ou “tatus”, a exposição aos incêndios e desabamentos dentro dos túneis abertos à base de detonação de dinamite, a mais de 300 metros de profundidade em pleno centro de Charqueadas, uma pequena cidade localizada a 75 quilômetros de Porto Alegre.
Brandão, que junto com o hoje sindicalista Gilmar Loes, o “Barata”, último capataz da mina, foi encarregado de fechar o poço Otávio Reis, em 1990, relata que a economia da cidade ficou dependente do carvão a partir do auge da mineração, nas décadas de 1970 e 1980, e nunca mais se recuperou. A mineração subterrânea faz parte do passado. Assentada sobre um “queijo suíço” devido aos túneis que se estendem sob toda a região, Charqueadas vive da metalurgia. A mineração só existe em Butiá e Arroio dos Ratos, mas agora as minas são a céu aberto e o trabalho é todo terceirizado e mecanizado. O desemprego atinge 20% da população. “Charqueadas devia ter um projeto para se desligar do carvão. Não tem mais como. O carvão é algo que o mundo está eliminando”, aponta neste depoimento gravado na sede do Sindicato dos Mineiros em Charqueadas.
O depoimento de Paulo Assis Brandão integra a série de reportagens que o jornal Extra Classe está produzindo sobre a indústria da mineração no Rio Grande do Sul. O território gaúcho é alvo de, ao menos, 166 novas plantas de mineração, entre as quais desponta o projeto da Mina Guaíba, de extração de carvão mineral, que a empresa Copelmi pretende abrir entre as cidades de Eldorado do Sul e Charqueadas.
“Na década de 1970, o sonho da gurizada de Charqueadas, era trabalhar na mineração. Era o que tinha, né? Já estavam construindo a usina siderúrgica da Aços Finos Piratini na época, uma grande estatal. Eu tinha 17 anos, tava muito bem na escola, no ginásio, e teve uma espécie de seleção pra mandar uma turma fazer estágio na Suécia para trabalhar na Piratini, mas era tudo carta marcada, as vagas já estavam prometidas, o pessoal veio de outros lugares onde dominava a Aliança Renovadora Nacional (Arena), de Santa Cruz do Sul, onde tinha colonização alemã. O pessoal de Charqueadas foi excluído, pouca gente daqui foi trabalhar na siderúrgica. Eu era frentista de um posto de gasolina. Meu tio era vereador em São Jerônimo. Pra pegar na mina não tinha vaga. Daí saiu alguém, o Volnei, que fazia a manutenção das lanternas dos mineiros. Ele perguntou de manhã bem cedo pro meu tio se eu não queria trabalhar na mina. Era o que eu mais queria, o salário era bom. Meu tio foi até a empresa acertou tudo”.
Todos queriam ser mineiros, porque tudo era movido a carvão
“Toda minha família trabalhou na mineração no início. O único que não ficou foi o meu pai, que era modelista de fundição, daqueles cursos antigos do Senai, na mina do Rato. Se formou, trabalhou um ano e foi pra Albarus, Space, Taurus, não quis saber de mina. Depois voltou, foi supervisor aqui na Aços Piratini e se aposentou. Mas os meus tios foram mineiros de produção. Meu avô foi maquinista do Consórcio Administrador de Empresas de Mineração (Cadem). Os trens traziam o carvão da mina do Rato para o portinho, onde carregavam as chatas para levar o carvão para Porto Alegre e Rio Grande. Esse carvão abastecia os navios. Era uma época em que tudo era movido a carvão. Quem viu o filme Titanic vai lembrar dos caras jogando carvão de pá nas caldeiras do navio”.
Foto: Igor Sperotto
A autoridade máxima de Charqueadas: o chefe do RH
“De tarde me apresentei pro chefe do RH, o cara que pelo cargo que ocupava era poderoso em Charqueadas, mandava no delegado, no juiz, em todo mundo. Ele era padrinho do meu pai, me atendeu de costas, sem me olhar, me xingou. “Vou te dar o emprego porque o teu tio veio aqui e foi direto no engenheiro”. Me deu um papel pra ir na delegacia ver se eu não era fichado, pra ir no dentista, no serviço médico. No consultório, o enfermeiro foi chamar o médico, que tava dormindo. E já veio me enchendo de desaforos. Pensei, pô, antes de pegar na empresa já sou mijado por todo mundo… “Tu vais trabalhar onde, guri? Debaixo da mina?” Respondi que não tinha idade pra isso. Naquela época a legislação permitia trabalhar na mina subterrânea quem tinha entre 21 e 50 anos. Perguntou se eu tava com alguma doença e mais nada. Assinou na soleira da porta mesmo e me liberou”.
Quando desci pra mina pela primeira vez, chamei pela minha mãe
“A mineração subterrânea era uma atividade interessante, fascinante, mas muito assustadora. Depois de um incêndio desses, tudo se perdia. Além de vidas, em alguns casos, os túneis, os trilhos, os vagões de carregar carvão, ferramentas e equipamentos, lanternas, máscaras. Era tudo soterrado ou ficava pra trás. As paredes eram lacradas para evitar a perda de oxigênio e se abriam novas frentes de trabalho. Vou confessar que quando eu desci no primeiro dia pra fazer estágio eu pedi pela minha mãe. Até pra acostumar com o ar rarefeito lá embaixo dava muita dor de cabeça”.
Achei meu caminho na segurança do trabalho num momento em que o país era campeão em acidentes, o que emperrava financiamentos internacionais
“E assim fui trabalhar na mina. Não por ser bonito nem melhor que os outros, mas porque encontrei o meu caminho na área da segurança. Era uma época de muita preocupação com acidentes de trabalho. O Ministério do Trabalho editou a NR4, que obrigava as empresas a instituir o Serviços Especializados em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho, com a finalidade de promover a saúde e proteger a integridade do trabalhador no local de trabalho. Dos 1,5 mil empregados que a Copelmi tinha em Charqueadas, uns seis estavam fazendo curso técnico de nível médio. Tinha gente mais qualificada que tocava a parte mais complexa da empresa. Tudo que era consumido na mina era fabricado na superfície, tinha oficina mecânica, caldeiraria, fundição, serraria, marcenaria, carpintaria, tudo que a gente imaginasse. Fomos escolhidos, quatro que faziam o ensino médio e fizemos um curso de inspetor em segurança do trabalho, fizemos estágio na Fundacentro, com o objetivo de nos qualificar e diminuir os acidentes de trabalho na mina – e isso não era um problema só da mineração, o Brasil era campeão mundial de acidentes do trabalho. O governo militar estava envergonhado com essa condição, que atrapalhava a liberação de financiamentos do Banco Mundial. Era 1974, Júlio Barata, ministro do Trabalho e Previdência Social do governo Médici, foi incumbido de criar essas políticas. Assim surgiram profissões novas, técnico, inspetor, engenheiro de segurança do trabalho, médico do trabalho. Criamos uma equipe de segurança na mina subterrânea em 1975, mas houve resistência”.
Foto: Igos Sperotto
Tu descias trezentos e poucos metros terra adentro sem saber se voltaria vivo
“Os mineiros resistiram, eram uma categoria xucra, tinha gente que trabalhava de alpargatas nos túneis… Tivemos que mudar toda essa cultura mineira, porque lá embaixo era outro mundo. Tu descias trezentos e poucos metros terra adentro sem saber se voltaria vivo. Lá embaixo o cara se transformava, né? Embaixo da terra o que valia era a lei do mais forte. Havia os grandes heróis, os caras que corriam risco de vida e, depois que terminava o turno de trabalho, iam para os botecos tomar cachaça, contar histórias de heroísmos vividas na escuridão da mina”.
Nos túneis, todo mundo improvisava e era devoto de Santa Bárbara
“Na mina, era uma média de 200 acidentes de trabalho por mês e de dois a quatro com mortes por ano. Mudar isso foi muita luta. Todo mundo era devoto de Santa Bárbara, a padroeira dos mineiros, mas a imprudência corria solta. Como acontece no trânsito, no verão o pessoal ficava mais agitado, dormia menos, aproveitava mais o tempo. E ficava exposto a acidentes, numa atividade de alto risco. Na mina, os acidentes com mortes aumentavam nos meses de verão, com a euforia de final de ano, Natal, a expectativa de receber o décimo terceiro. Facilitavam um pouco nas quebras de procedimentos né? Depois, quando foi feito todo um planejamento, nós conseguimos reduzir. Isso foi na década de 1990, quando veio um engenheiro de segurança muito competente, o Clodinei Elias Panosso. Reduzimos para 18 e depois para seis acidentes por mês, todos acidentes com lesão leve. Sem mortes. Foram quase 13 anos sem acidente fatal. Depois o engenheiro foi embora, por conta de umas picuinhas. Ele tinha recebido uma bolsa de aperfeiçoamento de seis meses na mineração no Japão e isso causou inveja nos seus pares. Depois veio a era moderna na Copelmi, de 1990 a 1996, quando a empresa se consorciou com a RTZ. Nessa época nós estávamos conservando a mina do poço Otávio Reis, um trabalho que foi até 30 de outubro de 1996. Uma turma de notáveis né? Só profissionais estabilizados. Sindicalistas, cipeiros, aqueles que estavam a menos de dois anos da aposentadoria especial. Naquele mesmo ano chegou o gerente da mineração e mandou botar um cartaz na porta do elevador. Avisou: “ninguém desce mais na mina”. Ainda perguntei se ele tinha autorização da mineradora. Respondeu que tinha autonomia: “Faço o que eu quiser”. A mina ficou uns quatro dias fechada, não deu mais pra fazer nada, porque com o desligamento do sistema de bombeamento de água das galerias ficou tudo alagado. Eram bombas de seis estágios, que mandavam água 360 metros acima. Por aí tu imaginas a quantidade de água… Foi um desastre. Inviabilizou a mina. E custou a exoneração do gerente autoritário (risos). Depois fui transferido pra Butiá, onde trabalhei 12 anos na mina a céu aberto”.
Foto: Igor Sperotto
A escavação das galerias foi longe demais, por baixo da cidade e do rio Jacuí
“A mina de Charqueadas fechou por inviabilidade econômica, em 1990. Os túneis já estavam muito longe da boca da mina, iam pra lá de Triunfo. O carvão extraído era trazido pelos túneis e depositado em um silo de onde subia de elevador para a superfície. A gente ia cavando os túneis em formato de espinha de peixe e distância entre o local de extração e o silo foi ficando cada vez maior, alguns túneis passavam por baixo do rio Jacuí, a 400 metros de profundidade. Isso fazia com que o custo da mineração aumentasse sem parar. Um mineiro de produção tinha um salário que seria hoje em torno de R$ 8 mil. Saudade daquela época é só do salário. Isso aí tem muita coisa encoberta. Em 1987 a gente tinha recebido ordem pra fazer um trabalho de preparação da mina para fechamento. Eu e outro técnico trabalhamos só à noite, com a mina vazia, medindo a presença de oxigênio. Eram dois poços paralelos de descida para a mina. Um deles tinha um sistema de ventilação forçada feito por um exaustor que puxava 3,2 mil metros cúbicos de ar por minuto e ficava ligado 24h para forçar a entrada de ar no outro poço. O ar que entrava era distribuído com uma velocidade de 2 mil e tantos metros cúbicos por minuto, já tinha uma perda no caminho, caía para 900. E para a redistribuição no fundo da mina a gente tinha todo um planejamento técnico pra não colocar mais de 500 metros cúbicos por minuto porque o ar numa velocidade acima disso entra com muita força nas fissuras da camada de carvão e causa combustão espontânea. Era incêndio na certa”.
De noite, a cidade tremia
“O teto das minas era muito ruim. O teto era muito ruim. O arenito que em SC fica em cima aqui é embaixo. O avanço era sempre feito com denotação de dinamite. Causava um impacto na estrutura. Nós mineramos por baixo do rio Jacuí, a quase 400 metros de profundidade e 3,5 mil metros pro lado de São Jerônimo, e para o centro da cidade. Na época, a ordem era extrair o máximo de carvão dos túneis, retirando até 67% da jazida, o que tornava a atividade muito perigosa para os mineiros, provocava rachaduras nas casas na superfície. Assim, a extração caiu a 33% da jazida. Isso tornou inviável a mineração. Daí tiveram que inverter todo o sistema de mineração, porque começou a provocar rachaduras nas casas, problemas nos bueiros. Teve uma quadra de futebol no centro que ficava sobre uma galeria e desceu 31cm. De madrugada as casas tremiam”.
Foto: Igor Sperotto
O fogo não era intenso, mas a fumaça tomou conta da mina. Dos 18 mineiros que estavam no fundo, resgatamos 13. Cinco morreram por asfixia
“Teve três grandes incêndios na mina subterrânea. Em 1976, perdemos toda a zona oeste, todo o maquinário ficou lá no fundo, trabalhamos nove meses pra contenção desse incêndio. Em 1978, outro grande incêndio, na zona sul. Em 12 de dezembro de 1980, na zona norte, com mortes. Um motor elétrico se incendiou. O fogo não era intenso, mas a fumaça tomou conta da mina. Dos 18 mineiros que estavam no fundo, nós resgatamos 13, Cinco colegas que estavam nas galerias mais distantes, as galerias L9 e L10, morreram por asfixia. Essa tragédia deixou marcas, pelas vidas dos colegas que se perderam: Athair Mendes Soares, João Plínio da Silveira, Marino da Silva, Silvino Baptista da Silveira e Valdoir Santana”.
O elevador de sete toneladas despencou em queda livre. Era dia de futebol. Embaixo, uma equipe de mineiros esperava pra subir
“Em 1978, teve o acidente do elevador. Foi num domingo. Era escalada uma equipe pra fazer a revisão e manutenção da mina. Esse acidente do elevador tem muita história. Estava saindo de casa para assar uma carne na casa do meu pai. Chegou o carro da empresa. O elevador, chamado de gaiola, pesava seis toneladas e estava lotado. Despencou sobre outro grupo de mineiros. Eles não sabiam quantos tinha no elevador quando caiu. Houve uma falha humana muito grande. Também tem outras histórias que agora não convém remexer. Eu sei que o cabo não rebentou. Primeiro o pessoal tava descendo uma madeira de sete metros que tinha toda uma técnica pra descer, amarrar por baixo da gaiola até chegar no fundo da mina… O oficial, dizem, foi tomar café e deixou um guri que estava treinando, era pra ele puxar o elevador só com a carga. E aí tinha um jogo de futebol e os caras que vinham do fundo, que foram atingidos, tinham soltado mais cedo e estavam esperando pra subir. Não sei o que aconteceu. Não houve acionamento do fim de curso e o elevador ficou lá em cima patinando até escapar o cabo e descer em queda livre. Morreram três mineiros”.
O futuro da mineração é bem diferente, sem mineiros
“No contexto das técnicas atuais de mineração eu participei da transição da mineração subterrânea para a de céu aberto, em Butiá. Tinha o passado lá que era ruim e depois veio a parte boa da organização da Copelmi, como empresa moderna na área de segurança de trabalho e na área produtiva. Investiram muito em treinamento de mão de obra. Daí vieram as questões ambientais, que os movimentos sociais e os ambientalistas apontam com toda a razão. A mineração causa impacto e não é pouca coisa. Mas é justo lembrar que foi a primeira empresa a conseguir a certificação da ISO 14000. Enfim, arrumou muita coisa. Mas o passado é história, a memória que ficou, que é da nossa cultura regional. O que vale é o futuro. E o futuro da mineração é bem diferente do que foi lá no passado. A tecnologia hoje é outra, hoje não existe mineiro, que ia lá com uma furadeira manual pra colocar dinamite, detonar e tirar carvão com uma pá, num ambiente altamente insalubre. Hoje a maioria é operador de máquina, trabalha dentro de uma escavadeira de grande porte. É uma atividade que vai mexer com o meio ambiente, remover terra, causar impacto”.
Foto: Igor Sperotto
O emprego gerado pela mineração é sazonal e os mais bem remunerados sempre foram para gente de fora
“Acredito que na abertura da cava da mina Guaíba, no início da preparação do terreno, vai haver emprego, mas isso é sazonal. Terminou isso aí, a empresa vai trabalhar com 300 operadores, a parte administrativa é toda terceirizada. Claro que vai ter emprego indireto, vai ter transporte, alimentação. Os empregos mais bem remunerados sempre foram para gente de fora. Era assim na empresa antecessora da Copelmi”.
Charqueadas devia ter um projeto pra se libertar da mineração
“Maior impacto que tu tive profissionalmente foi quando eu recebi uma ordem de descer na mina às 6h e retornar só depois do meio-dia e ver como é que o pessoal se comportava lá embaixo, era a primeira grande crise, aí um elevador eu já sabia que a maioria ia ser demitida. Olhei aquele pessoal lá trabalhando, produzindo, brincando, porque pra eles extrair carvão era divertido, fazendo planos pro futuro. Dali a pouco, a cada 14 do elevador, 12 recebiam o aviso prévio. Os acidentes sempre me preocuparam, como um prevencionista, mas a pior coisa foi o desemprego, o que mexeu com toda a economia da cidade. Charqueadas devia ter um projeto para se desligar do carvão. Não tem mais como. O carvão é algo que o mundo está eliminando. Alguém vai ter que fazer alguma coisa com esse carvão de uma outra maneira esse projeto dos coreanos de gaseificar o carvão, não sei, não conheço, mas o carvão é algo que a nossa cidade se ligou muito né? A empresa tinha 1,5 mil empregados. Tu chegavas no comércio se tu eras mineiro tinha crédito livre. Comprava cachaça em qualquer boteco fiado. Quando fechou a minha tinha pouco mais de 200. O maior impacto foi o problema social que criou na cidade na época das demissões e que deixou marcas na economia local até hoje. De dezembro de 2014 a abril de 2016 o Sine de Charqueadas registrou 4 mil desempregados – 10% da população”.
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