Governo quer mudar Código Ambiental sem passar pelo Consema
Foto: Itamar Aguiar/Palácio Piratini
Foto: Itamar Aguiar/Palácio Piratini
Eduardo Leite e secretários apresentaram aos deputados as mudanças que o governo quer fazer na legislação ambiental
Surpreendido com a notícia de que a minuta de um novo Código Ambiental já está na Casa Civil, ou seja, pronta para ser enviada como projeto de lei para ser votado na Assembleia Legislativa, um grupo de analistas ambientais da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), que trabalha com licenciamento nas mais diversas áreas, se organizou para denunciar a falta de transparência e cobrar espaços de discussão. “O que está acontecendo é uma ilegalidade, (a proposta) deveria passar pelo Conselho do Meio Ambiente (Consema), o que não aconteceu. É um atropelo, ninguém está sendo chamado para debater”, aponta o geólogo e engenheiro de segurança do trabalho Nilo Sérgio Barbosa, um dos integrantes do coletivo.
O projeto de reformulação do Código Ambiental, de autoria do Executivo, propõe a revogação da Lei 11.520/2000. Com mais de 480 inserções e supressões de trechos da Lei original, a proposta foi apresentada pelo governador Eduardo Leite (PSDB) em um café da manhã com deputados e coordenadores de bancada no Galpão Crioulo do Palácio Piratini, no dia 20 de agosto.
O governo “vendeu” a proposta aos parlamentares com o argumento de “modernização” para o desenvolvimento de empresas e “proteção” ambiental, e há quem aposte que a iniciativa deixa o caminho livre para os projetos de mineração do Polo Carboquímico: o RS é alvo de 166 projetos de extração de carvão, fosfato, titânio, cobre e zinco. Entre as modificações, a Licença Ambiental por Compromisso (LAC), ponto mais criticado por técnicos e ambientalistas, foi defendida pelo secretário de Meio Ambiente e Infraestrutura, Artur Lemos Júnior. “É diferente do ‘autolicenciamento ambiental’, porque, neste caso, o empresário faria tudo sozinho. No caso da LAC, vai existir um órgão fazendo questionamentos e exigências e, aí sim, o empreendedor obterá a licença e poderá iniciar o empreendimento”, defendeu. De acordo com a pasta, o projeto está na Casa Civil e deve ser remetido à Assembleia para votação em outubro.
No artigo 53, inciso VI, o “novo” Código Ambiental estabelece um “procedimento eletrônico e automático autorizando a instalação e a operação da atividade ou empreendimento, mediante declaração de adesão e compromisso do empreendedor aos critérios, pré-condições, requisitos e condicionantes ambientais estabelecidos pela autoridade licenciadora e respeitadas as disposições definidas pelo Consema”.
SEM DEBATE – “Quando se manda para a Casa Civil, não se ouve mais ninguém. É um desprezo muito grande a um corpo técnico e à sociedade. Ela é que vai sofrer as consequências”, critica Barbosa. Luis Fernando Perello, biólogo e doutor em ecologia, colega de Nilo, questiona: “A quem interessa não ter transparência, não discutir com a sociedade algo que vai afetar a todos? Tudo está sendo muito rápido e com um decréscimo de qualidade. Não haverá mais uma descrição do que será feito”, aponta.
No início, o grupo foi formado por seis profissionais, agora já são cerca de 60 analistas – de um total de 210 distribuídos em todo o estado. E se somaram a eles técnicos da Sema. O corpo técnico passou a fazer uma leitura criteriosa do projeto. “Concluímos que ele não tem a estatura técnica que interessa para o estado fazer uma boa gestão ambiental”, explica o biólogo.
Barbosa e Perello participaram do longo processo de debates que resultou na elaboração do atual Código Ambiental, em vigor desde 2000. “Quando ele foi produzido, foram ouvidos todos os segmentos da sociedade. Foi uma discussão ampla, levou 10 anos para ser produzido, do embrião ao texto final. É um regramento que abarca todas as atividades ambientais, antes fragmentadas”, recorda Perello. “Pelo vanguardismo, nosso Código foi copiado por outros estados brasileiros.”
Foto: Igor Sperotto
Enquanto houver um documento como o atual Código Ambiental, os técnicos atuarão com respaldo, declara Nilo Barbosa. “Nós somos os operadores desses artigos, não podemos ficar fora da discussão. Porque o Código Ambiental trata de licenciamento e também de toda uma gestão ambiental no estado. Somos obrigados a tomar decisões em cima exatamente desses artigos”, ressalta.
Para dar uma dimensão do que os especialistas falam, em 2018 foram concedidas 11,5 mil licenças em todo o estado. Em 2019, até o momento, foram emitidas 10.433 licenças, “tudo conforme o regramento do Código atual”, destaca Perello. Ainda, em 2018, foram expedidos 2.162 autos de infração e, em 2019, 1.851 até setembro. “A cada cinco licenciamentos emitidos, há um auto de infração, e nós não gostaríamos de ver aumentados os autos de infração.” Não serão os técnicos a fazerem a lista das atividades a serem licenciadas. “Já olhamos o projeto e temos opinião formada sobre vários artigos. Para nós, ao contrário do nome da minuta, que chamam de modernização, não moderniza absolutamente nada. Em alguns casos, inclusive, retrocede”, diz Barbosa.
Parcelamento urbano e autolicenciamento
Entre as críticas dos especialistas, está a reformulação das regras para a divisão do solo em terrenos. “Todo o item do parcelamento urbano foi substituído. Agora, permite que áreas de preservação ambiental sejam afeitas a outras atividades”, destaca Nilo Barbosa. Os nove artigos sobre gerenciamento costeiro foram reduzidos a dois, os quais praticamente eliminam as obrigações de gerenciamento. “Isto é um retrocesso”, protesta Barbosa.
Foto: Igor Sperotto
O novo Código ainda prevê a contratação de pessoa física ou jurídica para atuar no licenciamento a fim de cumprir novos prazos de emissão de licença. Os servidores da Fepam são concursados, treinados para trabalhar com licenciamento. “Aí, amanhã, para atender a um prazo de emissão de licença que está muito mais preocupado com a velocidade do que com a qualidade da preservação, se abre uma contratação e chama alguém para fazer o licenciamento, o que pode fragilizar o processo”, desconfia o geólogo e engenheiro de segurança do trabalho. Perello vê mais uma incompatibilidade na contratação de terceiros da iniciativa privada: “Hoje é licenciador, amanhã está no lugar de quem pede licenciamento. É um absurdo”. Barbosa também aponta que a LAC fere o princípio da precaução. “Este princípio existe justamente para que se possa antecipar episódios que tragam danos ambientais irreversíveis. A LAC termina com isso. Será o caos. Ela já foi implantada na Bahia e em Santa Catarina. Há fortes críticas nos dois estados e do Ministério Público”, alerta.
No caso de empreendimentos que dependam de remoção ou reassentamento de pessoas, o Código em vigência só libera a licença após a comprovação de que os ocupantes da área foram realocados para outro local com infraestrutura e mediante cronograma prevendo as etapas de assentamento. O novo projeto isenta o empreendedor dessas obrigações ao estabelecer que o empresário, a Fepam e assentados devem validar um projeto de assentamento. “Mas o que é e como validar?”, questiona Perello.
Os analistas argumentam que uma proposta que se diz ser moderna não toca em uma das questões mais importantes da atualidade: as mudanças climáticas. Eles informam que se agregaram ao grupo que analisa a nova proposta profissionais da própria Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura que trabalham na questão florestal, de transporte de madeira, entre outros. Eles acreditam que o Código Florestal será o próximo a ser alterado.
Ameaça à consolidação de leis
Para o presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), Franciso Milanez, faltam debate e transparência por parte do governo em relação à proposta. Milanez argumenta que o Código Ambiental atual é uma consolidação importante de leis, que agora está sob risco. “Não se sabe exatamente quais são as propostas. Não chamaram ninguém para o debate. E a moda agora é apresentar vários projetos, em paralelo, e não se consegue acompanhar nenhum”, critica. O ambientalista lembra que a discussão democrática que pautou a construção do Código em vigor não está acontecendo atualmente. “São propostas oportunistas, em geral fragmentadas, que dificultam a análise.” O autolicenciamento significa o fim da responsabilidade dos governantes, alerta.
“Essa proposta atende a interesses de entidades empresariais e empresários individuais que reclamam que as leis do meio ambiente trancam o empreendedorismo. E os governos, apoiados por essas pessoas, têm esvaziado constantemente os órgãos ambientais, como foi a destruição recente da Fundação Zoobotânica.” Alguns ambientalistas chegam mesmo a dizer que a minuta que está na Casa Civil foi produzida com o assessoramento da Farsul e da Fiergs e que essa mudança interessa diretamente ao agronegócio e à indústria.
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Para servidores da Fepam, projeto representa “comprometimento com facilitações e descompromisso com os valores ambientais”
O projeto que modifica o Código Ambiental do RS, encaminhado pelo Executivo à Assembleia Legislativa para ser votado em regime de urgência mereceu manifestação dos servidores da Fepam. Confira a seguir a manifestação prévia seguida da íntegra de Nota Técnica referendada em assembleia realizada pela categoria no dia 1º de outubro:
O Projeto de Lei n° 431/2019, objeto desta análise, encerra uma das mais contundentes modificações e fragilizações do patrimônio ambiental do Estado do Rio Grande do Sul. Sob a égide da “modernização”, o documento mostra comprometimento com facilitações e descompromisso com os valores ambientais. Mantido como está, as consequências nefastas deste projeto de lei acabam por descontruir além da Lei Estadual n.º 11.520/2000, do Código Estadual vigente, também Código Florestal, Lei Estadual n.º 9.519/1992, além de desconsiderar o Capítulo VI da Constituição da República Federativa do Brasil – 1988.
Os empregados reconhecem a necessidade de atualizações, adequações e modernizações das legislações, pois elas devem acompanhar a evolução das sociedades. Porém, condenam frontalmente os encaminhamentos que não privilegiam a discussão com todos os interessados que fazem parte do tecido social.
Acesse a íntegra da Nota Técnica.