Veneno nas águas
Foto: Sergio Louruz/PMPA
Em pleno século 21, há municípios gaúchos com zero de tratamento de esgoto. É o caso, entre tantos outros, de Santo Antônio da Patrulha, que não possui plano municipal de saneamento básico. De acordo com a edição 2021 do Ranking do Saneamento, o Rio Grande do Sul está ainda mais distante das metas de universalização do saneamento básico. Outro problema é o uso de venenos em larga escala em plantações, principalmente na orizicultura, que têm causado danos em áreas de preservação ambiental, além de agravar a poluição dos rios
Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) preconiza que, até 2033, 92% dos esgotos brasileiros estejam tratados. Divulgado no primeiro trimestre, o estudo, feito pelo Instituto Trata Brasil, avaliou indicadores de abastecimento de água e de coleta e tratamento de esgoto nas cem maiores cidades do país.
Dos seis municípios do estado que constam no ranking, cinco perderam posições frente ao levantamento de 2020. Porto Alegre é o município com melhor posição: 42ª. Gravataí, cujo desempenho é considerado o mais fraco, ficou em 88º lugar. A situação do esgotamento sanitário é alarmante. Estima-se que apenas 32,1% da população receba atendimento de coleta de esgoto, enquanto que apenas 26,2% do volume dos esgotos são tratados. Dos 497 municípios rio-grandenses, 135 não têm plano de saneamento concluído.
A falta de saneamento, alerta o ecólogo Marcelo Dutra da Silva, professor Ecologia da Universidade Federal de Rio Grande, traz consigo o problemático contexto que, fora a proliferação de doenças que põem em risco a saúde da população, deságua diretamente nas bacias hidrográficas. Ele cita o quadro de Pelotas, que, embora seja uma cidade muito maior que a vizinha Rio Grande (onde 30% dos esgotos são tratados), não possui tratamento de esgoto. “Pelotas é um dos ‘melhores piores’ exemplos que se pode ter na coleção de municípios gaúchos que não contam com saneamento”, critica.
Além disso, acrescenta ele, trabalhos recentes, publicados pelo grupo de pesquisa IFSul (do Instituto Federal do Rio Grande do Sul), mostraram elevada concentração de metais pesados nos sedimentos dos corpos hídricos que rodeiam a cidade. “Para piorar, os estudos também revelaram que esses contaminantes chegaram aos peixes e no camarão, que apresentaram concentrações elevadas de chumbo.” Na avaliação de Marcelo, o estado como um todo, no que diz respeito ao saneamento, vive uma situação extremamente precária.
Outro problema, aponta ele, tem a ver com os venenos utilizados em plantações. A pulverização de lavouras, especialmente as de arroz, além de provocar delicados danos ambientais em áreas de preservação ambiental, agrava a poluição dos rios. No Rio Grande do Sul – onde a chamada “atividade agrossilvopastoril” (sistema que integra lavouras com espécies florestais e pastagens) é intensa e a aplicação do veneno dá-se em grandes quantidades –, alerta o ecólogo, contabilizam-se, na água ofertada nas torneiras, pelo menos 27 tipos de pesticidas. Destes, o Glifosato, amplamente utilizado no controle de ervas daninhas, é comprovadamente cancerígeno. “A utilização do Glifosato revela o quão frágil é a regularização dos pesticidas no Brasil”, denuncia.
O volume hídrico utilizado em determinadas áreas de plantio é outra conjuntura permanentemente complicada. A bacia do Rio Santa Maria (que banha seis municípios) está entre as consideradas críticas pelo Departamento de Recursos Hídricos (DRH), devido à alta demanda de água para irrigar lavouras de arroz. Porém, quanto à presença de agrotóxicos, fungicidas, herbicidas e fertilizantes, a situação é menos drástica. Segundo estudos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), as amostras recolhidas na bacia não apresentaram níveis de envenenamento fora dos padrões.
Foto: Jackson Muller/Divulgação
Alessandro de Ávila Noal, presidente do Comitê da Bacia do Rio Santa Maria, diz que, na região, praticamente não há indústrias, o que, certamente, contribui para uma melhor condição das águas. O maior fator poluente, frisa ele, é a ausência de saneamento. Nos seis municípios de abrangência, apenas 16% dos esgotos, ao todo, recebem tratamento. Embora uma pequena parte dos resíduos, esclarece Noal, tenha o chamado “separador absoluto” (rede projetada para transportar exclusivamente despejos industriais e esgoto doméstico), o restante “cai” diretamente na rede fluvial. Ou, então, deposita-se nas fossas sépticas. “Infelizmente, seja a curto ou médio prazo, eu não vejo uma perspectiva muito boa de melhora. E não acredito, por outro lado, que a privatização da Corsan vá resolver”, lamenta Noal.
Já na bacia hidrográfica do Rio Tramandaí, situada na região do Litoral Norte, o deficiente esgotamento sanitário acaba acarretando, também, em reveses de natureza biológica. João Vargas de Souza, presidente da Bacia do Rio Tramandaí, atenta para o fenômeno, ocorrido por lá, no qual o efluente final deixa resíduos de fósforo e nitrogênio, que, ao serem lançados nos mananciais, produzem uma intensa floração de algas. A complicação, elucida Vargas, é que, ao morrer, tais organismos liberam uma série de toxinas nas águas: “Trata-se, literalmente, de verdadeira avalanche de algas, o que faz com que percamos muito a qualidade das nossas águas”.
Outro aspecto importante que tem afetado a potabilidade das águas da bacia do Rio Tramandaí diz respeito à selvagem especulação imobiliária (a região do Litoral Norte é a que mais cresce no estado). Em 2021, em virtude da pandemia do coronavírus, a região, cuja população local, em média, contava 360 mil pessoas, passou para mais de 700 mil. Ou seja, praticamente duplicou. São pessoas, constata João Vargas, que foram isolar-se, gostaram de morar no litoral e dali não mais saíram. “Essa circunstância populacional acarreta uma série de questões, a exemplo de mais água a ser distribuída. E um dos efeitos desse aumento de habitantes, por sua vez, é a geração de mais efluentes domésticos.” As soluções para o caso, apregoa Vargas, existem, porém, a um custo financeiro bastante elevado.
Foto: Alana Hansen/Divulgação Feevale
Discurso das “águas arrasadas” desvia do principal
Rafael José Altenhofen, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Caí e também um dos coordenadores da Oscip UPAN (União Protetora do Ambiente Natural), a despeito do aflitivo cenário em que os rios gaúchos estão mergulhados, acautela sobre a importância de evitar-se unicamente o calamitoso discurso das “águas arrasadas”. A tendência, com esse tipo de abordagem, argumenta Altenhofen, é afastar, cada vez mais, a população do centro da discussão – quando o que se quer, conforme ele, é justamente o contrário. “Precisamos envolver, definitivamente, a população nos debates e tomadas de decisões quanto aos corpos hídricos”, exorta.
Para Rafael, não se pode esquecer que, nas últimas três décadas, houve uma evolução da legislação, sobretudo acerca dos parâmetros de lançamento de efluentes industriais. O mesmo, complementa ele, deu-se com a incorporação dos mecanismos legais que fiscalizam processos de licenciamento ambiental. Em meados da década de 1990, situa Rafael, a principal fonte de poluição era a industrial, enquanto que, hoje, cerca de 85% advêm da carga de esgotamento doméstico. Municípios como Novo Hamburgo e São Leopoldo, sublinha Altenhofen, têm investido fortemente em políticas de saneamento. Ele cita o caso de São Leopoldo, que, na década de 1940, quando da implantação de sua primeira estação de tratamento, chegou ao patamar de 80% de seus esgotos tratados. “O problema é que, depois disso, nunca mais houve investimento. Em outras palavras, essas ações precisam ter continuidade, para que vicejem.”
Foto: Igor sperotto
Foto: Igor sperotto
Monitoração do coronavírus nas águas
Foto: Universidade Feevale/Divulgação
Um pioneiro estudo no Sul do Brasil, desenvolvido na Universidade Feevale, vem analisando, desde maio deste ano, amostras de água coletadas em estações de esgoto em Porto Alegre e Região Metropolitana. O objetivo é intensificar a vigilância epidemiológica do coronavírus em efluentes e mananciais e dar suporte às autoridades de saúde, ao longo da pandemia. A pesquisa mostrou que 17% das amostras analisadas, até o momento, apresentaram resultados positivos. “O estudo trará uma maior compreensão da dinâmica viral e, dessa forma, poderá auxiliar na tomada de decisão das medidas de prevenção”, explica Caroline Rigotto, professora do mestrado em Virologia da Feevale e uma das coordenadoras do projeto.
O trabalho tem se mostrado bastante eficiente, considera Caroline, no sentido de avaliar uma tendência, de aumento ou diminuição, da presença do Sars-CoV-2, causador da covid-19, nos esgotos. “Podemos, a partir daí, fazer um comparativo com casos ativos e ter uma percepção do que está acontecendo. Funciona (o estudo) como uma espécie de termômetro.”
Ela também observa que a eficácia da cobertura vacinal tem se revelado nos resultados. Caroline diz que, pelo menos por enquanto, não se pode assegurar que exista o risco de contágio por coronavírus ocasionado pelo contato direto ou indireto com o esgoto. O importante, ressalta a pesquisadora, é ter cautela. E prevenção. “Das tantas problemáticas apresentadas pela água, decorrentes da falta de saneamento, que, pelo menos, a existência da covid-19 possa levar a sociedade a uma discussão realmente séria sobre como melhor tratar os seus esgotos”, conclui ela.
Leia também a primeira e a terceira parte da série: