Orla do Rio Grande do Sul: refúgio para a vida marinha
Foto: Maurício Tavares/ Ceclimar/ Divulgação
A não ser pela Barra de Tramandaí e pela desembocadura da Lagoa dos Patos, em Rio Grande, o litoral do Rio Grande do Sul é uma linha reta que se perde no horizonte por 610 quilômetros. Desde a foz do Rio Mampituba, na divisa com Santa Catarina, até o ponto em que o Arroio Chuí devolve ao Oceano Atlântico suas águas pantanosas, na fronteira com o Uruguai, extremo-sul do Brasil, a costa oceânica no estado apresenta trechos ininterruptos de praias que chegam a 220 quilômetros repletos de espécies da fauna marinha. Um habitat que combina características de clima tropical e temperado, com influência de águas quentes e frias oriundas do norte e do sul do continente, que abriga ampla diversidade da vida marinha em seus ciclos de vida migratória
Em diversas épocas do ano, o litoral do extremo-sul do Brasil se transforma em um dos mais exuberantes santuários da vida marinha do continente. Este mar, que até no verão se pinta de marrom-escuro pela incidência de algas e sedimentos provocados por chuvas e marés, alimenta bandos de pinguins-de-magalhães, nascidos na costa gélida da Argentina, entre outras espécies da fauna marinha.
Chegam no litoral gaúcho em seu primeiro ano de vida atrás de cardumes de anchoitas. Os peixinhos semelhantes a sardinhas são abundantes na faixa litorânea entre o Rio Grande do Sul e o Espírito Santo. Associados a algas e plâncton, esses peixes ão um alimento essencial à manutenção de diversas espécies da fauna marinha.
A ocorrência dessas aves marinhas na costa do estado é significativa das peculiaridades desta paisagem de aparente monotonia, mas que, na realidade, é um dos ricos ecossistemas marinhos do planeta.
NESTA REPORTAGEM
Nesses dois locais, as colônias somam quase 1 milhão de casais de indivíduos”, explica o biólogo Maurício Tavares, do Centro de Estudos Costeiros Limnológicos e Marinhos (Ceclimar), unidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com sede em Imbé. Os pinguins se alimentam perto da costa, mas, ao contrário dos lobos e leões-marinhos, nunca descansam em terra.
Estação para a fauna marinha
Outros animais marinhos também são atraídos ao litoral gaúcho em determinadas estações do ano, seja em busca de alimentos, para se reproduzir ou cumprir fases de vida antes de seguir em suas rotas de migração. Um exemplo são as tartarugas, vindas com as correntes marinhas aquecidas da primavera e do verão.
Especialista em vida marinha, a bióloga Camila Thiesen Rigon, da Ufrgs, estudou as tartarugas verdes que estão ameaçadas de extinção. Segundo ela, esses animais permanecem no litoral do Sul para se alimentar de algas e peixes somente no período de transição para a vida adulta, quando se tornarão herbívoros, e depois seguem para outras regiões da costa brasileira para se reproduzir e desovar.
Berçário e rota migratória da vida marinha
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O Refúgio de Vida Silvestre da Ilha dos Lobos, a menor unidade de conservação marinha federal do país, com 142 hectares, a 2 quilômetros da praia de Torres, é local de descanso e banho de sol para espécies de mamíferos e de aves, hoje perturbadas pela visita de surfistas e visitantes de barcos e motos aquáticas.
“Em todo o Atlântico Sul Ocidental, o Rio Grande do Sul tem a maior concentração de espécies de baleias e golfinhos, desde a linha do Equador até a Antártica. Temos cerca de 80% das espécies que ocorrem na costa brasileira”, relata Tavares.
Com doutorado em pesquisa sobre deriva no mar, encalhe e decomposição de animais encontrados na praia, o biólogo monitora praias entre Torres e Quintão, em uma área de aproximadamente 120 quilômetros de litoral. Essa é a sua rotina semanal há 23 anos.
Ele ressalta que o litoral gaúcho é um dos ecossistemas mais diversos do continente, marcado por visitas de animais de climas tropicais e temperados, que utilizam as correntes marinhas do sul do país em suas rotas migratórias.
Também aparecem no mar gaúcho três espécies de lobos-marinhos, o leão-marinho-do-sul, várias espécies de cetáceos, como a toninha, o boto-da-barra e a maior das baleias dentadas, a cachalote. Foi inspirado nessa espécie que o escritor norte-americano Herman Melville criou, no início dos anos 1950, a mítica personagem central do romance Moby Dick.
A pluma do Prata
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“Este é um dos ambientes oceânicos mais complexos que existem, pois, em poucos lugares do mundo, tantas águas de origens diferentes interagem”, confirma o professor Osmar Möller, do Instituto de Oceanografia da Universidade Federal de Rio Grande (Furg).
Ele ressalta que a Água da Pluma do Rio Prata tem grande impacto no ecossistema.
A “pluma” é a superfície que se forma de água doce, mais leve que a marinha e de baixa salinidade.
A Bacia do Prata é formada pelos rios Paraná, Uruguai e Paraguai, os quais recebem contribuições de nascentes desde a Bolívia até Brasília.
Möller explica que as águas saem do Prata já misturadas com Águas Subantárticas da Plataforma Argentina e se propagam em direção nordeste no outono e inverno, empurradas por ventos sudoeste.
Formam, assim, a Corrente Costeira Brasileira ou Corrente de Rio Grande, alcançando mais de mil quilômetros da desembocadura do rio.
Na primavera e no verão, são forçadas a se manter ao Sul. Águas argentinas fazem parte da Corrente Patagônica, cujo limite ao Norte é a latitude da cidade de Rio Grande.
Caldo de algas e plâncton
Foto: Cristina Ávila
Essa complexa natureza tem outras contribuições importantes, como o rosário de lagoas que abrange quase toda a extensão do litoral. Há 12 anos, a pesquisadora do Ceclimar Cacinele Mariana da Rocha observa o sistema hidrológico em áreas entre Torres e Mostardas.
“Hoje, a gente sabe que 30% da água das lagoas é fornecida pelos aquíferos que recebem as chuvas”, explica. Esses reservatórios não são bolsões de água, mas formações de grãos de areia, como uma esponja, a cerca de 6 metros do subsolo.
Dessa forma, há troca permanente de nutrientes, ferro, nitrogênio, fósforo, e é também constante o intercâmbio entre as águas do continente e o mar, que se altera conforme o volume de chuvas e marés.
“Assim, nutrientes que saem do subsolo vão aflorar na faixa de praia e garantir que vários organismos microscópicos se alimentem e se desenvolvam. Alguns, um pouco maiores, são conhecidos como algas ou plâncton e dão cor na beira-mar.”
Cacinele explica que essa química origina o marrom-escuro que faz os gaúchos apelidarem o mar local de “Chocolatão”. “Quando tem descarga de água subterrânea muito forte, os nutrientes vêm em grande concentração e, em seguida, os organismos que vivem na beira da praia se multiplicam e acabam atraindo pequenos peixes, crustáceos, peixes maiores, botos, leões-marinhos. A água subterrânea tem uma cadeia ecológica muito importante”, sintetiza a bióloga.
Aprendendo com as baleias
Foto: Maurício Tavares/ Ceclimar/ Divulgação
Com tamanha importância geográfica, o Rio Grande do Sul teria mesmo que formar profissionais voltados para o mar. E uma das experiências mais incríveis dos estudantes começou em 22 de agosto de 2010, o dia em que uma baleia jubarte de quase 13 metros encalhou viva em Capão da Canoa.
Uma centena de pessoas ajudou nas tentativas de desencalhe, mas não teve sucesso. A partir daí, iniciaram-se aulas de necropsia, anatomia e outras ciências. O crânio tinha 400 quilos e foi retirado da praia com uma retroescavadeira.
Mais de dois anos depois, encerraram-se os trabalhos que marcaram a vida de dezenas de alunos, com a montagem do esqueleto no Museu de Ciências Naturais do Ceclimar, em Imbé, onde está em exposição desde 2012.
“Lembro que vi esse animal respirando, e hoje está no museu”, encantava-se a bióloga Gabriele Afonso no dia da inauguração. “Eu estava do início ao fim. Aprendi tanto com a baleia. A gente só sentiu o cansaço quando acabou.
Para a formação em Biologia Marinha, essa foi uma oportunidade única. Foram emoções intensas e dois anos e meio de cuidados com os ossos”, esclarece. A exposição trata de vários aspectos da biodiversidade do litoral gaúcho.
Biologia-cidadã e vídeos com os filhos
Maurício Tavares é coordenador do projeto de extensão do Ceclimar denominado Fauna Marinha RS, criado em 2013 para interação entre a universidade, pesquisadores e a sociedade. Semanalmente, lança vídeos de 2 minutos sobre pinguins, baleias e golfinhos que vivem na costa do Rio Grande do Sul.
Com a colaboração de pesquisadores da Furg e Ufrgs, os episódios geralmente são narrados por seus filhos, Antônio, 6 anos; Flora, 10; e Pedro, 13.
Desde 2017, o programa realiza oficinas para guarda-vidas civis e militares que participam da Operação Golfinho, para o envio de informações sobre animais mortos encontrados na praia, importantes para o controle ambiental.
“Aparece muito bicho morto porque tem muito bicho vivo”, deduz o pesquisador. Para assistir aos vídeos ou encaminhar informações sobre ocorrências com essas espécies, basta acessar o site do projeto.
Plástico extermina aves e tartarugas
A fartura do cardápio na costa gaúcha atrai aves de regiões antárticas, subantárticas, sul-americanas, caribenhas, norte-americanas, canadenses, e há espécies encontradas até no Oceano Índico, que passam temporadas nas áreas costeiras e na plataforma continental do Rio Grande do Sul.
São espécies ameaçadas por várias causas, entre as quais o plástico que vai parar nos oceanos.
O biólogo Martin Sucunza Perez diz que o plástico ainda pode estar associado a poluentes orgânicos que afetam o metabolismo das aves, oriundos de pesticidas escoados por rios para o mar.
O pesquisador integra o Grupo de Estudos de Mamíferos Aquáticos do Rio Grande do Sul (Gemars), que também estuda as aves. Nas 148 aves oceânicas encontradas mortas na costa do estado ou que morreram no centro de recuperação do Ceclimar e que foram dissecadas pelo pesquisador, havia 946 resíduos plásticos nas carcaças.
A bióloga marinha Camila Rigon dissecou 42 tartarugas verdes na costa gaúcha. Encontrou 4.611 resíduos de lixo (87% plástico). No animal que mais ingeriu lixo, foram contabilizados 742 resíduos. Essa espécie de tartaruga chega jovem ao estado, com 28,2 a 62 centímetros e, quando adulta, pode atingir um metro e 40 centímetros de comprimento e pesar 230 quilos de massa corporal.
“As águas que chegam com tanta oferta de alimentos trazem também muito lixo. Além de obstruir a digestão, o plástico cria uma falsa sensação de saciedade, impedindo os animais de se alimentar. As tartarugas sofrem muito. Como são muito fortes, demoram muito a morrer”, justifica Camila.