AMBIENTE

Ambientalistas repudiam representante da Farsul como secretário adjunto da Sema

Coalizão Pampa, integrada por entidades ambientalistas do RS, denunciou à Comissão de Ética Pública (CEP) a impossibilidade de Marcelo Camardelli ocupar a função por conflito de interesses
Por Stela Pastore / Publicado em 14 de fevereiro de 2023
Ambientalistas repudiam representante da Farsul como secretário adjunto da Sema

Foto: Luis André/Secom

O secretário adjunto do Meio Ambiente, Marcelo Camardelli, recém nomeado, participou de reunião coordenada pela Sema, com o governador Eduardo Leite, para tratar de medidas para mitigar efeitos da estiagem no estado; ambientalistas criticam nomeação por conflito de interesses

Foto: Luis André/Secom

A Coalizão do Pampa – integrada por 19 associações e grupos de atuação socioambiental do Rio Grande do Sul – emitiu uma nota de repúdio pela nomeação pelo Governo do Estado do secretário adjunto do Meio Ambiente, Marcelo Camardelli, que tem representado a Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul) no Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema). A nomeação saiu no Diário Oficial de dia 29 de janeiro. A denúncia também foi levada à Comissão de Ética Pública (CEP).

“A Farsul defende, com frequência, medidas retrógradas e contrárias ao uso sustentável dos recursos naturais. Há, portanto, nessa nomeação nítido conflito de interesses que, inevitavelmente, levanta a suspeição de que em sua gestão prepondere o interesse privado em prejuízo da coletividade”, diz o documento assinado pelas associações e grupos de atuação socioambiental do estado,  que compõem a Coalizão. A formação do movimento em defesa do bioma,  começou em dezembro de 2021 em resposta aos graves índices de supressão que o Pampa tem enfrentado nos últimos anos.

Ambientalistas repudiam representante da Farsul como secretário adjunto da Sema

Foto: Farsul/Divulgação

Marcelo Camardelli, secretário adjunto na Sema, é engenheiro agrônomo e reconhecido membro da Farsul

Foto: Farsul/Divulgação

Após contatos com a assessoria da Sema para entrevista ou posicionamento sobre os apontamentos éticos, a resposta veio através de uma nota genérica:

“O Governo do Estado, por meio da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura, informa que a escolha do seu quadro de subsecretários, diretores, coordenadores de assessorias, bem como do seu secretário adjunto, teve como base a qualificação dos seus currículos técnicos. Marcelo Camardelli é engenheiro agrônomo, foi conselheiro do Conselho Estadual de Meio Ambiente e possui ampla experiência voltada ao desenvolvimento sustentável, aliando preservação dos recursos naturais ao desenvolvimento socioeconômico. O governo gaúcho acredita na necessidade das ações que visem à proteção ambiental aliada à produção sustentável e reforça que o governo é de construção, com a premissa de unir esforços para o bem comum”.

Afrouxamento da legislação ambiental

“Faz tempo que a relação da Farsul com a conservação dos campos nativos tem sido conflituosa, defendendo o afrouxamento da aplicação da legislação que protege a vegetação nativa campestre”, registra o professor Valério Pillar do Departamento de Ecologia e do Centro de Ecologia da UFRGS, coordenador da Rede Campos Sulinos, integrante da Coalizão pelo Pampa.

Ele destaca as evidências científicas que a produção pecuária secular não destrói a vegetação nativa e é compatível com a conservação da biodiversidade.  Porém, a expansão das lavouras, sobretudo a soja, tem gerado perda brutal das espécies campestres.

De 2012 a 2020 foram cerca de 152 mil hectares (1.520 quilômetros quadrados) perdidos por ano somente no bioma Pampa, que cobre parte do RS. Em relação ao tamanho do bioma, seria como se na Amazônia fossem desmatados 30 mil km2 de floresta com ano.

“A  Farsul defende esse processo de destruição dos campos porque representa o setor do agronegócio mais interessado na expansão das lavouras de soja. Pecuaristas que defendem a conservação dos campos nativos são atualmente minoria na entidade”, completa Pillar.

Ética pública e interesses conflitantes

Para a Coalizão do Pampa, a nomeação de Camardelli é preocupante considerando que, em curto prazo, deverão ser construídos e publicados dispositivos legais definindo características do Pampa e detalhando normas para sua conservação, conforme dispõe o Art. 203 da Lei Estadual nº 15.434/2020. Ainda, tramita a revisão da hidrografia na base cartográfica do Estado, que gerará diretrizes técnicas estabelecendo os procedimentos dos órgãos ambientais para a caracterização de cursos hídricos e, consequentemente, de Áreas de Preservação Permanente (APPs).

Embora a situação de escassez de água e a necessidade de “reservação” sejam reconhecidas pela Farsul, a entidade não tem apoiado a adoção de medidas essenciais para a produção de água, tais como a implementação do Programa de Regularização Ambiental (PRA), que prevê recuperação de Reserva Legal e APPs em áreas em desacordo com o previsto na Lei de Proteção da Vegetação Nativa (Lei 12.651/2012).

Em recente declaração para a imprensa como coordenador da Comissão do Meio Ambiente da Farsul, Marcelo Camardelli, tensiona pela alteração da legislação ambiental como um entrave no que refere à reserva de água em APPs, no radar do setor há alguns anos. — “Precisamos avançar, seja na alteração das regras ou na interpretação das mesmas dentro do limite da legislação”.

A Coalizão Pampa cita ainda como elemento para demonstrar os interesses da Farsul na interferência de legislações e políticas ambientais, principalmente as atinentes ao bioma Pampa, a Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Estadual (0175872-45.2015.8.21.0001) questionando dispositivos do Decreto Estadual 52.431/2015. Esse decreto fragilizou a proteção da biodiversidade do bioma Pampa ao dispensar, na prática, a delimitação de Reserva Legal nos campos nativos, os quais são mantidos há séculos com a atividade pastoril de produção pecuária. Tanto o Estado quanto a Farsul são réus nessa ação.

Esses temas são importantes tanto para a preservação ambiental, visando a maior manutenção possível de áreas protegidas, vitais para a produção de água, quanto para o setor ruralista em sua busca por expansão de áreas cultivadas.

É o passar as boiadas, alertam ambientalistas

Diferentes organizações alertam para a gravidade da apropriação dos espaços públicos por interesses privados.

“O pessoal do agronegócio e todos os que são contra a legislação ambiental se deram conta que deveriam assumir esses espaços de poder para impor sua lógica” sintetiza a bióloga Luana Rosa,  presidente do Movimento Roessler e uma das dirigentes da Assembleia Permanente das Entidades de Defesa do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul  (Apedema).

“É um movimento pensado que se articula em várias frentes do setor econômico tentando se apresentar como o capitalismo verde. Uma maquiagem pra tentar responder as críticas dos ecologistas desde os anos 60 ao modelo de desenvolvimento baseado na monocultura, agrotóxicos, produção de commodities e concentração de renda”, completa a ecologista.

Um dos exemplos explícitos foi a do ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, célebre pela frase “passar a boiada”, referindo-se ao desregramento legal.

Aparelhamento privado

Para o presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), Heverton Lacerda, o governo gaúcho tem trabalhado abertamente para desmontar as leis e órgãos de proteção ao ambiente natural e promover propostas de infraestrutura vindas de setores privados que não atendem ao interesse e necessidades da população gaúcha.

“Faz isso gerenciando os recursos naturais sob a tutela do Estado de modo a entregá-los aos interesses privados de grupos econômicos. De forma prática, percebe-se, claramente, a estratégia de entreguismo e degradação ambiental nos encaminhamentos que fragilizaram as leis estaduais de proteção dos ecossistemas; no aparelhamento do Consema, com maioria de conselheiros pró-mercado; e na desconfiguração da Secretaria de Meio Ambiente, que deixa de atender suas obrigações enquanto órgão central do Sistema de Proteção Ambiental”.

Para ecologistas é a raposa cuidando do galinheiro

Para funcionários concursados da Sema – que preferem não se identificar, os interesses privados têm orientado decisões na pasta. “Tá tudo dominado. Colocam a raposa a cuidar do galinheiro”, observa um quadro técnico antigo.

Outro grande temor dos servidores é que outro indicado pela Farsul venha a  coordenar a Junta Superior de Julgamento de Recursos das Multas Ambientais. O órgão já tem representantes da Farsul, Fiergs, Famurs, e tem sido recorrente a derrubada de multas ambientais comprovadas pelos quadros técnicos. Caso se confirme a nomeação para o posto, o temor é de mais anistias aos transgressores ambientais.

O governador Eduardo Leite tem dado espaços importantes para a Farsul desde a gestão passada. Diferentes dirigentes da entidade ocuparam a titularidade e cargos decisivos na Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural. Ao que tudo indica, a entidade segue dando as cartas em outras pastas, colocando diretamente seus quadros para defender seus interesses.  Tanto na página da entidade como no perfil pessoal do novo secretário-adjunto da Sema, seu nome segue constando como assessor da presidência da Farsul.

“É notório o conflito de interesses criado com a nomeação deste e eventualmente de outros representantes dessa federação, colidindo com o Decreto Estadual nº 45.746/2008, que entre outras providências institui o Código de Conduta da Alta Administração na Administração Pública Direta e Indireta do Estado do Rio Grande do Sul”, reforça a Coalizão Pampa em artigo publicado na imprensa.

Enquanto o presidente Lula coloca a Amazônia e a defesa dos biomas nacionais como instrumento geopolítico para reposicionar o Brasil no mundo, o Rio Grande do Sul segue na contramão.

Comentários