Calor e chuvas: eventos climáticos extremos serão cada vez mais frequentes
Imagem: RTVE/ Reprodução
Um dos maiores emissores dos gases de efeito estufa, o Brasil vem perdendo a oportunidade de assumir o protagonismo no enfrentamento do aquecimento global a partir das metas do Acordo de Paris – reduzir as emissões em até 50% até 2030 e zerar as emissões líquidas até meados deste século.
Foto: Igor Sperotto
O alerta é do cientista Carlos Nobre, pesquisador colaborador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, copresidente do Painel Científico para a Amazônia, autor da mais rigorosa avaliação científica já elaborada para a região – e que aponta um acréscimo de ao menos 1,3% grau na temperatura média do planeta neste século.
NESTA REPORTAGEM
Promovido pelo Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul (Sinpro/RS) e realizado de forma híbrida, o debate contou com a participação presencial do professor e pesquisador do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Ufrgs, Francisco Aquino.
Nobre, que estava no Rio de Janeiro, fez o painel de abertura por teleconferência.
A quase totalidade dos gases de efeito estufa gerada no país vem do desmatamento ilegal e da agricultura. São quase 3 milhões de quilômetros quadrados ocupados pelo agronegócio. Ele aponta que um terço dessa área seria suficiente para implantar um megaprojeto de agricultura e pecuária regenerativas para recuperar os biomas.
“Esse é o caminho para remover CO2 da atmosfera”, assegura.
“Podemos nos tornar o primeiro país de grandes emissões a zerar essas emissões, muito antes de China, Índia, Estados Unidos e países europeus, com o maior projeto de restauração florestal já bancado por um único país”, desafiou ele.
Emergência climática e ponto de ebulição
Foto: Igor Sperotto
Um dos climatologistas mais respeitados do país e cientista com projeção internacional, Carlos Nobre é doutor em Meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), foi pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Ele também coordenou o Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos no Inpe e criou o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e foi presidente da Capes.
Nobre é um dos autores do 4º Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC), que foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz em 2007.
No painel, que contou com a participação de mais de 150 pessoas, entre ambientalistas e professores do ensino privado, ele fez uma avaliação das mudanças climáticas e da devastação provocada por eventos como vendavais, ciclones, chuvas intensas a partir do aquecimento dos oceanos que provocam cheias, alagamentos, destruição e mortes.
“Os eventos climáticos extremos decorrentes do aquecimento global são provocados por ações antrópicas”, destacou. “São um desafio tão grande e é muito claro que nós já entramos na chamada emergência climática”.
Antes mesmo dos recentes recordes de temperaturas, disse Nobre, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterrez, já alertava: não estamos mais tratando do aquecimento global, mas da fase de fervura global e é muito grave e muito séria”.
As altas temperaturas são alarmantes e superam todos recordes desde o final do século 19. “Foi o julho mais quente deste período histórico, com temperaturas 1,3 grau mais quentes do que julho de 1890”, observou.
“Não há a menor dúvida que essa emergência climática é decorrente da interferência humana. Isso não é uma variabilidade natural do clima. Os relatórios do IPCC colocam com muita clareza toda essa questão, são seis relatórios, eu participei de vários, inclusive do primeiro em 1990, quando já alertávamos que, se continuássemos a aumentar a emissão dos gases de efeito estufa nós colocaríamos o planeta numa situação muito difícil. Mas aquilo era uma projeção do futuro. Infelizmente esse futuro já chegou”, constata.
Desmatamentos e queimadas
Foto: Igor Sperotto
Além das emissões de gases, as mudanças climáticas e a aceleração dos extremos ocorrem também pelas formas de exploração da terra.
“Quando nós retiramos a vegetação natural da floresta Amazônica, a Mata Atlântica, o Cerrado, o Pampa, também mudamos o clima daquelas regiões de maneira bastante significativa. Na Amazônia há áreas totalmente desmatadas. Ali a temperatura máxima do dia pode ser até 5 graus mais quente que a temperatura no topo das árvores da floresta”.
Um terceiro impacto nas mudanças climática, enumerou, é o efeito ilha urbana de calor.
“Cidades com muito concreto, muito asfalto, pouca vegetação aquecem demais, porque boa parte da energia solar deixa de atuar na evaporação da água e passa a aquecer o ar”, explicou
“Na maior cidade do país, São Paulo, que tem a maior ilha urbana de calor, a temperatura no centro já é em média 3,5 graus mais quente do que fora de São Paulo, nas regiões de vegetação, na Serra do Mar, da Serra da Mantiqueira”, destacou.
“Uma temperatura que já expressa o aquecimento global, já aqueceu 1,6 ou 1,8 grau a mais, mas na cidade de São Paulo já passou de um acréscimo de 3,5 graus na temperatura média. Em um dia de inverno ou de primavera, quando não há cobertura de nuvens, essa diferença de temperatura entre o centro de São Paulo e a região de florestas adjacentes, às vezes passa de 7 graus”, descreveu.
Mudanças climáticas sem precedentes
Foto: Foto: Araquém Alcântara/WWF-Brasil/ Reprodução
O principal gás de efeito estufa é o vapor de água dos oceanos, mas ele nada tem a ver com a ação humana, explicou.
“O problema são os outros gases de efeito estufa. O gás carbônico (CO2), o metano (CH4), o óxido nitroso (N2O) e vários outros estão aumentando na atmosfera pela ação humana”.
O CO2, que antes da Revolução Industrial tinha uma concentração muito baixa na atmosfera, aumentou quase 50%.
“Eram 280 partes por milhão (ppm). Veja bem, 280 moléculas de CO2 em 1 milhão de moléculas de atmosfera, e ele hoje já passou de 420 ppm; o metano aumentou 150 vezes. No Brasil, ele vem do “arroto do boi”. É um gás poderosíssimo, mas com um período de existência bem menor”.
Ele destaca que o tempo de residência do gás carbônico na atmosfera é em média 150 anos.
“É muito lenta a retirada do CO2. E 20% do CO2 que a gente emite hoje vai estar na atmosfera por mil anos. Já o tempo de vida do metano na atmosfera é de 9 a 11 anos, mas ele tem uma capacidade de retenção de calor 70 vezes maior que o gás carbônico”.
O cientista destacou que o último relatório do IPCC aponta que as mudanças climáticas recentes são generalizadas, rápidas e intensificadas e sem precedentes em milhares de anos.
“Até o IPCC 2021, globalmente falando, já tínhamos observado que os extremos de ondas de calor haviam aumentado 70% em relação ao período anterior (1850/1900) e as chuvas extremas que aconteciam uma vez por década lá no século 19 já estavam acontecendo com uma frequência 30 vezes maior”, relatou.
“Mas veja bem, nos últimos dois anos tudo isso explodiu, esses números aumentaram muito. Estamos vendo os recordes desses fenômenos extremos principalmente ondas de calor e secas extremas, explodindo em 2022 e 2023 e também chuvas muito acentuadas em todo o planeta”.
Ondas de calor e mortes
Foto: Igor Sperotto
Ao comparar as consequências dos eventos extremos para as populações em diferentes regiões, Nobre explica que as mortes relacionadas às chuvas, deslizamentos de encostas, inundações são mais impactantes por serem imediatas, diferente das vítimas das ondas de calor.
“O recorde de mortes por ondas de calor foi batido no ano passado e pouca gente entendeu isso. Um estudo publicado na revista Nature Medicine mostrou que 61 mil pessoas com mais de 70 anos de idade morreram na Europa devido à onda de calor que perdurou por semanas no ano passado”, pontuou
“No sul do continente europeu, diferente dos trópicos, é extremamente seco, nos Estados Unidos, no México, as temperaturas oscilaram entre 40 e 50 graus no ano passado e voltaram a bater recordes neste ano. Em várias partes do Brasil tivemos recordes de temperaturas neste inverno, aquele fenômeno absolutamente inédito de 40 graus nos Andes, recordes de seca no Rio Grande do Sul, com 43 graus em Uruguaiana”, enumera.
Além das secas e ondas de calor, chuvas intensas, ele cita os ciclones extratropicais mais intensos.
“A chuva depende demais da evaporação dos oceanos e as implicações físicas dos extremos climáticos é que com a temperatura dos oceanos acima de 26,5 graus ocorre uma evaporação exponencial. Foi isso que gerou o primeiro furacão medido na história do Atlântico, o Catarina, em 2004. Ele foi um ciclone extratropical, um fenômeno climático natural que atinge o sul do Brasil, Argentina, Uruguai um pouco Paraguai. Só que a temperatura em março de 2004 estava a 26,5 graus e houve muita evaporação e condensação, que são as condições ideais para a formação de furacões”.
Os primeiros relatórios do IPCC projetavam uma frequência tão grande de ondas de calor, secas, chuvas intensas, incêndios florestais, quebras de safras, tudo isso, para depois de 2040. Já está acontecendo. Isso tudo mostra que nós não podemos ignorar as metas do Acordo de Paris. Esse é o maior desafio que eu considero que a humanidade já enfrentou. O Acordo de Paris de 2015, reforçado em 2021 na COP 26, diz que é necessário reduzir as emissões de 50% até 2030 para não correr riscos futuros e zerar as emissões líquidas até meados do século. Nós estamos muito fora dessa rota.
FRANCISCO AQUINO
“Vivemos o período mais quente da Terra”
Foto: Igor Sperotto
O doutor em climatologia e mudanças climáticas, professor e pesquisador Francisco Aquino, do Departamento de Geografia da Ufrgs, ressaltou:
“Nunca tivemos temperaturas tão extremas nos nossos registros do passado. Vivemos nos últimos anos o período mais quente da história”.
Ele desenvolve pesquisas desde 1993/94 no Programa Antártico Brasileiro e já fez 18 expedições de campo na Antártica. Esteve à frente do projeto, construção e instalação do módulo científico Criosfera 2 / Centro Polar e Climático – CPC/ Ufrgs no verão de 2022/23 em Skytrain Ice Rise, na Antártica.
Em sua apresentação, enfatizou a emergência climática e as conexões de clima entre o Brasil e a Antártica. Confira os destaques da sua intervenção:
Metas globais
“Todo o sistema terrestre já foi alterado, florestas, oceanos, biodiversidade e obviamente as geleiras. Um passo pra gente atingir o Acordo de Paris é tentar fazer uma manobra rápida e reverter a emergência climática a ponto de que a gente consiga atingir as metas globais da Agenda 2030. A partir da ideia de enfrentamento para que a humanidade vença esse maior desafio ao longo da emergência climática, os 17 objetivos do desenvolvimento sustentável são o melhor caminho para a sociedade”.
Neve e gelo
Foto: Acervo Pessoal
“Nós, aqui no sul, focamos por alguma parte da história explorar a ciência do clima sob os testemunhos de neve e gelo, monitoramento de geleiras da Antártica e dos Andes. Essa experiência nos permite categoricamente afirmar que vivemos nos últimos anos o período mais quentes da história. O ano de 2023, corre o risco de ser o mais quente ou o segundo ano mais quente deste século e meio e sem dúvida, os eventos extremos tendem a se intensificar até 2040”.
Camada de Ozônio
“O buraco da camada de ozônio atingiu algo como 20 milhões de quilômetros quadrados e é importante termos a clareza de que a falta de ozônio na atmosfera é resultado da intervenção antrópica, uma poluição atmosférica e química gerada pelas atividades humanas. A atmosfera do planeta vai ficando mais quente com a ação antropogênica e reduzida concentração de ozônio. O planeta mais quente intensifica a circulação atmosférica. A poeira de desertos como o Atacama, deserto australiano, sul do Chile e Patagônia já chega no meio da Antártica”.
Ciclones-bomba
Foto: Igor Sperotto
“Estes fenômenos de altas e baixas pressões moveis no nosso hemisfério são responsáveis pelas ondas de calor no inverno (2021) e as ondas de frio extremamente anômalas que chegam inclusive até a Amazônia”, afirmou.
Estes eventos que fizeram de 2016 o ano mais quente do século, “intensificaram a formação de ciclones que a gente classificou como explosivos e eles geram danos em todo o hemisfério Sul, no Sul do Brasil ou na Austrália e Nova Zelândia”.
Ele destacou que o número de ciclones nos últimos 40 anos no Sul do Brasil não aumentou, mas sim a intensidade.
“Um ciclone explosivo no RS é muito mais impactante que um furacão Catarina, em número de óbitos ou em prejuízos materiais”.
Rios voadores
Foto: Jefferson Simões/ Acervo Pessoal
“Detectamos recentemente a mudança no padrão de precipitação: tem chovido menos inclusive no Cerrado. Mas identificamos que ocorre uma migração da umidade pra chuva aumentando no sul do Brasil. Em um estudo anterior a gente tentava entender como ocorre a transferência dos rios voadores entre a Amazônia e o Cerrado para o Sudeste ou para o Sul e constatou que o comportamento do clima da América do Sul desde o Brasil até o Chile está sendo totalmente alterado pelo aquecimento global”.
Assinatura polar
“Ao estudar os ciclones explosivos, identificamos os rios voadores anomalamente mais intensos, transportando diretamente do Equador da Amazônia até o sul do Brasil e o isótopo da água da chuva marcando esse sinal claramente aqui em Porto Alegre. Em 2016, tivemos a pior tempestade que gerou uma microexplosão em Porto Alegre, mais de 4 mil árvores arrancadas, semanas sem energia elétrica em vários bairros, extremamente impactante. A análise isotópica da água mostrou que esses eventos são forçados pelo Mar de Weddel. A assinatura não é amazônica, a assinatura é polar”.