Enchentes que assolam o RS são resultado de uma tragédia anunciada
Foto: Cemaden/Divulgação
No final de abril o mapa do Rio Grande Sul começou a ser tingido de vermelho no sistema do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) , representando alto nível de ocorrências de inundações graduais e bruscas, alagamentos em áreas rebaixadas e desabamentos em encostas. No dia 29, por exemplo, Estrela, Lajeado e Encantado estavam com muito alto risco de inundações. Na sequência, o fenômeno da tragédia anunciada só se intensificou sobre as cidades do Sul do país.
No dia 2 maio, o quadro era dramático. “A situação mais grave é a de Sinimbu, que está parcialmente destruída. Nos demais municípios problemas de alagamentos, forçando a retirada de milhares de pessoas de suas casas, estradas interrompidas, pontes destruídas, algumas mortes já registradas, interrupção do fornecimento de água potável e desmoronamentos”, descreve o professor da Universidade de Santa Cruz do Sul João Pedro Schmidt, que mora em Santa Cruz do Sul.
As informações emitidas eram corretas e oportunas, mas não bastam se as políticas públicas não existem ou não têm efetividade, aponta o climatologista do Instituto de Estudos Climáticos da Ufes, membro da Academia de Ciências para Nações em Desenvolvimento e chefe do comitê científico do International Geosphere Biosphere Programme Carlos Nobre. Segundo o cientista, duas medidas são fundamentais para salvar e proteger vidas nestes casos: sirenes para alterar a população dos riscos iminentes e retirada dos milhões de brasileiros que vivem em áreas ribeirinhas e encostas. “Encontrar locais seguros e melhorar o sistema de alerta são medidas urgentes, o que a gente não vê para enfrentar eventos extremos como os do RS”.
Nobre que é autor de centenas de trabalhos científicos sobre aquecimento global e venceu do Nobel da Paz em 2007 anuncia uma nova realidade. “Se o aquecimento global seguir no mesmo ritmo que está, o que se vive no Rio Grande do Sul hoje vai ser o novo normal daqui para frente, principalmente a partir da segunda metade deste século”, alerta.
Houve alerta de enchentes em 2023 e 2024
Assim como em 2023, desta vez a previsão do risco de chuvas intensas na bacia do Rio Taquari foi realizada, mas pouco ou nada foi feito para retirar as pessoas antes das águas subirem, trazendo danos maiores e grande grau de insegurança para as populações mais pobres. Conforme professor Carlos Nobre, agora é necessário atuar no auxílio da população e reduzir danos, entretanto jamais deixar de lado as soluções necessárias de médio e longo prazo, como a retirada os moradores em áreas de risco.
Foto: José Cruz/Agência Brasil
O tecnologista e especialista em geodinâmica da Sala de Situação (monitoramento) do Cemaden Pedro Ivo Camarinha afirma que a ciência tem feito seu papel, alertado a sociedade sobre as mudanças climáticas. Por parte dos governantes, segundo ele, pouco ou nada se fez de 2015 para cá. “Hoje o que se tem é um plano nacional de adaptação vigente lá de 2016. Esse plano é muito bom no papel, mas não foi efetivado pelos ministérios, vamos assim dizer, na escala federal”. Ele acrescenta que o projeto está passando por um novo processo de revisão, para poder comunicar e criar metas específicas, focado diretamente em questões para atender as pessoas atingidas por catástrofes naturais.
Realidade anunciada há mais de 30 anos
Já na década de 90 do século passado, Nobre desenvolveu pesquisas pioneiras sobre os impactos climáticos enfrentados hoje, formulando a hipótese da “savanização” da floresta tropical em resposta aos desmatamentos e ao aquecimento global, por exemplo. Mais de 30 anos depois, o cientista lamenta que pouco de todo esse conhecimento produzido e disponível tenha sido aproveitado.
“Em 1990 e 91, publiquei os primeiros artigos que mostravam o risco de todo o sul da Amazônia, do Atlântico até a Bolívia, uns 50% da Amazônia podem se autodegradar e se tornar um ecossistema degradado a céu aberto, parecido com a savana tropical, mas muito, muito mais pobre, em biodiversidade, em armazenamento de carbono, que é a própria vegetação”, lembra. Projetou que a região se tornaria uma selva tropical do Cerrado, devido ao grande desmatamento.
Na sequência, o desmatamento e aquecimento global se juntaram, o que “a gente chama interação sinérgica”, afirma, trazendo as consequências que se assolam agora sobre o RS. Ele ressalta que aquilo eram projeções futuras, feitas com modelos matemáticos do sistema climático do planeta. Agora, muitas décadas de pesquisa lá na própria Amazônia, está a se refletir no país com os desastres naturais.
Em contrates com a enchentes no Sul, lá a estação seca já está quatro a cinco semanas mais longa desde 1979. “E se ela continuar, em duas, três décadas, a estação seca em toda essa região atinge seis meses e aí não tem mais jeito de manter. Seis meses de estação seca é o envelope climático do bioma savana tropical do Cerrado. Não tem maneira de manter uma floresta tropical úmida como a Amazônia, com uma estação seca tão longa”, avalia o cientista brasileiro.
Conforme Nobre, as espécies que ainda estão lá na floresta resistem porque se adaptam tanto no Cerrado quanto na Amazônia e são adaptadas a estações secas muito longas e mais quentes. “Então esse é o quadro muito preocupante. Estudos mostram que a floresta já virou fonte de carbono, perde mais carbono do que absorve. Isso mostra realmente que estamos, na Amazônica, muito próximo do ponto de não retorno”, alerta.