Sistema de monitoramento de chuvas está parcialmente fora de operação no RS
Foto: Serviço Geológico do Brasil/ Divulgação
A maioria das estações que medem a chuva e enviam dados em tempo real sobre o clima no interior do Rio Grande do Sul simplesmente não estão em funcionamento, privando os órgãos de governo de informações estratégicas em meio a catástrofe climática que devastou o estado a partir do final de abril.
As estações mantidas pela Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) estão localizadas na região Leste do estado, onde estão localizados os municípios mais afetadas pelas enchentes. São 94 estações de telemetria mantidas pelo estado. Dessas, somente 60 estão disponíveis no portal da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e apenas 48 estão transmitindo dados em tempo real como deveriam fazer.
A denúncia é do professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) Fernando Meirelles, feita com exclusividade à Agência Pública. Meirelles foi diretor do Departamento de Recursos Hídricos da Sema de 2015 a 2018. Ele sustenta que a maioria das estações tem dados defasados, porque pararam de funcionar.
A região hidrográfica do Guaíba, que concentra a maior parte da população do estado e compreende os rios Jacuí, Caí, Gravataí, Sinos e Taquari, é coberta por 27 estações. Outras 18 estão localizadas na Laguna dos Patos e 15 ficam na lagoa Mirim.
Os dados de chuva em tempo real, acessados pelo portal da ANA, são fundamentais para avaliar a intensidade da precipitação para orientar a população e acertar as previsões de vazão. Os equipamentos com telemetria transmitem informações por satélite, telefonia celular ou wi-fi, explica Meirelles.
O governo do Rio Grande do Sul investiu R$ 7,5 milhões na compra dessas estações telemétricas entre 2017 e 2019. O sistema complementar estaria sofrendo um desmonte na gestão do atual governador, Eduardo Leite (PSDB). Somado a isso, o vandalismo e a perda de sinal praticamente inviabilizam a transmissão de dados. Com isso, se perdem informações importantes para os municípios pequenos e os dados se tornam insuficientes para um dimensionamento correto da chuva e da vazão, o que afeta a tomada de decisão, alerta o professor.
Na bacia hidrográfica do Guaíba, há informações apenas de oito das 27 estações acessadas pelo portal. Uma estação no Gravataí parou em abril de 2021, outras deixaram de operar em outubro de 2023 e em 27 de abril de 2024, respectivamente, quando começaram as chuvas, aponta Meirelles.
Essa falha acarreta diversos prejuízos para o planejamento e para a emissão de alertas mais precisos. “Se eu não tenho dados medidos, eu fico só com a estimativa do modelo. E o modelo, para ser calibrado antes de ser utilizado, precisa de bons dados de chuva e nível. Sem bons dados, se faz a calibração possível e se roda um modelo que estará errando, para mais ou para menos, dando alertas negativos ou não dando alertas positivos”, ressalta.
Na laguna dos Patos existiam 18 estações, das quais apenas duas estão transmitindo dados. Na lagoa Mirim, das 15, apenas duas estão em operação. “Ou seja, podíamos ter um retrato mais nítido do comportamento da Laguna e uma estimativa muito melhor do que iria acontecer em Pelotas”, explica Meirelles.
Sem manutenção
O presidente da Associação dos Servidores da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Assema), Pablo Pereira, informou à Pública que a manutenção das estações foi interrompida no ano passado. “Apenas duas pessoas estavam trabalhando para os equipamentos funcionarem. Como um técnico está de licença-saúde desde novembro passado e o outro não tem como fazer esse serviço sozinho, o colega está no momento atuando nos atendimentos de emergência”. Essa situação é comprovada pelas datas em que as estações pararam de trabalhar.
Pereira explica que, sem essas estações funcionando, as informações necessárias são estimadas com base em outras estações, que podem estar muito longe ou não ter registrado chuva, por exemplo. “Uma rede não é planejada para ter dados a mais, mas sim o que é necessário. Os eventos em Caraá (litoral Norte), em julho do ano passado, não podem ser analisados porque as estações não estavam operando. Nem um alerta eficiente pode ser dado sem essas informações”, pontua.
Estima-se que há a necessidade de ter, pelo menos, seis equipes de campo para atender os 12 roteiros de medição pelo estado. A falta de servidores públicos concursados é um dos principais problemas da atual gestão. “É impossível fazer esse serviço com apenas um funcionário, inclusive por questões de segurança. Esse é um dos exemplos que denotam o interesse do governo em cuidar do meio ambiente e zelar pelas estações de monitoramento”, comenta Pereira.
Ele enfatiza que tanto os laboratórios da Fundação Estadual de Meio Ambiente (Fepam), que analisavam parâmetros de qualidade das águas, quanto estas sofrem com o sucateamento imposto pelas últimas gestões estaduais. A Sema chegou a ter 186 estações entre pluviométricas (coletam água da chuva) e fluviométricas (medem o nível dos rios). Grande parte das que o estado operava foi carregada pelas enxurradas anteriores, vandalizada ou até furtada.
Em nota, a Sema alega que “não há prejuízos ao monitoramento quando da inoperância de estações automáticas hidrometeorológicas e pluviométricas”. A secretaria acrescenta que o estado faz parte de um sistema integrado, estando disponíveis informações da própria secretaria, do Serviço Geológico do Brasil (SGB), do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e do setor elétrico. Quando ocorrem problemas técnicos ou perda de estações devido à enchente, provisoriamente o estado utiliza informações das estações de parceiras que seguem ativas ou de réguas manuais instaladas.
Além da ANA, da Sema e do Cemaden, as empresas do setor elétrico também contam com estações de monitoramento. Para Meirelles, porém, “esses dados não são suficientes para entender todo o processo; por isso, o estado entrou com uma rede complementar, pegando as áreas que não tinham informações. É como se fosse fazer um exame de sangue. Mas, por economia, só se faz o hemograma simples. Essa é a lógica da rede nacional. Ou se tens vários pacientes e só cuida dos quatro mais “doentes”. Essa é a lógica do Cemaden, que só acompanha onde há cheias frequentemente, como o Caí, o Taquari e o Sinos”.
Realidade dos estados
Para o superintendente de Gestão da Rede Hidrometeorológica da ANA, Wesley Gabrieli de Souza, a situação da rede hidrológica do Rio Grande do Sul não é muito diferente da de outros estados.
“A despeito de eventuais dificuldades relacionadas ao orçamento e à força de trabalho, na hora da crise, as instituições se unem para possibilitar a continuidade de disponibilização dos dados hidrológicos para a sociedade”, avalia.
Souza diz que estações automáticas da ANA nas bacias hidrográficas dos rios Jacuí, Taquari e Caí foram avariadas nas últimas enxurradas. E que deverão ser recuperadas quando houver condições de chegar lá. Mas para isso é preciso que se tenha segurança para acesso aos locais.
Além das estações hidrológicas automáticas, outra forma de obter dados para o monitoramento, mas para alertas, é por meio de observadores locais, que são pagos pela ANA.
São pessoas que vivem nas proximidades das estações hidrológicas e fazem a leitura das réguas que registram os níveis dos rios e dos pluviômetros. Souza diz que “cada estação conta com um observador hidrológico, que realiza essas leituras rotineiramente, inclusive possibilitando avaliarmos a qualidade dos dados que são transmitidos e indicando necessidades de manutenção ou correção”.
Quando as estações são avariadas, os dados coletados pelos observadores são transmitidos por telefone e disponibilizados no SNIRH (Portal Hidro-Telemetria).
O superintendente da ANA, que fica sediado em Brasília, informa que nas bacias dos rios Jacuí, Taquari-Antas e Caí – os que têm maior parcela da vazão que aportam no Guaíba – a agência dispõe de 18 estações de monitoramento fluviométrico com telemetria, ou seja, estações automáticas, com disponibilização de dados em tempo real. Essas estações são operadas pelo Serviço Geológico do Brasil, com recursos repassados pela ANA.
“Contudo, em razão da cheia crítica ocorrida no início de maio deste ano, dez estações sofreram avarias, o que, consequentemente, prejudicou a continuidade do envio dos dados de nível e chuva, de forma automática (telemétrica)”, avalia Souza
Devido a essa situação, em algumas das estações avariadas, os dados hidrológicos passaram a ser coletados manualmente e disponibilizados diariamente.
Com reportagem de Sílvia Marcuzzo, conteúdo cedido ao Extra Classe pela Agência Pública.