AMBIENTE

Muito além da tragédia: livro aborda as relações entre modo de vida e eventos extremos do clima

Professor da Unisc investiga a relação entre as catástrofes ambientais e o modelo de produção e consumo insustentável do século 21: "é muito mais grave do que a maioria das pessoas imagina"
Por Gilson Camargo / Publicado em 30 de julho de 2024
Muito além da tragédia do clima

Foto: Nilmar Lage/Greenpeace/Divulgação

Destruição e alterações do clima: flagrante de um sobrevoo na região da Amacro (Amazonas, Acre e Rondônia), em uma área com cerca de 8 mil hectares de desmatamento, a maior extensão de floresta consumida por incêndios em 2022

Foto: Nilmar Lage/Greenpeace/Divulgação

Incêndios devastadores na Grécia e no Chile, desmatamento e queimadas na Amazônia, deslizamentos e avalanches no Norte, enchentes no Sul. O impacto dos eventos climáticos cada vez mais extremos e cada vez mais próximos da realidade local, como as enchentes de maio de 2024 no Rio Grande do Sul, coloca o tema das mudanças climáticas no centro das atenções da sociedade, mas nem todo mundo se deu conta de que a catástrofe está longe de ser uma mera fatalidade.

As alterações do clima e os seus impactos na vida cotidiana das pessoas e da sociedade são o tema central do livro Mudanças climáticas: por que o mais grave problema da Humanidade não se tornou o problema político nº 1? (Edunisc, 307 p.), do professor João Pedro Schmidt, doutor em ciência política, docente e pesquisador da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc).

A obra tem apresentação do professor Carlos Nobre, um dos mais renomados cientistas do clima do país. Doutor em Meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), Nobre foi pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Resultado de cinco anos de estudos, a obra trata das alterações do clima sob o ângulo das ciências sociais, apoiando-se também em vasta bibliografia da climatologia. O trabalho evidencia o papel das políticas públicas no processo de geração do desequilíbrio climático e das tentativas de correção de rumos visando um reequilíbrio.

Para o autor, falta clareza acerca do fato de que as atuais mudanças climáticas não são um fenômeno natural. Segundo Schmidt, elas são um fenômeno sociopolítico que se manifesta climatologicamente.

O autor reitera ainda que as atuais alterações do clima nada têm a ver com os ciclos naturais de aquecimento e resfriamento do planeta em eras passadas, mas estão ligadas a um modo de vida e consumo insustentáveis e predatórios.

“Elas são fruto de um certo modo de produzir, consumir e viver dos humanos, que se refletem em políticas públicas e em modos de governar”, aponta.

Superprodução e consumo

Muito além da tragédia do clima

Foto: Igor Sperotto

Catástrofe anunciada: o bairro Humaitá, em Porto Alegre, uma das regiões mais atingidas pelas enchentes de maio no RS

Foto: Igor Sperotto

A primeira parte da obra faz o diagnóstico do quadro mundial e brasileiro, abordando as relações entre o Estado de Bem-Estar e as mudanças climáticas.

Com auxílio de figuras e gráficos, são apresentadas evidências de que o bem-estar humano aumentou paralelamente ao incremento da emissão de gases de efeito estufa. Na base de ambos está o capitalismo da superprodução e do superconsumo.

É a partir da década de 1950, quando começou a Grande Aceleração, que este vínculo se tornou bem nítido. A partir dos anos 1970 os modelos computacionais dos cientistas do clima começaram a indicar um quadro alarmante do clima no século 21.

“E as medições de temperatura nas décadas seguintes comprovou o acerto destas previsões. A ciência atestou que o forte aumento da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera (especialmente o dióxido de carbono, o metano e o óxido nitroso) era a causa do aquecimento global.

Porém, as corporações econômicas e os governos não romperam com a lógica capitalista geradora deste quadro, observa.

No plano socioeconômico, prosseguiram as políticas públicas voltadas à aceleração do crescimento econômico (PIB). O resultado foi que a cada nova década, a temperatura média global atingiu níveis mais altos e com tendências de aceleração. Para o autor, o vínculo entre o Estado de Bem-Estar e a crise climática constitui uma questão política da mais alta seriedade.

“É um problema para a esquerda mundial, pois o Estado de Bem-Estar é a sua grande referência ideológica depois da queda do socialismo soviético. Isso impõe a revisão ou a busca de um novo referencial ideológico. No lado oposto, na direita e na extrema-direita, o quadro é muito pior, pois o seu referencial é o estado mínimo, a visão neoliberal, que falha nas duas pontas: não assegura o bem-estar da maioria da população e favorece a degradação ambiental, ao considerar o ambiente natural um mero insumo do processo de produção econômica”, contrapõe.

Schmidt conclui: “as mudanças climáticas, portanto, impõem a necessidade de reformulação do projeto político da esquerda e são o atestado de óbito do projeto da direita liberal e da extrema-direita”.

Clima e senso de urgência

Os seis capítulos da primeira parte cumprem um dos objetivos centrais do livro: alertam para a necessidade de um senso de urgência de governos, empresas e sociedade civil para ação imediata, dada a gravidade da questão climática. Para leitores não familiarizados com o tema do clima, a leitura destes capítulos tende a gerar inquietação.

“É chocante constatar que as evidências sobre a gravidade do aquecimento global são conhecidas há décadas, mas que as medidas que poderiam evitar o pior não foram tomadas, por pressão das grandes corporações econômicas, pela conivência da maior parte dos governos e de setores importantes da sociedade civil”, alerta o professor.

A busca do lucro e o anseio pelo bem-estar imediato, destaca, estão no centro da pergunta do subtítulo do livro: por que o mais grave problema da Humanidade não se tornou, o problema político nº 1? “O quadro descrito é que a situação atual é muito mais grave do que a maioria das pessoas imagina”, frisa.

Bem-estar sustentável é possível

A segunda parte discute as possibilidades de solução. Partindo da premissa de que a busca do bem-estar é inerente a todas as pessoas e a todos os seres vivos, o autor elenca elementos que permitem manter a esperança.

“A cooperação é condição indispensável – não a cooperação tribal, predominante ao longo da história, mas a cooperação pública e cosmopolita, expressa na colaboração entre Estado, comunidade e mercado”, sializa.

Para o autor, o objetivo comum dos povos a ser estabelecido é o bem-estar sustentável, compatível com o reequilíbrio climático.

“O bem-estar sustentável é possível, pois as pesquisas científicas comprovam que o bem-estar não tem a ver com alto nível de riquezas. Tem a ver com um nível satisfatório de comodidades básicas e com laços pessoais significativos, na família, com amigos, na comunidade. Um modo de vida simples – uma simplicidade elegante e sofisticada – combina com a felicidade pessoal e com a sustentabilidade socioambiental”, demonstra o autor.

Slow, novo modelo

Capa: Reprodução

Capa: Reprodução

O capítulo final avalia soluções técnicas para a crise climática. São elencadas medidas testadas e aprovadas (energias limpas, reflorestamento em massa, transporte público, bicicletas, edificações sustentáveis, agricultura e pecuária regenerativas, menor consumo de carnes), meias-soluções (créditos de carbono, carros elétricos), soluções controversas (captura de carbono, biotecnologia) e não-soluções (fertilização oceânica, geoengenharia solar, refúgio em bunkers subterrâneos).

Em lugar do Estado de Bem-Estar, o autor defende um novo modelo estatal – o Estado Ecossocial.

E em variados movimentos sociais vislumbra as sementes da transformação: marchas pelo clima, movimento ambientalista, partidos verdes e progressistas, cidades inteligentes e democráticas, movimentos de mulheres, movimento Slow, minimalismo, Economia de Francisco e Clara, movimento agroecológico, movimento indígena, moradias compartilhadas, economia colaborativa, cicloativismo, movimento antitrabalho, vegetarianismo e veganismo.

Entre drama e esperança, entre ameaça de fim dos tempos e possibilidades de vida feliz, a obra insiste no alerta: é preciso senso de urgência para agir e políticas públicas de largo alcance são indispensáveis. “O tempo disponível para transformações socioeconômicas que evitem o agravamento da crise climática está se esgotando rapidamente”.

A obra física pode ser encontrada na Livraria Iluminuras (Borges de Medeiros, 471, Santa Cruz do Sul) e o ebook está disponível no site da Unisc.

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