AMBIENTE

Degradação ambiental e infraestrutura precária castigam moradores do Morro do Paula (1)

Bairro de São Leopoldo, o Morro do Paula faz divisa com quatro municípios, mas está marcado pelo abandono e distante dos serviços públicos mais básicos
Por Arthur Reckziegel, Gabriel Muniz, Gustavo Bays e Marcel Vogt / Publicado em 15 de agosto de 2024
Degradação ambiental e infraestrutura precária castigam moradores do Morro do Paula

Foto: Upan/ Arquivo

Com o aumento da demanda por moradias, Morro do Paula começou a receber as primeiras casas no final dos anos 1980

Foto: Upan/ Arquivo

O Morro do Paula, palco desta reportagem investigativa, é todo de chão batido, esburacado, localizado a 11,4 quilômetros do centro de São Leopoldo, sem infraestrutura e muito distante dos serviços públicos mais básicos.

Em maio deste ano, quando a maioria dos municípios da Região Metropolitana e dos Vales foi atingida pelo maior desastre climático que o Rio Grande do Sul já vivenciou, uma peculiaridade colocou o Morro do Paula em uma posição privilegiada: a localidade está distante dos rios que transbordaram.

Ficar a salvo das águas foi um desafio difícil de vencer para quem mora no Vale dos Sinos.

A região está inserida em uma das principais bacias hidrográficas do estado. Município com cerca de 217,5 mil habitantes de acordo com o censo de 2022 do IBGE, São Leopoldo teve mais de 180 mil pessoas desalojadas pela enchente.

Milhares foram para abrigos e, quem pôde, se refugiou na casa de parentes em localidades em que a água não oferecia risco, como aqui no Morro, que está localizado no limite entre quatro municípios.

O Morro do Paula é um lugar cercado pela mata, situado a 300 metros acima do nível do mar e em uma área equivalente a mais de 110 campos de futebol.

O problema que envolve seus moradores está descrito em algumas notícias de jornais regionais e, mesmo assim, datam de bastante tempo.

Nem digitalmente é possível ter acesso à informação oficial. Para compreender a dimensão do impasse foi necessário fazer pedidos de informação aos três poderes, Judiciário, Executivo e Legislativo, no âmbito estadual e municipal.

Outro desafio foi conversar com os moradores e compreender como esta história começou, há mais de 40 anos.

Hilário Jordão, de 59 anos, contatado pela reportagem através de um anúncio de venda de casa no Facebook chegou a comemorar a nossa chegada.  “Nós agradecemos esta tentativa de fazer a gente ser visto. É de nosso interesse que olhem para cá também e pensem em melhorias”, comenta.

Longe de ser um paraíso

Degradação ambiental e infraestrutura precária castigam moradores do Morro do Paula

Foto: Gabriel Muniz

Abandono: muitos moradores se cansam do isolamento e da falta de infraestrutura e resolvem deixar o local

Foto: Gabriel Muniz

Apesar de seguro na proteção contra as enchentes, o Morro do Paula não oferece uma boa qualidade de vida. Pelo contrário, para começar a conversa, chegar lá não é tarefa simples.

O deslocamento do centro de São Leopoldo até o Morro do Paula levou cerca de 30 minutos, em um sábado de sol e pouco trânsito.

A reportagem chegou à localidade de carro, por São Leopoldo, através da Estrada Morro do Paula, única forma de acesso ao local e que inclui a estrada de chão por mais de cinco quilômetros.

No trecho inicial é possível ver as primeiras casas dos moradores. Mais alguns quilômetros à frente, o verde se impõe e a estrada esburacada se perde mato adentro.

Os moradores já estão acostumados a informar os endereços de parentes e amigos que moram em outras regiões quando precisam de uma entrega. “Entregas do Mercado Livre e da Shopee até vêm, mas os Correios não sobem aqui”, relata Nataniel Jordão Machado, 35 anos, que foi morar no Morro quando ainda era criança.

Na chegada, o visitante pode até achar que está em um lugar abandonado ou esquecido, mas um olhar mais atento mostra a movimentação da comunidade. Naquele segundo sábado de junho era possível ver crianças jogando futebol com os pés descalços e sem camisa. Pessoas na rua, conversando com vizinhos e mexendo em carros com o capô aberto. O comércio é ativo, tem borracharia, lancheria, minimercados e uma loja de bebidas.

O Morro do Paula está localizado entre os limites territoriais de São Leopoldo, Novo Hamburgo, Sapucaia do Sul e Gravataí.

“Melhoria não existe, melhoria nem pensar”, resume Carlos Roberto de Mello, morador do Morro. Na tarde que passamos lá, ele investiu um tempo esperando a chegada de um técnico da operadora de internet que presta serviços para a casa dele.

“Estou sem internet há três dias. Eles me disseram que iriam vir hoje, já fazem quatro horas que estou esperando”, lamenta o morador.

Degradação ambiental e infraestrutura precária castigam moradores do Morro do Paula

Foto: Gabriel Muniz

Crianças jogam futebol na rua próximo ao poço artesiano: a água potável é racionada

Foto: Gabriel Muniz

Água de poço

O acesso à água é um capítulo à parte na história dos moradores do Morro do Paula. Apesar de ocupar uma área que tem acesso a quatro municípios, nenhuma das prefeituras fornece água tratada para o local, dividido entre Vila Velha e Vila Nova.

De acordo com os moradores, há um poço artesiano de 165 metros de profundidade para abastecer em torno de 300 casas na Vila Velha. Na Vila Nova encontram-se dois poços que abastecem as famílias.

“O registro fica ligado três horas por dia para fazer a distribuição de água para a vila. Não tem motor, ela chega de acordo com a pressão que corre pelas mangueiras”, explica Darci de Carli, responsável pelo poço artesiano da Vila Velha.

Caminhando pelas ruas é fácil enxergar as mangueiras, que, em alguns casos, estão furadas.

Mesmo que a grande maioria das casas tenha reservatório, virou rotina economizar água para o restante do dia. Os próprios moradores se organizam para manter o abastecimento, sendo assim, de modo informal, cada família precisa pagar R$ 50,00 por mês pela prestação do serviço. “Um novo poço artesiano viria muito bem na Vila Velha, seria bem importante”, reivindica o responsável pelo poço.

Serviços públicos distantes

Degradação ambiental e infraestrutura precária castigam moradores do Morro do Paula

Foto: Gabriel Muniz

Mangueiras levam a água do poço artesiano até as casas

Foto: Gabriel Muniz

A falta de água encanada é apenas um dos problemas enfrentados pelos moradores. A Unidade Básica de Saúde mais próxima é a de São Leopoldo, a UBS Santo André, que está a 7 quilômetros do Morro do Paula.

O acesso à rede básica escolar se dá pela Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Bento Gonçalves, que está a 1 quilômetro do bairro. Porém, a escola só tem turmas do 1° ao 5° ano do ensino fundamental. Depois disso, as crianças precisam ir para a Emef Zaira Hauschild, localizada a 6 quilômetros de distância. Já o Centro de Referência da Assistência Social mais acessível está no centro de São Leopoldo. O CRAS Centro fica a 9 quilômetros do Morro do Paula.

Imbróglio ambiental longe de acabar

Entender a história da localidade exige tempo e paciência. No Foro de São Leopoldo, é grande a burocracia para se ter acesso à única cópia física da Ação Civil Pública (Processo n° 033/1.05.0092410-7) que contém detalhes da origem do Morro do Paula. A servidora que atendeu à reportagem encontrou em outro andar o documento, com mais de mil páginas, após alguns minutos de espera.

A partir da Ação foi possível entender que, em 1973, a prefeitura de São Leopoldo adquiriu uma área de terra localizada no Morro do Paula de 60 hectares, local formado por plantas nativas da Mata Atlântica e com várias nascentes formadoras do Arroio Kruse, que corta o município.

Com o passar do tempo, diante da expansão das cidades e da crescente demanda por moradias, a região começou a ser habitada. Em 1989, a União Protetora do Ambiente Natural (Upan) fez um levantamento fotográfico que mostra os primeiros conjuntos de casas construídas no Morro do Paula.

Dentre os habitantes está Lisete Leal, de 60 anos. “Bem no começo, nem se pagava pelos terrenos. Havia apenas seis casas quando cheguei. Trabalhava de doméstica em São Leopoldo”, conta a moradora, que na ocasião veio como passageira de um trem de carga que partiu do município de Júlio de Castilhos, a 320 quilômetros de Porto Alegre.

Degradação ambiental e infraestrutura precária castigam moradores do Morro do Paula

Foto: Gabriel Muniz

Cava de mineração: O dano ambiental é flagrante. Basta ir até as partes mais altas e olhar para baixo para ver uma grande cratera, resultado de anos de mineração irregular de arenito

Foto: Gabriel Muniz

Extração ilegal motivou ocupação

Além de toda sua beleza natural, a região é rica em pedra grês (arenito), mineral utilizado na construção de casas. A extração irregular deste material no local já tem mais de um século e é considerada uma das responsáveis por fazer a população do Morro crescer.

Apesar de ser ilegal e prevista como crime pelo Artigo 55 da Lei N° 9.605/98, passível de detenção de até seis anos e multa, a atividade segue acontecendo até hoje. No dia em que a reportagem esteve no local foi possível presenciar atividade de mineração, em pleno sábado à tarde.

“Pessoal consegue ganhar, em média, de 150,00 a 300,00 por dia, dependendo de como vai estar o banco de pedras para cortar”, detalha Machado.

O dano ambiental é flagrante. Basta ir até as partes mais altas e olhar para baixo para ver uma grande cratera, resultado de anos de mineração irregular.

“O Morro do Paula tem um valor como patrimônio geológico. Aquele é um fundo de deserto recoberto com lava. Além disso, na encosta do morro tem espécies de cactus endêmicos dessa região, que remontam há um paleoclima existente há milhares de anos”, explica o biólogo e assessor de Gestão Organizacional da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de São Leopoldo (Semmam), Joel Garcia Dias.

*Esta é a primeira de duas reportagens sobre o Morro do Paula,, realizada na disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da Universidade do Vale do Rio do Sinos – Unisinos, sob a supervisão da professora Luciana Kraemer, no primeiro semestre de 2024. Leia também a série sobre reciclagem de resíduos: Coleta seletiva às cegas na região mais populosa do estado e Falta transparência nas informações da coleta de resíduos sólidos pelas prefeituras.

Extra Classe e a Unisinos firmaram Termo de Cooperação, no início de 2022, para a veiculação no jornal de reportagens produzidas pelos estudantes da disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da instituição e o acompanhamento dos estudantes na produção das edições mensais impressas do jornal.

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