AMBIENTE

Onde há fumaça, há fogo, queimadas e impunidade

A fumaça das queimadas no Brasil chega até a África. O governo federal endurece a legislação, novas medidas são estudadas, mas falta a aplicação da Lei na vida real
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 24 de setembro de 2024

Onde há fumaça, há fogo, queimadas e impunidade

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Entre 80% e 90% dos incêndios (queimadas) na região amazônica são criminosos, menos de 5% do valor das multas (das que são cobradas) são pagos e as punições pouco efetivas em tempos de relativa normalidade política e de respeito às instituições. Os índices já chegaram a menos de 1% no governo Bolsonaro.

A flexibilização do Código Florestal em 2012 e a anistia aos proprietários que praticavam (e ainda praticam) desmatamento serviu como um cheque em branco para agricultores, pecuaristas e grileiros sem compromisso com o meio ambiente nem com a sustentabilidade. A ministra do meio ambiente, Marina Silva, classifica a prática como terrorismo climático.

Diante da grave situação, o endurecimento da legislação para combater os incêndios que tem tomado conta dos principais biomas brasileiros começou a ser anunciado pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva na última sexta-feira, 20, à noite.

Foi a publicação no Diário Oficial da União (DOU)  do Decreto 12.189/2024 que cria novas tipificações de infração ambiental e atualiza o valor de multas já existentes. Nos próximos dias, interlocutores do presidente informam que o Executivo deverá tratar de questões pertinentes à ação criminosa no âmbito do Código Penal.

Na mesma edição extraordinária publicada pelo DOU, Lula emitiu a Medida Provisória (MP) 1.259/2024.  Com ela, mesmo com pendências fiscais, trabalhistas ou previdenciárias, estados em situação de emergência podem receber “financiamentos, doações e outros benefícios de instituições financeiras privadas e públicas” para combater os incêndios.

Os atos foram anunciados menos de 24 horas após reunião do Executivo Federal com governadores e representantes da Amazônia, Cerrado e Pantanal, na tarde da quinta-feira, 19.

No dia 18, o governo já tinha publicado a MP 1.258 para estabelecer um crédito extraordinário de R$ 514 milhões para combate às queimadas na Amazônia.

Na operação contra as queimadas, mais R$ 400 milhões ainda estão sendo aportados pelo BNDES para apoiar os Corpos de Bombeiros dos estados da Amazônia Legal para compra de equipamentos, materiais e viaturas.

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Fonte: INPE

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Pacheco diz que já existe Lei, só precisa ser aplicada

Em reunião com Lula, o presidente do Congresso Nacional (e do Senado), Rodrigo Pacheco, disse acreditar que a legislação brasileira já possui mecanismos adequados para punir os responsáveis por incêndios, mas que está aberto para buscar aprimorações.

Francisco Milanez, biólogo e diretor técnico e científico da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), entende que “não se pode dizer se é uma legislação eficiente ou não sem aplicá-la. E esse é o problema”.

Ao lembrar que o Brasil teve momentos “ruins e piores”, ele destaca o período do governo Jair Bolsonaro (PL) como o de um governo criminoso que merece ser investigado.

“Liberou multas, trancou a máquina e fez tudo ao contrário, declaradamente. Aliás, tem que ser ele (Bolsonaro) o primeiro a ser responsabilizado por ter criado esse surto de destruição”, afirma Milanez.

Em síntese, para o especialista em questões ambientais, a eficácia da legislação depende da sua forte aplicação. “A ganância que move esses criminosos só será coibida com a perda de patrimônio”, destaca ao sugerir medidas mais severas. Elas, no entendimento de Milanez, se justificam pela necessidade de indenizações não só para o impacto direto nos ambientes queimados, pois há danos causados à saúde pública por exposição aos gases tóxicos emitidos e que chegaram a fazer a capital de São Paulo ter o ar mais poluído no mundo nas últimas semanas.

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Fonte: INPE

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Idas e vindas de Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro

A aplicação da legislação ambiental no Brasil variou entre avanços e retrocessos nos governos do PT, Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro.

Nos governos de Lula e Dilma Rousseff, a criação no primeiro mandato do atual presidente do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), a expansão das áreas de proteção e o fortalecimento de órgãos de fiscalização como Ibama e ICMBio, tiveram efeitos significativos.

Assim, de 2004 até 2012, o Brasil chegou a reduzir o desmatamento em 83%.

No mesmo ano de 2012, no entanto, sob pressão do agronegócio e da bancada ruralista no Congresso houve a reforma do Código Florestal. Com fortes críticas de ambientalistas, houve flexibilizou regras ambientais, redução de áreas de preservação e anistia a proprietários que desmataram antes de 2008.

O resultado foi colhido em 2015, sob mais pressão do setor ruralista e influência da crise política que culminou no impeachment da presidente, o desmatamento voltou a crescer apesar  da continuidade do PPCDAm.

No governo Temer, o enfraquecimento dos órgãos de fiscalização se somaram a constante flexibilização das leis ambientais e a redução das áreas de proteção para facilitar a atuação do agronegócio e a exploração mineral.

Nada chegou perto do feito no governo Bolsonaro que foi marcado por um desmonte na fiscalização ambiental, aumento recorde do desmatamento e incentivo à exploração econômica de áreas protegidas, gerando uma crise ambiental sem precedentes no país.

O presidente chegou a chamar a aplicação de multas ambientais de “indústria da multa” e incentivou o uso de terras indígenas e áreas protegidas para atividades econômicas.

Assim, o desmatamento na Amazônia atingiu níveis recordes. Em 2021 foram mais de 13.000 km² devastados, o maior índice em 15 anos.

Apesar de algumas operações militares, como a “Operação Verde Brasil” terem sido lançadas em resposta à pressão internacional, a falta de continuidade e de uma política eficaz de preservação marcou o período.

Fumaça de queimadas do Brasil chegam até a África. Governo Federal endurece legislação, novas medidas são estudadas, mas falta a aplicação na vida real

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Baixa efetividade, gera cerca de 95% de impunidade

Tão certo quanto que, desde a implantação de Lei 9.605 de Crimes Ambientais em 1998, bilhões e bilhões de reais foram emitidos em multas, é a baixa efetividade da cobrança dessas penalidades.

Autor de um dos primeiros estudos sobre o assunto, Paulo Barreto, relata que as multas que, de fato, foram pagas variam entre 3% e 5% do montante emitido.

Pesquisador Associado do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Barreto lamenta que, embora haja bilhões em multas aplicadas ao longo dos anos, a dificuldade em efetivar a cobrança persiste.

São motivos que vão, além da burocracia, ao processo de cobrança que é demorado, até obstáculos como pressões políticas que levam a prescrição dos débitos ou até mesmo anistias.

O mesmo é verificado no âmbito criminal, com baixos índices ainda não totalmente estimados de efetiva condenação.

Ele louva iniciativas do atual governo que em março de 2023 impediu a anulação de multas aplicadas entre 2008 e 2019 pelo ex-presidente do Ibama no governo Bolsonaro, Eduardo Bim.

PRESCRIÇÃO – O curto prazo para prescrição das multas ainda é um ponto frágil da Lei. Pela legislação ambiental brasileira, quando a pena aplicada for exclusivamente de multa, a prescrição ocorrerá em 2 anos, contados da data do recebimento da denúncia até a publicação da sentença condenatória. Nesse caso, haverá a declaração da extinção da punibilidade pela ocorrência da prescrição da pretensão punitiva estatal, na modalidade retroativa.

Governo busca retomar controle da situação das queimadas

Pareceres da Advocacia Geral da União (AGU) do governo Lula rejeitaram a prescrição de multas como queria Bim e R$ 29 bilhões do período devem ser cobrados.

Também no período de Bolsonaro na presidência da República, de cada R$ 100 em multas aplicadas por crimes ambientais em áreas de conservação do ICMBio, somente R$ 1 foi pago.

Para Barreto, um decreto emitido pelo então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (Novo) que prometia dar mais agilidade ao processo teve efeito contrário e dos R$ 2,3 bilhões em multas aplicados por agentes do ICMBio, somente R$ 25,5 milhões teriam sido pagas até junho de 2022, último ano de Bolsonaro no poder, 1% do total.

Diante da dificuldade histórica do país em cobrar pelas infrações ambientais, o pesquisador do Imazon lembra uma política que ajudava a coibir o desmatamento: as ações de confisco e destruição de equipamentos encontrados para a ação criminosa.

Essa destruição de máquinas como balsas e retroescavadeiras chegou a ser proibida por Bolsonaro, lembra Barreto. Mas, “o retorno dessas práticas na gestão atual, como a destruição de máquinas, ajudou a reduzir o desmatamento na Amazônia em 50%”, diz.

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Fonte: INPE

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Falta de regulamentação via Congresso dificulta aplicação da Lei

Na linha do apontado por Milanez, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, solicitou à Procuradoria-Geral da República (PGR) um parecer sobre a possibilidade de desapropriação de terras envolvidas em crimes ambientais. A base é o artigo 243 da Constituição que determina a expropriação, sem indenização, de propriedades rurais e urbanas usadas para cultivo de plantas psicotrópicas ou exploração de trabalho escravo.

Juristas consideram que a falta de regulamentação do artigo 243 por meio de lei específica do Congresso Nacional tem dificultado a aplicação desse princípio constitucional.

Dino ainda ordenou que os Tribunais de Justiça acelerem os julgamentos de crimes ambientais. “Precisamos de ações eficazes para enfrentar esses crimes”, enfatiza.

Dados recentes indicam que ao menos 131 pessoas já foram detidas por incêndios florestais nesse ano. Os estados com os maiores números de detenções são Rondônia (42), Goiás (29) e São Paulo (22).

O percentual de incêndios florestais no Brasil com origem criminosa é alto. Segundo especialistas e dados de organizações ambientais ele está entre 80% e 90% dos incêndios na região amazônica.

São queimadas ilegais para limpeza de terras e expansão agropecuária, por exemplo. Até o momento, a Polícia Federal (PF) abriu 85 inquéritos para investigar queimadas ilegais em várias regiões do Brasil.

Na sexta-feira, 20, a PF realizou uma operação no Pantanal com base em investigações sobre incêndios deste ano.

Uma ocupação ilegal para pecuária em terras da União, segundo estimativas da PF, causou danos superiores a R$ 220 milhões. De acordo com as autoridades policiais, os envolvidos podem ser acusados de diversos crimes, incluindo incêndios em áreas florestais e grilagem de terras.

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Fonte: INPE

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Fonte: INPE

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Fonte: INPE

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Com edição de César Fraga.

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