AMBIENTE

Uso político e falta de referências técnicas circundam o debate sobre o relatório de holandeses

Para pesquisador do IPH/Ufrgs, documento não segue procedimento analítico. Representação dos holandeses critica uso político do relatório por Melo (MDB)
Por Elstor Hanzen / Publicado em 3 de setembro de 2024
Uso político e falta de referências técnicas circundam o debate sobre o relatório de holandeses

Foto: Silvia Fernandes / Simpa/ Divulgação

Representantes do coletivo de entidades reuniram-se no dia 2 e divulgaram nota na qual criticam relatório dos holandeses e apresentaram plano para enfrentamento da crise

Foto: Silvia Fernandes / Simpa/ Divulgação

Após o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) divulgar, no final de agosto, a íntegra do relatório holandês sobre as enchentes, o pesquisador e professor da Ufrgs Fernando Meirelles, integrante do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), reiterou as ressalvas ao conteúdo, que considera “superficial” como um “diário de viagem”.

Segundo o engenheiro, não há elementos novos no documento fora o que já se sabia com relação ao evento climático extremo que assolou diversos municípios e a capital gaúcha, em maio deste ano.

“É um documento muito superficial, sem referências e com observações que não seguem um procedimento analítico. Até quando citam modelos computacionais da empresa holandesa demonstram não conhecer a base de informações existente, desatualizada, e que não seria coerente com uma aplicação 3D”, destaca Meirelles.

Fundado em 1953, o IPH é referência em toda a América Latina na área de recursos hídricos, e o grupo de cientistas do instituto foi um dos principais protagonistas no enfretamento da pior tragédia climática do estado.

Uso político e falta de referências técnicas circundam o debate sobre o relatório de holandeses_

Foto: Acervo Pessoal

Meirelles: “diário de viagem” não merece destaque

Foto: Acervo Pessoal

O IPH desenvolveu ações e prestou serviços de utilidade pública à sociedade, desde explicações sobre as causas e consequências do fenômeno, orientações a respeito dos riscos das inundações, bem como diagnósticos dos problemas e soluções para o sistema de proteção a fim de evitar futuras inundações.

Meirelles é um dos 37 cientistas do instituto. Ele antecipa que o grupo entendeu que o “diário de viagem” dos holandeses não merece um destaque maior. Ressalta, no entanto, que o IPH publicará uma nota em breve, detalhando aspectos que de fato importam sobre a temática.

Questionado se havia alguma possibilidade de concluir se houve problema técnico na concepção do desenho e execução do sistema contra as enchentes da capital nos anos de 1960, o especialista é categórico.

Afirma que a análise daquele projeto “não pode ser considerado culpado agora”, porque não existem levantamentos de campo ou informações relevantes para desmerecer o que foi planejando e executado no século passado.

Docente da Ufrgs, ele reforça que continua com a mesma posição. “Tem que ser realizada uma auditoria no que existe de obras e instalações e o que foi modificado, identificando quem fez e qual o motivo dessa modificação. Especialmente, a alça de acesso da Assis Brasil, a abertura da Ernesto Neugebauer e a substituição da comporta por um portão. As casas de bombas não apresentam erros de projeto, mas sem a auditoria não se sabe a real condição de implantação e manutenção”, explica Meirelles. 

Holandeses lamentam uso político do relatório

Uma comitiva de especialistas do programa Redução de Risco de Desastres (Disaster Risk Reduction – DRRS), do governo do Reino dos Países Baixos (Holanda), esteve no RS, em junho.

O grupo neerlandês foi chamado pela prefeitura de Porto Alegre, por meio do Dmae, “para troca de conhecimentos e experiências em relação às inundações na capital”, lembra a assessoria de comunicação dos holandeses.

Ainda segundo a assessoria, “após retornar para os Países Baixos, os especialistas produziram com urgência algumas recomendações para serem implementadas. Posteriormente produziram um relatório mais completo”.

O documento foi encaminhado à prefeitura no início de julho em virtude da urgência da situação. Em agosto, foram divulgadas uma versão resumida, no dia 19, e outra, completa, no dia 24.

Os holandeses também estão bastante incomodados com o uso político do relatório pelo prefeito Sebastião Melo (MDB), especialmente no que diz respeito à divulgação fragmentada do documento, recordando só as partes que interessam politicamente, a fim de desviar a atenção na falta de manutenção e negligência na operação do sistema na enchente.

“Os holandeses lamentam o uso político do relatório, cujo único objetivo foi contribuir com a proteção da população gaúcha”, afirma a assessoria.

Seis entidades divulgam nota de agravo

Seis entidades e diversos profissionais e técnicos de várias áreas divulgaram um manifesto de apoio aos porto-alegrenses sobre o sistema de proteção contra inundações de Porto Alegre e desagravo pelos “ataques levianos e irresponsáveis” aos 48 profissionais que fizeram sugestões para recuperar a cidade no início da enchente.

O encontro aconteceu no auditório do Sindicato Intermunicipal de Professores das Instituições Federais de Ensino Superior do RS (Adufrgs) no dia 2 de setembro.

A nota foi assinada pela Associação dos Técnicos de Nível Superior de Porto Alegre (Astec), Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), Sindicato dos Arquitetos no Estado do RS (Saergs), Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa), Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), secção RS; e Associação Brasileira de Engenharia Sanitária, secção RS (Abes).

O documento foi lido no evento com transmissão pelas redes sociais. Os profissionais reforçaram que realizaram diagnóstico e apresentaram propostas de curto, médio e longo prazo para enfrentar e evitar novos prejuízos com inundações, bem antes do relatório elaborado por técnicos holandeses e divulgado integralmente pelo Dmae no dia 24 de agosto.

Segundo as entidades, não havia necessidade de contratação dos holandeses para dizer o que já se sabia sobre o sistema anticheias da capital. O coletivo salienta que no RS há técnicos capazes e profissionais capacitados, “sem desmerecer outros profissionais”.

Confira a nota de apoio na íntegra

No contexto de Reconstrução do Rio Grande do Sul e ainda enfrentando os efeitos e as consequências das tragédias climáticas que se abatem sobre nosso Estado há oito meses, cabe, em primeiro lugar, a absoluta solidariedade com todos os atingidos pelas cheias, em especial àqueles que tiveram perdas de seus familiares e entes queridos, além dos que suportam a destruição total ou parcial de suas residências e locais de trabalho.

Devem continuar sendo criadas frentes de trabalho, geridas pelos entes públicos, para a limpeza, remoção de entulhos, adequações nas edificações atingidas, ou a serem construídas, para assentar os desalojados, criando possibilidades de ocupação e renda aos que estão dependendo de apoio e ajuda financeiras.

A seguir cada município, com apoios estadual e federal, devem implementar planos de reassentamentos das áreas de risco, transformando estas em praças, parques e bosques.

A reconstrução do nosso Estado deverá ser orientada a partir das recomendações constantes em estudos e propostas elaboradas por órgãos públicos, entidades, órgãos de pesquisa e instituições de ensino e empresas. Devem ser considerados trabalhos já existentes e todos os que se fizerem necessários, especialmente os relacionados à hidrologia e saneamento com seus planos e projetos.

Medidas preventivas

Também devem ser elaboradas e implementadas medidas preventivas de sustentabilidade, incluindo a participação cidadã, especialmente nas atividades de ocupação do solo urbano, habitação e demais atividades humanas, bem como especial atenção às nascentes e matas ciliares em margens de águas, as várzeas e as encostas. Estes planos e medidas devem ser, de forma célere, debatidas e aprovadas nos Comitês de Bacias Hidrográficas, os quais precisam imediatamente ser reativados com atuação efetiva.

Na região Metropolitana de Porto Alegre deverão ser articuladas medidas de proteção contra as enchentes, no âmbito da região hidrográfica do Guaíba, tratadas em conjunto com as demais regiões hidrográficas do Estado. No caso específico da nossa capital devem ser consideradas as recomendações do Documento Manifestação aos Porto-alegrenses sobre o Sistema de Proteção contra Inundações, especialmente as constantes no seu item 3. Assim que as Águas Baixarem, lançado por um grupo de 48 profissionais em 13 de maio de 2024, manifestação consistente e oportuna, da qual repudiamos ataques com agressões pessoais e inverdades dirigidas aos signatários, atingindo às suas categorias profissionais e de trabalhadores (as).

Documento de conhecimento da atual administração municipal, que demonstra a possibilidade de eficácia e suficiência (até o Morro da Assunção, ao sul da Cidade) do sistema de diques, comportas e bombeamento, a ser recuperado e mantido, observando as medidas do seu item 3 da referida manifestação, superando as tentativas de desqualificar os profissionais que formularam o diagnóstico e as recomendações.

As demais Bacias Hidrográficas do Estado, também duramente atingidas, deverão merecer estudos e propostas a serem implantadas, considerando suas peculiaridades. Complementar, com urgência, a implantação do Sistema Estadual de Recursos Hídricos com seus instrumentos e instâncias.

Uso do solo

Retomar o Planejamento do Uso e Ocupação do Solo em nível Regional e Municipal, considerando os Planos de Bacias Hidrográficas, as áreas de risco, a visão integrada metropolitana e regional.

A apresentação dos respectivos planos, obras e ações, visando sua aprovação e liberação de recursos deve necessariamente estar acompanhada da informação de qual estrutura irá executá-los e mantê-los, bem como a apresentação de medidas preventivas e de sustentabilidade.

Retomar o Planejamento do Uso e Ocupação do Solo em nível regional e municipal, considerando os Planos de Bacias Hidrográficas, as áreas de risco, a visão integrada metropolitana e regional.

Acelerar o processo de reforma urbana, o que é essencial à recomposição do espaço urbano, tornando-o resiliente a tais fenômenos. Bem como o de reforma agrária, o que é também essencial para qualidade de vida através de uma economia sustentável.

A apresentação dos respectivos planos, obras e ações, visando sua aprovação e liberação de recursos deve necessariamente estar acompanhada da informação de qual estrutura irá executá-los e mantê-los, bem como a apresentação de medidas preventivas e de sustentabilidade.

Holandeses rebatem reportagem

Reportagem do Extra Classe, publicada em 23 de agosto, mostra agendas em comum de representantes da universidade TU-Delft, delegação que produziu relatório, prefeitura de Porto Alegre e governo do estado em demandas relacionadas às enchentes. Pontos do conteúdo da matéria foram rebatidos pela assessoria holandesa no Brasil.

Segundo a assessoria, “o DRRS (que produziu o relatório) é um programa do governo neerlandês para ajudar gratuitamente os países que sofrem algum desastre climático e ambiental. A Universidade Deft (que recebe R$ 7,3 milhões) é uma instituição independente e não ligada ao DRRS”. Entretanto, a reportagem não afirma que fossem a mesma coisa, apenas que ambas as frentes atuavam em agendas compartilhadas no RS, com base em informações públicas.

Ainda diz que o DRRS é financiado pelo governo holandês, por isso não haveria interesses de fazer negócios no Brasil. “Não faz negócios, é um programa gratuito e humanitário (atuaram no Katrina e Tsunani, por exemplo)”. Além disso, afirma que o trabalho dos holandeses não quer se sobrepor aos talentos brasileiros (técnicos da Ufrgs, por exemplo). “Eles trabalharam juntos e estão trabalhando juntos”, completa.

A assessoria também rebate que a cônsul-geral da Holanda não participou da equipe que fez o relatório. Contudo, no próprio relatório ela aparece citada duas vezes. Na página 8, assim: “A cônsul-geral de São Paulo para o Países Baixos, Wieneke Vullings, acompanhou a equipe da DRRS de 5 a 7 de junho”.

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