AMBIENTE

Mural gigante denuncia bilionários dos EUA que lucram com desmatamento no Brasil

Lama da enchente gaúcha e cinzas das queimadas na Amazônia foram usadas pelo "artivista" Mundano para denunciar a família Cargill-MacMillan, acusada de lucrar com destruição de florestas brasileiras
Por César Fraga / Publicado em 28 de outubro de 2024
Mural em SP denuncia bilionários dos EUA que lucram com desmatamento no Brasil

Foto: Luan Rentes/Divulgação

Com 1.581,60m², o mural gigante fica em um prédio cuja lateral é voltada para a avenida Brigadeiro Luís Antônio, a duas quadras da avenida Paulista, com ampla visibilidade

Foto: Luan Rentes/Divulgação

Muita gente provavelmente nunca tenha ouviu falar em Cargill-MacMillan, apesar de ser o sobrenome da 14ª família mais rica dos Estados Unidos. O patrimônio líquido combinado é de aproximadamente US$ 60 bilhões. Ela congrega mais bilionários do que qualquer outra família no mundo.

Até aí tudo bem, o que é digno de denúncia, segundo o autointitulado “artivista” Mundano, é que a riqueza do clã provém dos lucros da gigante do agronegócio Cargill Inc, uma das maiores empresas privadas dos Estados Unidos e uma das principais corporações por trás do avanço do agronegócio, a chamada expansão da fronteira agrícola, sobre a Amazônia e o Cerrado brasileiros.

O objetivo de Mundano é justamente “tirá-los deste conveniente anonimato”, para cobrar a responsabilidade pela destruição ambiental que ela induz no Brasil. Para isso, ele inaugurou na sexta-feira, 25, no período que marca finalmente o declínio da pior temporada de fogo do Brasil em 14 anos, um dos maiores murais da cidade de São Paulo,  cobrando     o     fim     da     aquisição     de     produtos     oriundos     do     desmatamento.

Com 1.581,60m², o mural fica em um prédio cuja lateral é voltada para a avenida Brigadeiro Luís Antônio, a duas quadras da avenida Paulista, com ampla visibilidade. A imagem foi pintada com cinzas da floresta amazônica, do Cerrado, da Mata Atlântica e do Pantanal, que estão sendo destruídos para abrir espaço para lavouras de soja que vendem sua produção à Cargill.

Mural em SP denuncia bilionários dos EUA que lucram com desmatamento no Brasil

Foto: Luan Rentes/Divulgação

A produção da obra inclui também lama de cidades do Rio Grande do Sul devastadas pelas inundações que foram comprovadamente agravadas pela mudança do clima

Foto: Luan Rentes/Divulgação

A produção da obra inclui também lama de cidades do Rio Grande do Sul devastadas pelas inundações que foram comprovadamente agravadas pela mudança do clima, que é acelerada pela destruição ambiental promovida pelo grande agronegócio. A obra retrata a indígena Alessandra Munduruku – uma das mais ativas lideranças brasileiras na denúncia da irresponsabilidade ambiental da Cargill – cobrando a realização da promessa, feita por essa família em 2023, de eliminar produtos oriundos de desmatamento        de               sua     cadeia   de                                            fornecimento            até                    2025.

Esta promessa da família Cargill-MacMillan é a mais recente de uma série de compromissos não cumpridos pela empresa . E apesar das belas palavras de seus donos, a Cargill continua adquirindo produtos de áreas desmatadas e apoia o mega-projeto da Ferrogrão, uma ferrovia de quase 1.000km no meio da Amazônia para ampliar a produção e exportação de grãos pelo rio Tapajós, afetando unidades de conservação, terras indígenas e comunidades locais que sequer foram consultadas.

A Ferrogrão aprofundaria violações em curso em uma região onde a Cargill já opera intensamente, tendo construído seu terminal graneleiro sobre um cemitério indígena em Santarém (PA). No ano passado, a empresa foi até denunciada à OCDE por falhas na verificação da legalidade ambiental da soja brasileira que ela adquire.

Para Mundano, “o artivismo é uma maneira de alertar sobre a emergência climática, o maior desafio da humanidade. No Brasil e no mundo sofremos com ondas de calor, secas severas, enchentes, causadas pelo desequilíbrio ambiental que grandes corporações como a Cargill estão promovendo. Meu país foi engolido pela fumaça da ganância. Cargill-MacMillan, querem ser lembrados por serem uma família que acelerou a extinção da humanidade ou por ter sido a família que entendeu a urgência e foi uma das propulsoras para iniciar uma grande mudança global?”

“Eu vejo essa pintura como um pedido de basta em toda destruição que empresas como a Cargill insistem em fazer pelo mundo todo. Se não pararmos com essas práticas o único cenário que as gerações futuras vão conhecer é esse que está atrás de mim na pintura: árvores queimadas e rios secos. Espero que quem passar por esse prédio se veja mais como parte da natureza e se enfureça com os que estão a destruindo!”, declara Alessandra Munduruku.

O mural, um dos maiores de São Paulo, foi executado em parceria com a Campanha Burning Legacy da Stand.earth.

Sua inauguração acontece no mês que marca o início da desaceleração da pior temporada de queimadas no Brasil dos últimos 14 anos, quando o fogo foi amplamente usado para desmatar novas áreas para expansão da fronteira agropecuária no país. Após a inauguração do mural, a Stand.earth levará a mensagem até a porta da família Cargill-MacMillan, nos Estados Unidos, por meio de uma série de cartazes criados por Mundano com líderes indígenas e suas comunidades. Cada cartaz terá o nome de um membro da família impresso com as mesmas cinzas de florestas usadas na produção do mural e a frase: “Cumpra Sua Promessa – Pare a Destruição”.

“A família Cargill-MacMillan diz que não é responsável pelas ações da Cargill porque não está envolvida em sua gestão”, explica Mathew Jacobson, Diretor da campanha Burning Legacy, da Stand.earth. “Isso é como dizer que não sou responsável se meu cachorro te morder porque não estou envolvido no seu adestramento. Como proprietários da Cargill, eles são responsáveis por suas ações. Apenas eles podem decidir se o legado de sua família será de mudança de curso e proteção das florestas do mundo ou se serão responsáveis por sua extinção.”

“Para aumentar seus lucros, a Cargill impulsiona a construção da Ferrogrão, uma mega-ferrovia que sacrificaria a Amazônia e o Cerrado, violando os direitos dos povos indígenas e comunidades locais”, disse Pedro Charbel, coordenador de campanhas para o Brasil na Amazon Watch. “Este megaprojeto para expandir ainda mais a produção de soja e milho é a antítese do compromisso da empresa de eliminar o desmatamento. A família Cargill-MacMillian deveria suspender o apoio da Cargill à Ferrogrão                         e                                         ajudar      a                interromper                                definitivamente      seu       avanço.”

O mural

Com mais de 30 metros de altura e 48 metros de largura, totalizando 1,581,60m² de área, o mural Keep Your Promises é um dos maiores da cidade de São Paulo e da América do Sul. Sua execução foi muito desafiadora. Foram seis artistas que se movimentaram com oito balancinhos elétricos em um dos prédios com maior lateralidade em São Paulo. Todas as tintas foram feitas com cinzas da Amazônia, da Mata Atlântica, do Pantanal, do Cerrado, além de lama das enchentes do Rio Grande do Sul, terra jogada fora em caçambas em São Paulo e argila coletada na terra indígena Sawré Muybu – ou    seja,    são    pigmentos    naturais    feitos    a    partir    de    crimes    e    desastres    ambientais.

Mundano explica que a inspiração para o mural gigante vem da destruição causada pelas cadeias de fornecimento da soja e da carne, que é gigantesca – daí a ideia foi fazer o maior mural possível em São Paulo. A inspiração vem também da experiência de andar em cima de solo rachado da seca, de ter andado e coletado as cinzas com as quais a tinta foi feita. Vem de ver a floresta queimar, de apagar incêndio florestal, criminoso, ali como fazem os brigadistas – que já foram objeto de outro mural de Mundano na capital paulista. Por isso, ele colocou em 1.440 metros quadrados a mensagem, escrita em um cartaz e desenhada no fundo, representando a seca vivenciada em boa parte do nosso país, do sul global e outras              regiões,             mas              também              as              queimadas              dos              biomas.

A inspiração vem também da vivência propiciada pela expedição que Mundano fez com a Alessandra Corapi e mais de 50 indígenas que na região do Tapajós autodemarcaram a terra indígena Sawré Muybu. Foi ali que Mundano viu como a Alessandra é uma guerreira gigante que está defendendo seu território, está defendendo a Amazônia de pé – e defendendo-a contra o avanço da soja que acaba sendo comercializada pela Cargill. Daí a decisão de pintar a Alessandra como gigante no mural.

Cargill: uma década de promessas não cumpridas

A primeira promessa da Cargill de eliminar o desmatamento de sua cadeia de suprimentos foi feita há uma década. Em 2014, na Cúpula do Clima das Nações Unidas, o CEO da empresa, David MacLennan, ao lado do então Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon, prometeu eliminar o desmatamento da cadeia de suprimentos da Cargill até 2020, como parte da Declaração de Nova York sobre Florestas.

Essa foi a primeira promessa não cumprida. Em junho de 2019, um ano após ser multada pelo governo brasileiro por seu papel no desmatamento ilegal, a Cargill abandonou publicamente essa meta.

Seu papel no desmatamento fez com que, em 2020, uma das maiores produtoras de salmão do mundo, a empresa norueguesa Grieg Seafood, excluísse uma subsidiária da Cargill de sua lista de fornecedores por ligações com o desmatamento ilegal no Cerrado e na Amazônia. No ano seguinte, o fundo escandinavo Danske Bank, que administra cerca de €237 bilhões, excluiu as ações da Cargill de dois dos seus fundos por conta da associação da empresa com o avanço do desmatamento.

A campanha Burning Legacy coletou uma série de evidências e casos de desmatamento comprovadamente associados com a cadeia de fornecedores da Cargill no Brasil.

Em 2 de novembro de 2021, na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas em Glasgow (COP 26), novamente a Cargill, junto com outras nove empresas agrícolas que somam uma receita anual combinada de quase US$ 500 bilhões, se comprometeu a “interromper a perda florestal associada à produção e ao comércio de commodities agrícolas”. Esse acordo foi bastante criticado por sua falta de ambição e um relatório independente aponta que a linguagem fraca do acordo deve-se ao lobby da Cargill. A despeito dele, a empresa continuou adquirindo soja de áreas desmatadas.

A promessa de novembro de 2023, feita dentro do contexto do acordo anunciado na conferência climática de Glasgow, reitera o compromisso de eliminar o desmatamento e a conversão de terras de sua cadeia de suprimentos direta e indireta de principais culturas em linha no Brasil, Argentina e Uruguai até 2025. Desta vez, porém, a promessa não foi feita pela empresa, mas pela família que a controla.

Para os ativistas da Burning Legacy, mais uma vez a empresa se vale de uma linguagem vaga que enfraquece o compromisso. Por exemplo, a empresa não explica o que ela entende por desmatamento e conversão de terras gera incertezas. Outro ponto de incerteza é a falta de referência ao Paraguai e Bolívia, grandes produtores de commodities que compartilham biomas que estão sendo devastados pelo avanço da fronteira agropecuária. Por fim, embora mencione o ano de 2025, o texto faz referência a um compromisso global de commodities livres de desmatamento e soja livre de conversão na América do Sul até 2030.

Em vista da futura implementação da lei antidesmatamento do bloco europeu, um relatório independente analisou as fragilidades da promessa da Cargill que podem impedir que a empresa efetivamente garanta produtos livres de desmatamento.

A Cargill declarou ganhos de US$ 160 bilhões no ano fiscal de 2024, que terminou em 31 de maio. Ou 870,4 bilhões de reais.

Soja: mercado altamente concentrado

 Em nível mundial, um pequeno grupo de empresas – ADM, Bunge, Cargill, COFCO e Louis Dreyfuss Company – controla entre 70% e 90% do comércio global de grãos comerciais, como milho e soja. Isso significa que essas empresas têm um enorme poder para mudar a trajetória de destruição dos atuais sistemas alimentares. Se elas se comprometerem a eliminar produtos oriundos de áreas de desmatamento de suas cadeiras de fornecimento, será possível reverter o atual cenário de destruição ambiental nos países produtores.

Nesse contexto, o Brasil se destaca: nosso país é o maior produtor mundial de soja, responsável por 153 milhões de toneladas na safra 2023/2024, ou 39% do mercado global dessa commodity. Ao mesmo tempo, quase todo o desmatamento (97%) do ano passado teve a expansão agropecuária como vetor, segundo dados do Relatório Anual do Desmatamento do MapBiomas. A relação entre a agropecuária e as queimadas ficou evidente este ano: a área queimada em grandes, médias e pequenas propriedades rurais corresponde a 39% dos 11,3 milhões de hectares queimados entre janeiro e agosto deste ano. Nenhuma outra categoria fundiária queimou tanto no período. No caso dos imóveis rurais grandes, a área queimada foi 163% maior do que o registrado no ano passado.

Dados da plataforma Trase, atualizados até 2020, mostram que as cinco grandes traders de commodities estão expostas, ou seja, há o risco de que estejam relacionadas a mais da metade (57%) do desmatamento das exportações de soja do Brasil. Em 2020, a Cargill era a terceira trader mais exposta ao desmatamento.

Quem é Mundano

Mural em SP denuncia bilionários dos EUA que lucram com desmatamento no Brasil

Foto: Luan Rentes/Divulgação

Mundano explica que a inspiração para o mural gigante vem da destruição causada pelas cadeias de fornecimento da soja e da carne, que é gigantesca

Foto: Luan Rentes/Divulgação

Mundano nasceu em São Paulo, em 1986, onde vive e trabalha. É um ​artista reconhecido internacionalmente por seu graffiti “paporreto”, seja no espaço público, ou em mais de 320 carroças dos catadores de materiais recicláveis.

O grafiteiro e ativista procura questionar conceitos e comportamentos dos cidadãos e das autoridades através de intervenções que carregam em sua maioria frases de impacto inspiradas no contexto local. A preservação do meio ambiente e os direitos humanos universais são a base de seu ativismo que transcende as tintas.

Entre as exposições nacionais e internacionais das quais participou estão as individuais “Carudo”, no Espaço Kabul (São Paulo, 2009), e “Vozes mundanas”, na Emmathomas Galeria (São Paulo, 2018); e as coletivas “Parangolé no Brasil”, no Centro Cultural de Embú das Artes (São Paulo, 2006), e “Festival van de Gelijkheid” (Gehnt, Bélgica, 2017).

Mundano foi recipiente do “Prêmio Brasil Criativo – Artes Visuais” (2014); “Ashoka Fellow” (2016); “Grand Prize Third International Public Art Award” (Hong Kong, 2017); e “Grand Prize Netexplo Digital Innovation Award” (Paris, 2018).

O que diz a Cargill

Em nota, a Cargill afirma que “respeita a liberdade de expressão do artista (Mundano)”, mas ressaltou que “o mural baseia-se em relatório que é impreciso e as afirmações nele contidas deturpam o trabalho da Cargill e as nossas cadeias de abastecimento”.

“O fato é que a Cargill acelerou o seu compromisso de eliminar o desmatamento e a conversão de terras das nossas cadeias de abastecimento direta e indireta de soja, milho, trigo e algodão no Brasil, Argentina e Uruguai até 2025. Estamos no caminho certo para cumprir esse compromisso. Continuamos inabaláveis nas nossas ações para proteger os direitos humanos, aumentar a sustentabilidade e proporcionar cadeias de abastecimento livres de desmatamento”, alega a empresa.

 

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