A multidão de excluídos que nos últimos anos concentrou a atenção e a solidariedade do sociólogo talvez nem saíba que ele se foi. O povo que costuma protagonizar as mais envolventes comoções sociais nos velórios de personalidades talvez nem soubesse dele. Betinho não era um Tancredo Neves, um Airton Sena… Betinho era o irmão do Henfil, cristão, não-cristão, militante de esquerda. Betinho sociólogo, hemofílico, soropositivo. Betinho tema de carnaval, cavaleiro da cidadania. Morto no último dia 9 de agosto, em conseqüência de uma hepatite do tipo B, o mineiro Herbert José de Souza encarnou as melhores virtudes que um brasileiro pode ter e viveu imune a alguns dos piores vícios dos filhos desta terra: oportunismo, indiferença, cinismo, esquecimento. Por conta desses atributos nacionais não corre o risco de virar santo. Até porque, antes de tudo, foi um ser humano imprescindível.
O irmão do Henfil partiu
No Vale do Jequitinhonha, norte de Minas Gerais, os matutos sobrevivem da venda do pequi, uma fruta colhida de madrugada e vendida pela manhã na feira de Montes Claros. O pequizeiro é um arbusto que teima em brotar, mesmo sem ser plantado, numa das regiões mais pobres do planeta. Seco e duro por fora, o pequi é sur-preendentemente aromático e tenro por dentro. Como o fruto mais popular da região de Bocaiúva, sua terra natal, Herbert José de Souza, o Betinho, viveu surpreendendo pela capacidade de transformar um corpo frágil num dos maiores símbolos de resistência que o país já viu.
Às 21h10min do dia 9 de agosto, momento exato de sua morte, Betinho pesava 39 quilos e estava sendo alimentado através de um tubo nasal.
Fim emblemático para um homem que nos últimos anos ajudou a colocar comida na boca de 32 milhões de brasileiros que vivem na miséria absoluta.
O sociólogo, de 60 anos, inspirador da Campanha contra a Fome e a Miséria era hemofílico e soropositivo há pelo menos 12 anos. Betinho teve uma existência marcada pelo sofrimento físico e pela ameaça constante da morte.
Logo ao nascer, sofreu uma hemorragia no umbigo, quase sempre fatal para hemofílicos. Na adolescência, uma tuberculose forçou-o a um isolamento de três anos no quarto dos fundos da casa da família. Foi salvo pela descoberta de uma droga chamada Hidrazida, ainda hoje usada no tratamento da tuberculose. Nos anos 60, quando teve de se esconder do regime militar, uma úlcera no duodeno levou-o a uma internação arriscada no Hospital das Clínicas de São Paulo, onde foi operado, sob nome falso, por um médico que o conhecia.
Há onze anos, uma das tantas transfusões de sangue que era obrigado a fazer regular-mente carregou para dentro de seu corpo o vírus HIV. “O país que ele queria salvar condenou-o à morte; foi o descaso oficial com a Saúde que matou Betinho”, protestou Frei Betto, referindo-se à ausência de um controle eficaz sobre o plasma dos bancos de sangue no país. Betinho morreu em conseqüência de uma hepatite do tipo B, contraída em uma transfusão de sangue recente. O frade dominicano que conhecia o ex-integrante da Juventude Universitária Católica (JUC) desde 1959, foi encarregado da oração de despedida. Pouco antes de completar 30 anos, Betinho renegara a fé católica, ao descobrir que não precisava se conservar virgem para se curar da tuberculose.
“Temos sociólogos bons e medíocres.
Uns acabam professores, outros presidentes da república”
(Herbert de Souza, Betinho, sociólogo)
Otimista, Betinho acreditava na descoberta da cura da AIDS. Mas ela não chegou a tempo de alcançá-lo. Antes de enfrentar o próprio destino, o sociólogo assistiu às mortes de dois de seus sete irmãos, o cartunista Henfil e o músico Chico Mário. Ambos hemofílicos como ele e vítimas de transfusões sangüíneas. Henfil foi um crítico mordaz da ditadura militar, através das charges publicadas no Pasquim e no Jornal do Brasil. O compositor Aldir Blanc, autor da letra de “O Bêbado e o Equilibrista”, revelou Betinho ao país como “o irmão do Henfil”. A música fez sucesso no final dos anos 70, na voz de Elis Regina.
Herbert de Souza estava entre “aquela gente que partiu num rabo de foguete”, após o golpe de 1964. Militante de esquerda ligado à Ação Popular (AP), organização marxista-leninista que ajudou a fundar dois anos antes, Betinho era assessor do Ministério da Educação no governo João Goulart. Para fugir da perseguição e da tortura que seria fatal para ele, fingiu ser doente mental e passou um tempo internado no Hospital Pinel, no Rio de Janeiro.
Entre 1964 e 1968, viveu no Uruguai e na Europa, intercalando curtos períodos de clandestinidade no Brasil. Em 1968, desafiou o perigo e foi trabalhar como operário no ABC paulista. O emprego foi arranjado pelo então companheiro da AP, o atual ministro das Comunicações, Sérgio Motta. A AP era uma organização política que se orientava pelo maoismo e os maoístas (inspirados pelo líder chinês Mao Tsé-Tung), acreditavam que a História reservaria um papel heróico ao proletariado.
O clima de repressão levou o sociólogo a sair do país em 1971, indo para o Chile, Canadá – onde concluiu o mestrado em Sociologia -, Panamá, Escócia e México. Em Santiago, por indicação do antropólogo Darcy Ribeiro (falecido em fevereiro deste ano), Betinho trabalhou com o principal assessor do presidente Salvador Allende, Juan Garcez. Na clandestinidade, o sociólogo usava o codinome Wilson. Por razões de segurança, o filho mais velho, Daniel, hoje com 31 anos, era obrigado a tratar o pai como se fosse seu tio. Ainda no Chile, conheceu Marli, nome falso da também socióloga Maria Nakano, sua segunda mulher e mãe de Henrique, 15 anos.
Na volta ao Brasil, após a abertura política e a redemocratização, fundou o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). Primeira Organização Não Governamental (ONG) brasileira, o instituto recebeu o apoio do arcebispo de São Paulo, cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, e reunia intelectuais para pesquisas multidisciplinares. À frente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (Abia), criada em 1986, após descobrir que era soropositivo, Betinho liderou uma campanha para fiscalizar a qualidade do plasma dos bancos de sangue.
Mas foi a partir de 1992, com o impeachement do então presidente Fernando Collor, e com o surgimento do Movimento pela Ética na Política, que Betinho deflagrou a ação da cidadania que lhe daria projeção internacional. Tudo começou com a idéia de aproveitar as sobras de comida dos restaurantes da Zona Sul do Rio de Janeiro para alimentar pessoas carentes. O Mapa da Fome, elaborado pelo Ibase e IBGE, apontava 32 milhões de famintos no território nacional.
Em pouco tempo, a corrente de solidariedade se alastrou país afora. Sindicatos, associações de moradores, clubes de serviços, cooperativas e entidades estudantis se envolveram na coleta de alimentos, roupas, remédios e dinheiro para a campanha. Ao todo, 25 milhões de pessoas fizeram doações aos mais de quatro mil comitês que brotaram pelo Brasil no primeiro ano da Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria e pela Vida.
O antropólogo Rubem César Fernandes, presidente do Instituto de Estudos da Religião (Iser), que esteve ao lado de Betinho na campanha, diz que o mérito do sociólogo foi ter conseguido unir duas idéias antigas, a cidadania e a caridade. No Natal de 1994, o movimento conseguiu arrecadar 600 toneladas de alimentos. Em 1995, Betinho lançou a segunda etapa de sua cruzada cívica, destinada à criação de novos empregos. No mesmo ano, foi um dos símbolos do movimento Reage Rio, contra a violência na cidade maravilhosa.
No auge da popularidade, teve de conviver com o assédio dos políticos, de quem se aproximou apenas com a intenção de conseguir apoio para as causas sociais. No governo Itamar Franco, foi indicado por Luís Inácio Lula da Silva para integrar o Conselho de Segurança Alimentar (Consea), presidido pelo bispo de Duque de Caxias (RJ), Dom Mauro Morelli. No Rio de Janeiro, ocupou por alguns meses o cargo de Defensor do Povo, na gestão do prefeito Marcelo Allencar.
Também aceitou a indicação do presidente Fernando Henrique para o conselho do Programa Comunidade Solidária, comandado pela primeira-dama, Ruth Cardoso. Em maio do ano passado, decepcionado, Betinho desligou-se do posto por achar que o governo demorava demais para aprovar a agenda social.
Durante a candidatura do Rio para sediar as Olimpíadas de 2004, Betinho deu a idéia da criação da Agenda Social. E, pouco antes de morrer, convenceu alguns empresários à apresentarem, anualmente, o Balanço Social, um relatório dos investimentos na melhoria da qualidade de vida dos funcionários e das comunidades vizinhas das empresas.
O trabalho em favor dos pobres lhe rendeu uma pré-indicação para o prêmio Nobel da Paz de 1993. A tese, defendida por Itamar Franco e apoiada pela unanimidade dos brasileiros, só não prosperou porque naquele ano estourou a denúncia de que a Abia, entidade que Betinho presidia, recebera um cheque de US$ 40 mil dos banqueiros do jogo do bicho. Mais tarde, Betinho admitiu ter recebido o dinheiro, mas justificou que era para salvar vidas de pessoas com AIDS.
Antes do envolvimento com os bicheiros, o sociólogo já havia recebido da Organização das Nações Unidas (ONU), o prêmio Global 500, de 1991, por seu trabalho em favor da ecologia, e o Criança e Paz, da Unicef, por defender e promover os direitos da criança. O reconhecimento popular veio no carnaval de 1995, através da homenagem prestada pela Escola de Samba Império Serrano.
O samba enredo definiu o apóstolo da cidadania como “um moderno Dom Quixote/ com mente forte/a nos guiar/ Um filho do verde esperança/ não foge à luta/vem lutar.” Mesmo abatido pelas doenças do corpo, Betinho lavou a alma desfilando sobre um carro alegórico na Marquês do Sapucaí, cercado de mulatas. Betinho amava o seu povo e gostava das mesmas coisas simples que fazem a alegria dos humildes.
Nos últimos momentos de lucidez, pediu ao filho Daniel para ouvir músicas de Vivaldi, enquanto saboreava uma cerveja gelada. Betinho deixa também uma herança sonora. O disco “Canto da Cidadania” está sendo gravado em Belo Horizonte, será lançado em setembro e a renda revertida para a campanha contra a fome.
Nele, uma letra inédita de Betinho, no estilo característico do matuto mineiro. “Às vezes a vida, o sofrimento, as injustiças é maior que nóis./Mas se a gente acreditá numa luzinha que mora no fundo de dentro da gente, a gente vorta a sonhá./Vorta a sabê que nóis, que gente foi feito prá inventá o mundo de novo, prá muda e desmudá, carregando alegria.”
A família atendeu ao último pedido de Betinho. Seu corpo foi cremado e as cinzas polvilharam o solo do sítio que ele tinha em Itatiaia, região de montanhas. Em breve, vão nascer ali alguns pés de pequizeiros, que nas madrugadas do futuro vão deixar cair seus frutos e ajudar a saciar a fome dos matutos brasileiros.
Herbert “Chaplin” de Souza, o Betinho
Meu Brasil/Que sonha/Com a volta do irmão do Henfil…”
(O Bêbado e o Equilibrista)
Todas as palavras escritas em horas assim traem o morto. Então, por que escrevê-las? Porque embora minha vontade esteja mais para ir criar confusão num boteco da esquina, essa não seria a vontade dele.
Betinho de casaca prateada na Marquês do Sapucaí, desfilando a meu lado na comissão de frente da escola de samba que homenageava Elis Regina, fazendo piadas sobre o “molejo” de seus joelhos fraturados.
Vou ficar com a noite em que, enlevado pelo pagode do Caras e Bocas, Betinho batucou num copo com uma taça. Os pedaços de vidro choveram em torno de seus pés calçados de sandálias e ele nem os notou. Seu filho Daniel e eu praticamente pulamos no chão e catamos os cacos, enquanto Betinho fazia cara de “pra que esse pânico?”
Chega. Esse texto só foi escrito para lembrar que Betinho morreu vítima dos traficantes do sangue contaminado, médicos/comerciantes que fazem do lucro assassino a razão de suas vidas – assim como os ladrões dos precatórios, os assaltantes do orçamento, os juízes fraudadores, os usineiros safados, os empreiteiros corruptos, os banqueiros lesa-povo. Minha revolta procurará ser sempre maior que minha dor. Aprendi com ele. Continuo achando – ele sabia, eu sei! Que uma dor assim pungente, etc, etc,
Tchau. Hoje, a esperança não quer mais dançar. Mas ela volta. É só pensar no Betinho que ela volta.
* O compositor e poeta Aldir Blanc, em parceria com João Bosco, é o autor de O bêbado e o equilibrista, música popularizada no final dos anos 70 na voz de Elis Regina. Numa metáfora típica dos anos da ditadura militar, ele consagrou a designação de Irmão do Henfil ao então exilado Betinho. Este texto de Aldir Blanc foi publicado no jornal O Estado de São Paulo no último dia 11 de agosto.