CULTURA

O impassível olhar da maturidade

Stella Máris Valenzuela / Publicado em 30 de agosto de 1998

Às vésperas de completar 60 anos, no próximo dia 15 de setembro, a escritora Lya Luft experimenta a serenidade daquele momento em que a quietude e a reflexão estão eleitas como companheiras inseparáveis.

Quietude e reflexão são estados de espírito privilegiados por Lya Luft. Em 15 de setembro ela completa 60 anos. E já vem, há algum tempo, desfrutando o sabor da maturidade, sobretudo a liberdade interior. “A nossa cultura está fixada nos mitos da eterna juventude, da imortalidade da beleza. O consumo é dirigido a isto. A gente anda com os faróis voltados para atrás. Na verdade, acho que a vida é um processo, uma dinâmica constante. É como subir uma montanha. Mesmo que no fim não se esteja tão forte fisicamente, a paisagem visualizada é melhor”.

Acho que tenho uma visão positiva do masculino. Os dois companheiros me ensinaram questões de vida e sobre mim mesma”.

Esta consagrada escritora gaúcha nasceu em Santa Cruz do Sul. E morou lá até se casar, aos 24 anos, com o professor de Português e gramático Celso Luft. Eles tiveram três filhos – a médica Susana, o agrônomo André e o professor de filosofia na PUC, Eduardo. Depois vieram três netos homens. Entre fins de agosto e início de setembro chega a primeira neta mulher, filha de Susana, que reside no andar de cima do sobrado onde vive Lya Luft. “Vai ter de novo uma criança nesta casa”, revela com alegria.

Lya teve um longo convívio com Celso Luft, de quem é viúva. No intervalo de seis anos – que ficaram separados – viveu com o psicanalista Hélio Pelegrini, que também faleceu. “O casamento com o Celso foi o fundamento da minha vida. Ele foi meu professor na faculdade. Era quase 20 anos mais velho do que eu. Devo muito ao Celso intelectualmente e emocionalmente. Me ajudou a crescer como ser humano, o que é muito importante numa relação. E o casamento com o Hélio foi de dois anos e pouco. Acho que tenho uma visão positiva do masculino. Os dois companheiros me ensinaram questões de vida e sobre mim mesma”.

Hoje, ela busca a simplicidade. Vive a fase da colheita. Costuma dizer que não precisa mais escolher marido, educar filhos pequenos, pagar prestação da casa própria. E, tampouco escolher uma profissão e combater no mercado de trabalho. Ultrapassou os percalços, que tornam a juventude tensa e compromissada. “Esta prestação de serviços eu já fiz. De maneira que agora tenho mais possibilidade de olhar para dentro de mim. Tenho mais paciência e bom humor com os outros e comigo mesma”. A maturidade, para ela, traz muitos ganhos. “Ao invés de se afligir com o ninho vazio e com a aposentadoria, as pessoas deveriam se orientar para curtir esta etapa como um privilégio. Se pode ler, passear, fazer novas amizades e reatar as velhas”.

O ingresso na vida literária foi lento. Lya não ambicionava ser escritora. Acha que a arte acontece na vida das pessoas. “Eu era uma aluna boa em redação e gostava muito de ler”. Desde pequena se deleitava com os livros de seu pai. E aproveitou para organizar sua própria biblioteca. “Minha cama de mocinha ficava entre prateleiras. Bastava estender a mão e os livros estavam ao meu alcance”. Quando menina tinha um diário e adorava ouvir estórias infantis. Inventar personagens e brincar com as palavras a estimulavam.

Como a maioria dos interioranos, Lya veio estudar na capital. Cursou Pedagogia, depois se formou em Letras anglo-germânicas, fez mestrado em Lingüística, todos na PUC. Mais tarde, o mestrado em Literatura Brasileira e Portuguesa, na UFRGS. Quando estava na faculdade lia poesias brasileira, alemã, portuguesa, inglesa e americana. Tomada pelo sabor desse gênero, começou a criar poemas. Ainda na academia, participou de um concurso de poemas, promovido pelo Instituto Estadual do Livro (IEL), obtendo o primeiro lugar. Esta obra – já esgotada – se chama “Canções de Linear”.

Por volta de 1964, Lya publicava, semanalmente, suas crônicas no antigo Correio do Povo. Em 1972, a coleção da Editora Sulina intitulada “Poetas hoje” publicou o segundo livro – “Flauta Doce”. Na seqüência, uns seis anos após, vieram as crônicas – “Matéria do Cotidiano”, também editadas pelo IEL. Mas foi somente a partir do primeiro romance, em 1980 – quando estava com 40 anos – que passou a se considerar uma escritora. E começou a escrever um livro atrás do outro. “As Parceiras”, “Reunião de Família” (roteirizado por Caio Fernando Abreu e levado ao palco pelo diretor Luciano Alabarse), “Asa Esquerda”, “Quarto Fechado”, “Exílio”, “A Sentinela”, “Rio do Meio” (que ganhou prêmio de melhor obra de ficção no ano passado) e “Secreta Mirada”. Lya também é tradutora de inglês e alemão. “São mais de 30 anos de trabalho. Já perdi a conta de quantas obras traduzi. Acho que mais de 120 livros”.

“… acho que a vida é um processo… É como subir uma montanha. Mesmo que no fim não se esteja tão forte fisicamente, a paisagem visualizada é melhor”.

Lya gosta muito de conversar. E lhe ocorreu que poderia fazer algo mais. Desta forma, surgiram os grupos de discussão sobre maturidade que ela orienta regularmente. São quatro encontros por mês. Não são cursos, no sentido formal e, tampouco terapia. Nestes espaços, as pessoas falam dos seus medos, das perdas, das culpas, das raivas, dos ganhos, enfim, abordam os novos horizontes das experiências. As reuniões são no consultório da terapeuta Martha Herzberg, sua sócia nesta atividade. As reuniões com mulheres são terças e quartas à tarde e o grupo de homens, na segunda à noite.

As mulheres são mais confidentes. Para os homens é uma novidade. Eles estão contentes por ter um lugar onde possam falar sobre a passagem do tempo, algo além do de praxe – mulher, automóvel, dinheiro e clube de futebol. Lya observa que a tendência das pessoas é valorizar mais as perdas do que os benefícios. A perda da casa, da juventude, do emprego, da infância. “A beleza física não se perde, se transforma. Uma pessoa madura pode ser tão bonita quanto um jovem. É mais tranqüila, mais harmoniosa, mais natural. A vida é feita de perdas e ganhos. E depende muito da gente sair da postura de vítima. A vida me fez isto, fulano me sacaneou, o outro me explorou, me passou para trás, os filhos saíram de casa, o marido abandonou. Me parece que esta é uma posição infantil e muito fácil. Mas afinal, o que cada um está fazendo para sair desta posição?”

A fase da maturidade é de autovalorização. “Defrontar-se com a gente mesma é um susto. Mas pode ser um momento de descoberta”. As pessoas tendem a se valorizar muito pouco, sobretudo as mulheres. A gente vive em função do marido, dos filhos e pouco em função de si mesma. E a maturidade é uma grande oportunidade para isto.

“A amizade com Caio Fernando Abreu foi engraçada. Ele era 10 anos mais novo do que eu. Tínhamos vidas completamente diferentes. O Caio tinha aquela vida louca e eu essa quieta de casa, muito ligada à família, em amigos, trabalho e livros. Mas a gente tinha uma amizade fraterna. Em algum ponto qualquer nos éramos iguais. Almas irmãs. A gente não precisava nem se falar. A última vez que nos encontramos foi no Restaurante Tirol. E ele disse assim – tu vês Lya, eu que fui tão suicida, hoje que vou morrer, amo a vida”.

“Ele me ligou quando estava no hospital. Vinha sofrendo muito. E me perguntou – o que tu achas que vai acontecer comigo quando eu me libertar desse corpo. Eu disse – olha eu espero que aconteça o mesmo que aconteceu com o Celso e com o Hélio – você vai entender a vida. Vai entrar no mistério sobre tudo o que a gente pensou, escreveu, lutou e anunciou. E ele disse – e se não for assim? Bom – se depois de tanta luta na vida, a gente descobrir que não é isso, fazemos uma banana para Deus e vamos virar uns diabos bem perversos e fazer bastante maldade neste mundo. Então ele deu uma risada. E foi a última vez que escutei a voz do Caio. Embora vivendo o drama da existência humana, trabalhando nisso na nossa literatura, a gente sempre tinha uma chispa de humor. Ele era uma pessoa bem-humorada. Eu gostava muito do Caio. E gosto ainda.

Na intimidade da escritora

Livro de cabeceira – Não tenho um livro de cabeceira. Leio mais poesia do que ficção. Estou lendo ensaios sobre questões humanas e Psicologia. Mas desde menina leio Rainer Maria Rilke, talvez seja meu poeta de cabeceira.

Poeta preferido – Drummond, sonetos de Camões, Fernando Pessoa e Rilke. Sou muito eclética, muito variada.

Filme – Não tenho preferido. O que mais gostei dos últimos que vi foi o Advogado do Diabo. É um filme cheio de alusões mitológicas, religiosas, psicanalíticas. Não sei em que medida as pessoas se deram conta da riqueza de informações que tem nas entrelinhas. Não sou muito chegada em cinema. Vejo filmes como diversão.

Música – Posso escutar Chico Buarque, Bethânia e Nana Caymmi dias a fio, mas também posso ficar uma época repetitivamente ouvindo Mozart. Gosto de música um pouco melancólica. Não gosto do Mozart puladinho, alegrinho, mas quando ele é profundo, chega a ser sublime. Nos últimos dias, andei escutando dois Cds da Maria Callas, com árias lindíssimas.

Sonho – Entender melhor a vida. Curtir minhas amizades, minha família.

Projeto – Estou trabalhando em dois livros. Um não está deslanchando. É um romance. Outro é sobre maturidade, perdas e ganhos. Um livro de reflexões. Ainda não sei o título, mas o subtítulo será maturidade, perdas e ganhos.

Vida – Vida é esse processo misterioso da gente estar jogado no mundo. Esse aprendizado maravilhoso. Desde muito criança tenho o desejo de entender um pouco esse mistério – as relações humanas, a natureza, o destino do homem. Sou muito tocada pela sensação do mistério, da transcendência da vida. Acho que a vida é mistério, transcendência e processo.

Morte – Não sei, saberemos depois de estarmos nela . Acho que ela é tão natural como a vida. Mas nunca estamos preparados. A grande fragilidade humana é exatamente esta. Estamos pouco preparados para as coisas naturais. A civilização nos tornou seres pouco naturais. A educação, a civilização são cortes da natureza. A gente está se afastando da natureza. Você deixa de ser um animal puro, quando se educa, se sofistica, se intelectualiza. E este afastamento da natureza traz aquilo que Freud chamou de mal-estar da civilização E nisso está inserido a questão da morte, que para nós é estranha porque não somos naturais.

Alegria – A família e amigos, sobretudo.

Viagem – Não gosto de viajar.
Sou preguiçosa. Acho que através dos livros, da televisão, da minha fantasia posso viajar muito mais do que ir para aeroportos. Eu tive uma vez uma estada com o Saramago e a mulher dele, umas duas ou três semanas em Londres, cidade que gostei muito. Gosto de Nova Iorque. Lá você pode fazer desde as coisas mais banais até as mais sofisticadas culturalmente. Gosto muito de ficar quieta em casa. A coisa que mais curto é meu veraneio em Torres. Desde que nasci passo as férias lá. Fico completamente descompromissada. Adoro praia, mar, caminhar e reencontrar os amigos, que só vejo uma vez por ano.

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