Ás vésperas de completar 40 anos de idade e 20 de trajetória artística, o compositor e cantor Nei Lisboa mantém fidelidade ao seu ritmo peculiar de criação e trabalho que o consagrou entre os fundadores da chamada música popular gaúcha a partir dos anos 70 em Porto Alegre. Paciente, prepara o lançamento de Hi Fi para janeiro e a reedição de Amém, enquanto trabalha num terceiro CD com músicas inéditas para o segundo semestre do ano que vem.
Nei Lisboa estava com oito anos quando subiu pela primeira vez em um palco. Foi no Theatro São Pedro. E tocou – “hoje eu quero a rosa mais linda que houver. A primeira estrela que vier” -, com outros 18 colegas, o clássico de Dolores Duran, “A noite do meu bem”. “Naquela época, a gente tinha acabado de se mudar para Porto Alegre. Ganhei um violãozinho e tive minha iniciação artística. Curtia música popular brasileira – estava em alta. Era a fase dos festivais. Quando cheguei de Caxias do Sul em 67, local onde nasci, cursei alguns meses o Palestrina. A cada final de semestre, a escola promovia uma exibição, com todos os alunos. Há pouco tempo ganhei o programa daquela apresentação”.
Depois, Nei parou de tocar. Porém continuou ligado à música. Cantava no banheiro e escrevia poesias. Com 15 anos partiu para o sul da Califórnia, num intercâmbio cultural. Embora vistosa, a cidadezinha onde se instalou não tinha muito o que fazer. Mas na casa onde estava tinha um violão. Foi o que bastou para retomar a música. Agora com outro repertório – Beatles, Elton John e música pop. O entusiasmo começou a brotar. “Voltei para o Brasil pensando em estudar música. Ingressei no curso de Composição e Regência da UFRGS. Era um péssimo aluno, muito indisciplinado para aquele caráter clássico e formal. Estava querendo outras coisas. Já vinha compondo. De fato, estava mais preocupado com as rodas de som da universidade. E aí comecei a me apresentar dentro da universidade, que fervilhava. Era final dos anos 70, o país estava se abrindo, anistia e coisa e tal”.
Em 79 aconteceu o primeiro show. Ele e Gelson Oliveira tocaram três dias no Teatro de Cultura, da Ramiro Barcelos. O público foi o cativado na universidade. E o repertório, Nei nem lembra mais. “Foram se perdendo entre uma mudança e outra”. Já com pose de artista, os músicos saíram desta mostra com gostinho de quero mais. Não demorou muito e já estava na rua o show Deu pra ti anos 70, uma expressão popularizada pela juventude que, no final dos anos 70, ainda inocente, adquiria consciência política, e que também inspirou o filme homônimo de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti.
Em 80 e 81, as dificuldades eram consideráveis. Quase nenhum músico conseguia se lançar no Rio Grande do Sul. Foi quando a Rádio Bandeirantes FM começou a rodar fitas. Disco, então nem pensar. O Nelson Coelho de Castro fez uma produção independente, financiada pelo público comprador de bônus. “A minha primeira gravação em fita – Pra viajar no cosmos não precisa gasolina, rodou na Bandeirantes um tempão. Mas nem sei com quem possa estar. Era genial. Nesta época era difícil montar um espetáculo. Não havia patrocínio.”
Nos anos seguintes, cresceu o padrão da estrutura produtiva do mercado. O primeiro disco saiu em 1983, depois de fitas e mais fitas rodadas na Band FM, vários shows e alguns festivais. “Foi o mesmo esquema de bônus feito pelo Nelson, e que tinha sido um tremendo sucesso”. No ano seguinte, ele assinou contrato com uma gravadora gaúcha. Gravou o segundo disco – Noves fora e relançou o primeiro. “A partir daí, a coisa passou a tomar um porte maior. Estava com dois discos gravados, um público no interior, enfim, uma estradinha aberta”.
Uma vez que outra, Nei se mandava para São Paulo e Rio de Janeiro. Investidas que não vingaram pelo seu jeito meio tímido. “Não me adapto em qualquer situação. Lá, ninguém queria saber se eu tinha discos gravados por aqui. Eram situações complicadas. Tocava abrindo o show do fulano, com o equipamentozinho que sobrasse, ou, pior – depois que o cara já tinha furado o bumbo da bateria. E sem divulgação nenhuma, coisas assim”. Como não agüentou o tranco, voltou de mala e cuia. Depois fez outras tentativas, mas sempre acabou retornando a Porto Alegre.
Em 87, Nei assinou contrato com uma gravadora do centro do país e passou a desfrutar das regalias de produção a que tinha direito. Gravou Carecas da Jamaica e Hein?. Depois de uma fase difícil – briga com a gravadora, acidente e morte da namorada Leila Espellet surgiu o Amém, em 93. Foi um trabalho voltado para outro lado, de costas para o Rio e São Paulo, mais virado para o Uruguai, país que adora. “Gosto deste disco. É muito rico musicalmente”. Mais uma parada até o novo disco – o Hi Fi. Ele diz brincando que é um trabalho de entresafra. O lançamento deve ser em janeiro, no Teatro Renascença. Mas antes, ele não descarta a possibilidade de acontecer algumas apresentações esparsas.
Seu processo criativo não é muito fluente – depende do dia e da situação. Mas, quase sempre é angustiante. “Depois de cinco anos parado, agora estou fazendo uma música para Porto Alegre. É uma encomenda da EPATUR. Leva um tempão até me satisfazer. Não gosto de coisa matada”, revela dando mostras de sua exigência. “Mas depois de pronta é legal”. acrescenta.
Nei acumula alguns prêmios. Recebeu de diversos festivais, dois Musipuc, mais adiante um do Hipoincosul, depois o Sharp, com os Carecas da Jamaica, dois Açorianos. “Ganhei em 1992, do ex-prefeito Olívio Dutra, uma imensa medalha de cidadão de Porto Alegre, por serviços prestados à cidade, que guardo com muito carinho”.
Sua trajetória contabiliza seis discos, um repertório de umas 50 músicas gravadas e outras 100 perdidas. “Não sou nem um pouco organizado. Não tenho registro, nem letras. Têm coisas que, de vez em quando algum amigo me relembra”. Já vendeu uns 10 mil discos, bastante na sua opinião, porém pouco para os padrões do mercado – 30 mil, pelo menos.
INÉDITAS – A vida de músico, para ele, não está necessariamente atrelada à profissão. “Cada um faz a sua vida de músico, como a de ser humano. Porém, tem umas peculiaridades. O cara tem que gostar de viajar. Prefiro roteiros curtos, pertinho, pelo interior. É preciso suar a camiseta, pois o mercado é muito concorrido. Tem que ter predisposição, demonstrada desde cedo. Mas é claro que talento se forma com o passar do tempo”.
Em média, Nei faz uns 20 shows por ano. Ele vai bastante a Pelotas e Santa Maria. “Do jeito que tá, não me incomoda. Acho interessante levar desse jeito morno. A questão é que as pessoas pedem algo novo. Por isso, está saindo este disco agora. Acho que ao natural a coisa vai acelerar”. Os projetos incluem o lançamento do Hi Fi, o relançamento do Amém e um terceiro disco com músicas inéditas. Este deve sair no segundo semestre de 1999, ano em que completa 40 anos.
Mas a vida de Nei não é feita só de música. Ele também se sente plenamente senhor do seu trabalho elaborando livros. Seu bureau – o Alef completou quatro anos e funciona como uma editora. Produz capa, arte final, revisão, editoração eletrônica, algumas etapas com parcerias. As pistas para o próximo ano são promissoras, particularmente aquelas envolvendo a criatividade de sua veia musical. Afinal, o público pede mais.
DISCOS:
Pra viajar no cosmos não precisa gasolina
Noves fora
Carecas da Jamaica
Hein?
Amém
Hi Fi
Conversa franca
Hobby
Ando churrasqueando. De uns dois anos para cá, comecei a me dedicar a este aprendizado interessante.
Drinque
Andava sendo o Hi Fi, mas já estou enjoando o suco de laranja.
Prato preferido
Vitela com batatas, do Montepolino.
Alegria
Meu cachorro. Ele está muito bonito. Mas também é um inferno.
Sonho
Viajar pelo mundo uns seis meses.
Timidez
Sou bastante tímido.
Humor
Um pouco de falta de paciência.
Parcerias
Olha, nunca pensei. Não tenho tido parcerias. Acho complicado trabalhar com parcerias. É difícil.
Influência
Não me vejo como alguém que esteja deixando muitos legados. Mas, em matéria de comportamento, no sentido artístico e profissional, acredito que sim. Nós (Nelson Coelho de Castro e Bebeto Alves) fomos o passaporte para um monte de gente. Mas acho que falta aqui uma tradição musical. Depois vieram as bandas de rock. Estas não são um resultado do nosso trabalho. Não existe uma linha evolutiva no desenvolvimento musical urbano do Rio Grande do Sul. Até o diálogo é meio difícil.
Rio/São Paulo
Tenho simpatia por São Paulo, mas no Rio o mercado é mais complicado. Se existe preconceito com os artistas gaúchos, acho que é de ambos os lados. Mas tem gente que sabe transitar bem neste meio, como a Adriana Calcanhoto. Ela está trabalhando bem sua figura artística, cuidando o jeito como se coloca.
Uruguai
Adoro Montevidéu. É uma cidade maravilhosa para passear e viver. Acho que deveria haver muito mais trocas. Acho mais interessante artisticamente para nós, do que Buenos Aires.
Modernidade
Olha, pergunta seríssima. Está complicado. Está difícil de se entender os últimos acontecimentos. Eu, talvez como muita gente, estou meio perplexo. Sou de uma geração que via o mundo dividido entre os reacionários e os companheiros. Então, sofro de um pouco de saudades, de nostalgia dessas referências, que hoje se tornaram não muito distintas. Ao mesmo tempo, não há uma contrapartida aceitável. Não vou jogar o meu ideal na bolsa. Mas é preciso jogar o ideal em algum lugar.
Fim de Século
É este retrato que estou tentando visualizar e descrever. Estamos sentados em cima dessa realidade e ninguém tem resposta, de um modelo recém caído (Muro de Berlim) e, de um outro que mal começou (globalização) e eles nem conseguiram festejar, pois já se vê que não é bem assim. Não sei se dá para ser otimista ou pessimista.
Outros Ritmos, segundo Nei
Gauchesco
É difícil falar, sem cair no preconceito. Teria que separar todo um espectro de música gauchesca e nativista. Na minha cabeça isso é um pouco confuso. Acho que esta confusão se estabeleceu, a partir de um determinado momento, onde o gauchismo dos festivais tomou conta. Certas coisas são muito ruins, estereotipadas, gaúcho para inglês ver, gaúcho de churrascaria. Outras são realmente legais, autênticas, como o Gaúcho da Fronteira, por exemplo. O Borguetinho é maravilhoso. É um cara que mescla a tradição com outras coisas. É preciso considerar, que o mundo andou bastante depois da Revolução Farroupilha, se absorveu uma série de outras informações. Cada um cria, a partir de sua visão de mundo. Gostaria que houvesse uma ponte entre a tradição musical regionalista e o público moderno urbano.
Sertanejo
Há certas coisas que não acrescentam, que são pobres de linguagem e de conteúdo. Mas fazem sucesso. Não sei se sou eu quem está querendo demais.
Baianos
O Axé Music está numa situação de mega exploração comercial. Se vê que já é subproduto. Mas de início, na essência, a música baiana produziu João Gilberto, Dorival Cayme, Gilberto Gil, Caetano, Bethânia e Gal. Ninguém faz uma música tão dançante, como a música negra. É a grande música desse século. A Bahia sintetizou bem esta questão da tradição e do moderno. Não tem conflito, nem culpa e, tampouco moralismo. Tudo é usado, criado, mesclado, com resultados diversos e bem-sucedidos.