CULTURA

Um pouco de sangue lisitano

Luiz Carlos Barbosa / Publicado em 20 de abril de 1999

A matriz portuguesa está tão assimilada na cultura do estado que passa despercebida, como se tivéssemos sido criados exclusivamente por alemães, italianos e espanhóis. Desta edição até abril do ano 2000, o Extra Classe abordará as várias culturas que ajudaram a formar um Rio Grande do Sul bem brasileiro

Onde está a presença portuguesa no Rio Grande do Sul às vésperas dos 500 anos da chegada de Pedro Álvares Cabral? Diante desta colocação, logo invade a mente dos gaúchos a imagem dos imigrantes alemães e italianos. Mas a comparação é inadequada. O processo fora diferente. Os lusitanos cá chegaram antes e não precisaram se organizar em grupos porque estavam em casa. A presença mais significativa nem é notada. Tão enraizada está nestes substantivos, verbos e adjetivos que tomamos emprestado de Vieira, Queirós, Vicente, Garret, Herculano, Castelo Branco, Pessoa. A unidade na língua facilitou a assimilação cultural de parte a parte. Brasileiros são meio portugueses e vice-versa.

As gentes e as coisas da terra de Camões não estão em um local em particular do estado ou do país. Estão em todo os lugares e em hábitos quase universais entre os gaúchos, como as festas juninas, a tradição da Semana Santa e a culinária, onde reinam o peixe e o vinho, arrebatando corações e paladares mesmo na pátria do churrasco.

Os portugueses têm um sereno jeito de se integrar nas terras em que chegam. “São discretos para evitar ‘chatices’, como se diz em Lisboa. Nos países de idioma diferente até desaprendem o português, como acontece no Uruguai, Argentina, Venezuela”, revela o professor José Edil de Lima Alves – hoje lecionando na Ulbra (Universidade Luterana do Brasil). “Eles fazem o possível para se integrar, trabalham com dedicação, gastam o necessário e fazem poupança. Têm no imaginário sempre a esperança de voltar à santa terrinha” descreve.

“Mas quem volta às vezes não consegue ficar”, ensina Lima Alves, explicando: “há um estranhamento. 500 anos de integração e assimilação retira a ênfase de elementos culturais”. É o caso de Joaquim Eduardo Paz de Mattos, 72 anos, há 32 estabelecido com o restaurante Galo, na curva da antiga rua João Alfredo – hoje Aureliano Figueiredo Pinto. Ele tem uma casa em Aveiro, onde nasceu, na região de Mourisca do Vouga, a 40 quilômetros de Coimbra. Mas não vai à terrinha há mais de seis anos. “Não gosto muito de viajar”, diz, contrariando o espírito aventureiro dos navegantes lusitanos. Neto de português, ele é filho de pai brasileiro que voltou a Portugal. “Por lá está tudo mudado”, diz.

Outro traço do fluxo migratório português para o Brasil: sempre vêm para trabalhar com um parente. O imigrante tem de ter uma “carta de chamada” e emprego garantido – e goza de dupla cidadania – está definido nas relações diplomáticas entre os dois países. Foi a trajetória tem Angelo Bessa de Sousa, presidente da Casa de Portugal, a sociedade que congrega a comunidade em Porto Alegre. Dono da Padaria Copacabana, no Mercado Público, ele chegou em 1961 com 17 anos para trabalhar com um tio e um irmão. “Era uma maneira de evitar o serviço militar na África e enfrentar a guerrilha. Muitos jovens, mesmo sem necessidade econômica de emigrar, recorriam a esta alternativa”, relata. Era a época de Salazar e da luta pela independência das colônias africanas.

Antônio Melo, que herdou o restaurante Gambrinus do pai, também no Mercado Público, analisa que os jovens pobres não tinham perspectiva de vida e trabalho em Portugal. “Eles tinham vontade de sair e isso talvez justifique como gente de um país tão pequeno se espalhou por todo o mundo”, diz ele, que é vice-presidente da Casa de Portugal. “A idéia aventureira de viajar corre no sangue português”, especula Melo.

Porto Alegre, fundada há 227 anos pelos casais de açorianos, guarda pouco da arquitetura portuguesa. A maioria do casario do século passado já perdeu as características originais, como o Solar dos Câmara e a Casa Provincial (ao lado do Palácio Piratini), ambos na rua Duque de Caxias. O mesmo acontece em Triunfo, também estabelecida por portugueses e açorianos há 260 anos. “Temos um corpo de dança folclórica e a sala de arte Açores”, orgulha-se a ex-secretária da cultura de Triunfo, professora Silvia Helena Roth Volkweis que, há quatro anos, criou o restaurante Faial, de cozinha típica e que leva o nome de uma das ilhas do arquipélago de Açores. “Os casarões e palacetes de Pelotas mantêm uma atmosfera bem portuguesa”, emenda o professor Lima Alves. Pelotas abrigará o encontro das comunidades portuguesas do Cone Sul, alusivo aos 500 anos de Brasil. “Mas ainda não está designada a data”, arremata Bessa de Sousa.

 

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