O pioneiro do balé no Rio Grande do Sul viveu seus últimos dias preso a uma cadeira de rodas num abrigo para idosos de Porto Alegre. O bailarino João Luiz Rolla, 86 anos, morreu no último dia 4 de maio sem merecer a reverência e o respeito da comunidade cultural do estado. Última entrevista mostrou um homem com saudade do passado glorioso dos espetáculos
O cidadão João Luiz Rolla, 86 anos, gaúcho de Porto Alegre, viveu seus dias derradeiros sozinho numa cadeira de rodas em um asilo da capital. Aliás, como milhares de outros velhos abandonados pelo país. Mas Rolla não foi um homem comum. Ele foi o pioneiro da dança no Rio Grande do Sul, brilhou em apresentações no Theatro São Pedro, superlotou o auditório Araújo Viana, criou coreografias de sucesso. O bailarino formou uma geração de professoras no estado e morreu esquecido.
“Sinto falta de casa”, se limitou a dizer o dançarino quando foi procurado pelo Extra Classe, dias antes de morrer. Como muitos artistas brasileiros, João Luiz Rolla se sentia só e abandonado. No lugar onde vivia, nada lembrava que ele foi um dos primeiros a dançar profissionalmente no estado. No quarto, dividido com outros dois homens, apenas um trabalho acadêmico, feito por uma ex-aluna de balé. Nenhuma sapatilha, fotos, programas de espetáculos, figurinos, nada. Tudo que lembra sua dança está jogado às traças na Escola de Educação Física (Esef) da Ufrgs (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) à espera da verba que concretizará – um dia – um Centro de Memória. Último filho de uma família de dez irmãos, primo do jogador Osvaldo Rolla (o Foguinho), ele poderia ter seguido na carreira esportiva. Era atleta do Sport Club Internacional, onde fazia salto em barreira até começar a dançar com Tony Seitz Petzhold. A bailarina conta que Rolla bateu à sua porta, em 1939, querendo aprender a dançar. Mais tarde, foi convidado a participar da montagem de A Bela Adormecida. “Era um aluno aplicado, que assistia a todas as aulas possíveis, de diferentes níveis de dificuldade”, recorda a professora. Uma década depois, era o primeiro homem com escola de balé no Rio Grande do Sul.
Apartir daí, a dança mudou por aqui. Muitos daqueles que hoje são diretores passaram pela “varinha” de Rolla. É isso mesmo. “Eu tinha uma varinha que batia nas pernas das gurias, coitadas das meninas”, lembrou o bailarino. Mas as ex-alunas, como Maria Waleska Van Helden (Coordenadora do Dança Alegrete) consideravam a varinha um objeto mágico, sinal de que ele estava prestando atenção nelas. Outra ex-aluna, Lenita Ruschel Pereira acredita que a varinha era usada porque ele tinha “receio de tocar no corpo das meninas” para fazer as correções.
Começando timidamente em uma sala alugada no centro de Porto Alegre, a escola de Rolla não tinha barras e por isso as alunas se seguravam no encosto de cadeiras. “A princípio pensei que ia ter uns 20 ou 30 alunos e foram quase 90”, contou. Em quase 50 anos dedicados ao balé, Rolla criou muitas coreografias. O espetáculo mais lembrado é “2001 – Uma Experiência pelas Fronteiras Sem Fim da Dança”, levado aos palcos gaúchos em duas montagens, em 1969 e 1979. “Eu não me baseei no filme, mas na música. Numa apresentação no Araújo Viana vieram 14 mil pessoas, sabe lá o que é isso? Nós marcamos, 14 mil pessoas! Tinha muita gente de pé”, relembrou.
Para muitos, Rolla estava à frente de seu tempo. Em “2001…” forrou todo o teatro de branco, inclusive o palco, antecipando a utilização do linóleo. A advogada Regina Guimarães, que foi aluna do mestre, lembra de Burlesco, de 1957, último espetáculo em que o bailarino atuou, cujo cenário usava madeira, material incomum para a época. Por mais de 20 anos Rolla deu aulas no Auditório Araújo Viana, mas nem toda essa história de dedicação à arte sensibilizou os governantes. Em 1986, sob o pretexto de reformar o auditório (coisa que só ocorreu anos mais tarde), o governo despejou a escola.
Por obediência ou por se considerar “em idade para encerrar a carreira”, Rolla acatou a decisão. Mas hoje se arrepende de ter deixado a dança. Para concluir aquele ano, formou a última turma no Ballet Redenção, na área central de Porto Alegre, e deu algumas aulas esporádicas no Ballet Gutierres.
A partir de então, foi como se a vida de Rolla não tivesse mais sentido. Há quatro anos, sofreu uma isquemia cerebral. Na época, ele ainda morava sozinho. Depois, outras isquemias e um infarto. Como os cuidados tiveram de ser redobrados, o bailarino acabou transferido para uma clínica geriátrica. Sua casa desfeita, seu acervo vendido e parte doado à Esef, onde desde 1996 aguarda um cuidado digno de sua história.
Na clínica, sentado em uma cadeira de rodas, com as pernas debilitadas, ele perguntava quem poderia acreditar que um dia dançou. “Só lendo os jornais da época!” Não é preciso tanto, na verdade: seu nome está gravado na história da dança gaúcha numa placa no Theatro São Pedro. “A João Luiz Rolla, mestre e idealista, pela contribuição ao engrandecimento do ballet, homenagem de seus alunos”. Uma simples placa de bronze.
Da família, ninguém seguiu a carreira da dança. Apesar da idade, ele ainda sonhava em fazer coreografia. “Tem muitas senhoras aqui (no asilo), muitos senhores, podia começar a dar uma barra. Não eu dançar, mas fazer as pessoas dançarem. Fiz “2001…”, posso fazer outra peça. Mas, pensando bem, quem vai querer um velho de quase 90 anos?” Quem?