No século da psicanálise, o indivíduo passou a ser o centro do mundo. Só que a banalização do desejo acabou servindo como discurso à publicidade, que abarcou as inquietações dos anos 60 e deu a elas embalagens de sabonete
Havia um poço escuro no início deste século que, aos poucos, foi aberto pelo doutor Sigmund Freud: o inconsciente. Foi por esses caminhos, interpretando sonhos e impulsos do instinto, que criou-se a psicanálise, um ramo da ciência que também completa agora um século. Há, na verdade, luzes por toda parte sobre as variáveis do comportamento humano. Permanece o velho dilema de conciliar indivíduo e sociedade, ego e solidariedade, razão e emoção. As turbulências das grandes mudanças apagaram-se, mas o saldo fica para a história. A mulher libertou-se de sua condição secular, acabando com o tabu da virgindade e ganhando espaço na sociedade. Na década mais movimentada deste século, os anos 60, vingaram as atitudes irreverentes de desobediência e desafio à ordem: os acordes do rock and roll, as drogas, a recusa da família e da moral. Herbert Marcuse, o filósofo que embalou a contracultura, chamou essa atitude de “a grande recusa”. Fim de século, tudo mais brando e nenhuma recusa. E se, no início do século, Freud auscultou o inconsciente, ao final do século, depois de muitas tentativas de rupturas, anuncia-se que o indivíduo é o centro do mundo. O ego triunfou.
O indivíduo está cercado. Tecnologia por todos os lados, serviços por telefone, opções de consumo, uma aparente liberdade de escolha que faz do mundo à sua frente uma vitrine. A verdade é que as grandes mudanças de comportamento vieram embaladas pelo erotismo. O psicanalista alemão Wilhelm Reich pregava a revolução sexual como um caminho para a nova sociedade. Os limites impostos ao corpo também são os limites impostos pelo Estado. Simone de Beauvoir considerava o erotismo um instrumento de liberdade, por ser “um princípio hostil à sociedade”. O erotismo, hoje, é um dos grandes instrumentos da publicidade e até dos programas infantis. Liberdade pode ser uma marca de sabonete.
O universo infantil está marcado pelo ideal de consumo. A publicidade descobriu o ovo de colombo: a criança compra, o pai paga. O psicanalista Ivan César Mezzomo diz que as pessoas, durante toda a infância, se apropriam das experiências dos pais e avós e, a partir da adolescência, criam um espaço próprio que é invariavelmente a contestação de tudo isso. A rebeldia é um símbolo da juventude. Mas quais os signos dessa rebeldia? Celso Marques, professor de filosofia, 55 anos, músico e poeta que transitou na vanguarda da poesia concreta, um dos precursores do movimento ecológico no Rio Grande do Sul, acompanhou vários desses movimentos de contestação. Fala na rebeldia dos anos 60 como “um modo de descrença na futuro da civilização industrial”. Mais: foi uma rebeldia que incentivava a sair de casa, mesmo na Europa de economia estabilizada e dos Estados Unidos e sua intervenção no Vietnã. “A verdade é que o capitalismo absorveu as formas de contestação”, afirma Marques.
Os rebeldes agora são “badboys” ungidos pela violência. Ou “a violência banalizada pela mídia”, como diz Marques. “Talvez a grande característica deste século seja a exacerbação do feminino representado pela sedução da mídia, do hedonismo, da sociedade de consumo e a decadência do masculino, do paterno. O patriarcado começa a ruir e com ele suas referências”, argumenta Mezzomo. “Na inexistência do paterno, o indivíduo buscará este grupo para preencher esta necessidade. Daí a formação de gangues, tribos, partidos políticos, seitas. Ele precisa de um discurso que o ampare diante das questões propostas pelo mundo”, complementa.
É um tempo de poucas experiências e quase nenhuma ousadia. Marques fala numa civilização agônica, escassa de referências. E as marcas quase irracionais do fanatismo religioso, da paranóia com a violência, da extrema solidão diante de um buncker tecnológico. Cada um pode ser absolutamente sozinho. Quem viveu tempos diferentes, de contestação, de grandes causas coletivas, de utopias que se dissolveram, virou quase um sobrevivente. No meio do delírio, havia uma overdose de uma droga qualquer ou perversidades mais modernas. Como a Aids, que associou indissoluvelmente sexo e risco de vida.
Há uma certa nostalgia de quem viveu tudo isso, mas há também esse ceticismo de fim de século com seus sinais. “As pessoas estão reduzidas à dimensão de sua vida privada, não têm um e s p a ç o para se colocar. Somos uma vitrine. Cada um com a aparência do que deveria ser mas não é”, constata Marques. Pode ser que essa vitrine reflita espelhos, luzes que acendem o desejo apenas de consumir, ou uma série de signos que confundam pela excessiva exposição. “A cultura da civilização pós industrial é uma grande colcha de retalhos e as pessoas não sabem exatamente de onde saiu tudo isso”, avalia Mezzomo.
Ele fala num “excesso de estruturas de sedução”, onde o marketing aparece como antítese da psicanálise, pois cria um excessivo desejo que não pode ser resolvido. São os sonhos banalizados pelo poder de compra. Sonhos de papel, metal ou concreto. E se o inconsciente não é mais um poço escuro, o século 20 em seu final foi marcado por essa cultura do consumo desenfreado, da superexposição, da violência. Outro turbilhão, outro poço escuro. E a caixa registradora não pode parar.