Bienal do Mercosul expõe as experiências radicais de diversos artistas contemporâneos e abala a recepção tradicional das obras em que as observa
A arte criada neste final de século tem dado um nó na cabeça de muita gente. Pior que isso: também tem gerado sentimentos de descrédito, indiferença e ceticismo. É usual, no Brasil, chamá-la de arte contemporânea, embora isso não agrade a todos os especialistas no assunto pelo mundo a fora. Para quem nunca viu, a II Bienal do Mercosul (que se realiza em Porto Alegre até 9 de janeiro) é um prato cheio.
Passear pelos armazéns do antigo Deprc (Departamento Estadual de Portos, Rios e Canais), que concentra a maior parte dos trabalhos nessa linha, é uma experiência riquíssima. Além das obras desconcertantes, que tentam cavocar no inconsciente de cada um, observar o público é uma atração à parte. Seja pelas suas reações ou, em outro extremo, pela falta delas.
A instalação Plexo, do colombiano Guillermo Quintero Rojas, uma espécie de meia parede construída com fumo, por exemplo, incomodou: “Professora, nós vamos demorar muito aqui? Não agüento mais esse fedor!”, reclamou um garoto durante visitação com a turma de escola; uma menina, ao se afastar de outra criação, cantarolava: “Aqui é uma obra que não é prima! Aqui é uma obra que não é prima!”. Já uma adolescente, junto com seus colegas da sexta série do ensino fundamental, se dizia encantada com tudo. “É bem legal, interessante, cheio de significados… é que tudo depende dos olhos de quem vê. Não é, professora?”.
Aliás, uma atenção maior aos olhares e expressões (tanto faciais quanto corporais) dos visitantes revela, tristemente, a falta do “pasmar”, do “embevecer” que uma obra de arte normalmente provoca. A exceção acontece quando é preciso entrar na brincadeira: espiar por um buraquinho no telhado, tirar os sapatos ou entrar em uma sala escura. Isso sem falar nos arrepios frente à alguma obra que registre a simulação da dor.
Na concepção deste tipo de arte, um texto, mesmo que longo, e a presença de monitores para tentar explicar o significado das obras é absolutamente fundamental. Isso não afeta negativamente o observador. A bancária Dolores Saraiva, de 39 anos, foi sozinha ao Deprc e, vez ou outra, se misturava aos grupos de visitação. Para ela, a presença dos guias ajuda, “não teria a mesma eficácia sem eles”, considera.
O fato é que a concepção desta arte de final de século causa muita confusão e desassossego, tanto entre o público quanto no meio artístico. Alguns acham que é qualquer coisa menos arte – e até um verdadeiro desrespeito -, outros acreditam que é isso mesmo, deve-se romper com os cânones e representar as próprias inspirações com o que vier à cabeça, o que inclui materiais perecíveis, ruídos, cabelos e, claro, a pessoa ou palavras escritas para explicar a intenção do autor em sua criação.
O artista plástico Wilson Cavalcante, por exemplo, acha que atualmente existe é “muita bolação”. “Afinal, idéias todo mundo tem”, argumenta. “Hoje em dia, as pessoas bolam algo, escrevem um bom texto e aí, pronto, está consumada a obra. Eu fico em dúvida quanto a isso”, revela, acrescentando que a proposta da arte contemporânea – de interação do público com a obra – na realidade é ineficaz. “Esse interagir não abre espaço para mim, como espectador, de recriar aquilo. Está tudo muito próximo do lazer, da festa. Nada contra, mas é outra coisa”, diz.
Proporcionar interação, para Cavalcante, é criar condições para que o público possa “fazer as coisas mais loucas, absurdas, segundo as sua próprias concepções”. Caso contrário, ironiza, há muitos brinquedos infantis que são interativos. “Então também são obras de arte?”, questiona.
Elida Tessler é uma das artistas que participa da II Bienal do Mercosul. Sua obra Doador, composta por 270 objetos que terminam com “dor” (secador, liquidificador, aspirador) – todos presenteados por amigos – estão pendurados nas paredes de um estreito túnel branco de quase 10 metros de comprimento. Também professora do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Elida garante que a inclusão do espectador está se tornando cada vez mais importante para os artistas e isso significa ultrapassar os limites das rígidas categorias das artes.
A maior parte dos trabalhos da Bienal são instalações ou intervenções, criadas pelos autores a partir da escolha do espaço e que podem exigir uma extensa área, assim como uma sala inteira. Elida assegura que os artistas contemporâneos resistem a aceitar que esta seria uma nova categoria da arte. “Até a liberdade de nomear tem a ver com a concepção de arte contemporânea”, comemora. Para tentar explicar parte dos questionamentos que ela mesma vem fazendo há tempos, sugere mudanças. “Sabemos ou não o que é arte? Sabemos pelo menos que esta pode ser uma pergunta equivocada, quase infinita. Impossível encontrar uma só resposta. E se a resposta é múltipla, por que não pensar em uma melhor formulação da pergunta?”. Mas, calma, ela ajuda: “Quando é arte? Onde é arte? Por que é arte? Quem é o artista?” Quem souber, que responda.