Friedrich Nietzsche (1844-1900) chamava a si próprio de um “campo de batalhas”, lugar em que travava-se a guerra do indivíduo contra o mundo inteiro daqueles meados do século 19. Seus inimigos? A filosofia, o cristianismo, a ciência, principalmente a passividade e a placidez, onde elas estivessem. Ele próprio sabia que não era um homem daquele tempo. “Alguns nascem póstumos”, escreveu contra a massa surda de sua época. Sabia que só existiria, de fato, muito depois de morrer.
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Nascido póstumo, segundo o filósofo Mário Ferreira dos Santos, Neitzsche encheu de vigor uma filosofia que ansiava por emoção.
Nietzsche é importante e atual, mesmo em 2000, ano em que completa-se o centenário de sua morte, em 25 de agosto. O mundo todo lembrará a data com uma série de conferências, livros, filmes, espetáculos. No Brasil, entre várias atividades, serão lançados inéditos, além de Extravagâncias, de Scarlett Marton, e Nietzsche e a Dissolução da Moral, de Vânia Dutra de Azeredo, pela editora Discurso Editorial. Nunca ele foi tão elogiado, acariciado, amado. Até mesmo uma exposição, na Alemanha, retoma o tema da apropriação indevida que o nazismo fez de suas idéias – através de versões e adaptações feitas pela irmã do filósofo, Elisabeth Förster, que “organizou” sua obra e a difundiu. Ela teria forjado manuscritos do irmão e interpretado textos para inspiração ao nazismo.
Quer dizer: Nietzsche era um boa-praça, e suas idéias de aristocracia (governo dos melhores) e de super-homem em nada têm a ver com a pobre raça ariana. O detalhe é que a aristocracia é a do indivíduo, não a da raça. “Igualdade e democracia são contrárias à natureza da seleção e da sobrevivência; os gênios, e não as massas, são o objetivo da evolução; o poder, e não a justiça, é o árbitro de todas as diferenças e de todos os destinos – Era o que Friedrich Nietzsche achava”, escreveu o historiador Will Durant, em História da Filosofia.
O problema é que ninguém se distancia da massa impunemente. Ela acusou-o de querer se “afastar de seus iguais”. Ao contrário, Nietzsche garante que foi precisamente uma alma que buscou sempre uma alma irmã da sua: “Procurar sempre um homem e não encontrar mais que uma besta de rebanho…”, como interpretou o filósofo Mário Ferreira dos Santos, em Homem que Nasceu Póstumo, emblemático título, publicado na década de 50.
O homem mais solitário do mundo nasceu em Roecken, em 15 de outubro de 1844, filho de um pastor protestante, de uma longa linha de clérigos. Talvez por isso mesmo tenha conservado um pregador por toda sua vida. Quando criança, não gostava das brincadeiras dos meninos da vizinhança, que contavam mentiras, roubavam ninhos de passarinhos, atacavam pomares. Lia a Bíblia e gostava de recitar passagens dela para os outros. Aos 18 anos, no entanto, perdeu a fé no Deus de seus pais, trocando-a pela “religião” do super-homem. Havia lido O Mundo Como Vontade e Idéia, do pessimista Arthur Schopenhauer, o que teria sido responsável por uma guinada repentina em sua vida.
Tinha 24 anos quando foi nomeado professor de Filosofia na Universidade da Basiléia, na Suíça, mas teve de se aposentar devido ao seu precário estado de saúde. Tudo isso agravava ainda mais sua solidão. Sua obra-prima Assim Falou Zaratustra, por exemplo, teve a primeira edição paga pelo próprio autor. Foram vendidos 40 exemplares do livro, sete foram dados de presente, só uma pessoa agradeceu, ninguém o elogiou. “Nunca houve um homem tão só”, disse Durant.
Tentava dar conta, a outros iguais a ele – se houvesse algum no mundo – dessa sua terrível solidão: “Eu poderia cantar uma canção, e vou cantá-la, embora esteja sozinho numa casa vazia e tenha de cantá-la para meus próprios ouvidos. Ó grande estrela! Qual seria a tua felicidade não fosse ela destinada àqueles para quem brilhas? (…) Vê! Estou cansado de minha sabedoria, como a abelha que coletou mel demais; preciso de mãos se estendendo para elas”. Nunca as encontrou.
Nietzsche não tem sistema, não é um Aristóteles ou Kant, um construtor, antes é um poeta-filósofo, uma alma doce e sensível, apesar da fúria de seus escritos. Que o diga o famoso episódio em Turim, na Itália, em janeiro de 1899, em que o impiedoso algoz dos fracos e oprimidos abraçou-se soluçando ao pescoço de um cavalo que estava sendo chicoteado, antes de desabar em um colapso mental. Não há prova maior de sua doçura. Depois desse episódio, o filósofo ainda escreveu durante oito meses, antes de emudecer, permanecendo assim até a morte.
O filósofo paulista Olavo de Carvalho, autor de O Imbecil Coletivo, considera Nietzsche “um desses intelectuais oitocentistas que viveram de alimento escrito, numa atmosfera ao mesmo tempo rarefeita e doentia (como a da Montanha Mágica de Thomas Mann) e aspiravam a uma realidade que não podiam alcançar”. Para ele, o que há de mais profundo na sua obra é a crítica da nossa civilização letrada. Ele destaca o livro Nietzsche: Life as Literature, de Alexander Nehamas, que mostra como Nietzsche “simplesmente aplicou à realidade como tal os processos de análise próprios para a interpretação de obras literárias – daí a impressão, simultânea, de agudeza e irrealidade que suas obras nos transmitem”, afirma.
Para Will Durant, o problema de Nietzsche talvez tenha sido tentar mudar o mundo, levar ao pé da letra um modo de existência impossível entre os homens-massa. Assim, foi derrotado pela maioria e pela própria vida, que acabou o emudecendo e o ridicularizando. “Sua batalha contra a sua época desequilibrou-lhe a mente”, afirma o historiador. Por isso mesmo tantas contradições. “É possível documentar qualquer opinião com citações de Nietzsche; e sempre a opinião contrária também”, observa o crítico literário Otto Maria Carpeaux em História da Literatura Ocidental.
E é claro que isso é um prato cheio para as distorções. Muita gente se apoderou do que pensou Nietzsche. De aristocratas grã-finos europeus a liberais do mundo todo, até mesmo o nazismo. Espera-se que agora, nos cem anos de sua morte, o grande público, tão necessitado do vigor e da beleza de seu pensamento, se aproxime desse homem tão só.