CULTURA

A praça é do livro outra vez

Ana Esteves / Publicado em 10 de outubro de 2000

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Fotos:René Cabrales

Fotos:René Cabrales

A Feira do Livro de Porto Alegre mudou. A partir deste ano, quem transitar pela Praça da Alfândega entre os dias 27 de outubro e 15 de novembro, vai encontrar uma feira diferente com uma geografia totalmente reformulada. A área coberta cresceu de 4.800m² para 5.600m². Na 46ª edição da Feira do Livro, o país homenageado será a França, o que garante a vinda de vários escritores daquele país. O remapeamento é conseqüência do seu crescimento. A Feira se tornou gigante e por isso ela também é polêmica.

Uma das principais novidades reservadas para a edição deste ano da Feira
do Livro não tem nada a ver com o livro, mas sim com o tradicional bar da feira. De acordo com o vice-presidente da Câmara do Livro e coordenador geral da Feira, Geraldo Huff, o bar será dividido em quatro pequenos espaços que serão instalados na Área Internacional, na Área Infantil, que passa a se localizar entre o Margs e o Memorial do Rio Grande do Sul, próximo ao Banrisul e nas imediações de onde era montado o palco para as crianças.

O presidente da Câmara do Livro, Paulo Ledur, diz que a divisão do bar faz parte da proposta de remapeamento da praça que busca a otimização de espaços. “A praça continua a mesma, mas a Feira do Livro está crescendo”, argumenta. Ledur diz que houve uma certa polêmica com a retirada do bar, mas acredita que não é preciso investir naquilo que já está sendo bem atendido, como é o caso da alimentação, com bares no Margs e na Rua da Praia.

A modificação do bar também foi motivada pelo crescimento da demanda da Área Infantil. “Vamos liberar o local ocupado pelo bar para instalarmos a Área Infantil que ganhará 30% mais espaço, facilitando a circulação do público”, explica Ledur. Segundo ele, a organização do evento recebe muitos pedidos de escolas para visitação da área – 387 em 1999 – que acabou ficando muito pequena. “A criança é o nosso melhor investimento, pois ele é duradouro. Se formamos uma criança leitora teremos um futuro adulto leitor”.

Entre as atrações da nova Área Infantil está o Coreto, onde serão promovidos encontros entre as crianças e os escritores para contação de histórias, e a Vitrine, um hexágono envidraçado com informações sobre atividades a respeito do ato da leitura. Na continuidade da Área Infantil será instalado o Labirinto da Palavra, um espaço para o adolescente. “Nos últimos dois anos temos registrado a presença cada vez maior do adolescente na Feira”, comenta Geraldo Huff. Para Ledur o adolescente representa um grande desafio na questão da formação de leitores. “A criança já está lendo muito, mas quando chega na adolescência pára de ler, nós perdemos leitores que conviviam com o livro”, explica.

Outra novidade é a integração dos estandes internacionais com o restante da feira. “Vamos extinguir o Pavilhão Internacional e criar a Área Internacional, que neste ano conta com a participação de dois novos países, Israel e Líbano”, conta Huff.

No ano 2000 o país homenageado é a França, que estará expondo cerca de três mil títulos de livro de bolso, além de participar da programação da feira com alguns eventos paralelos como o Ciclo de Cinema Francês, no Cine Guion e no Auditório do Margs, o Ciclo Liberdade, Igualdade e Fraternidade, que remete os ideais da Revolução Francesa para os dias de hoje, o Ciclo Diálogos Culturais França-Brasil, com interações culturais e políticas entre os dois países, e o Ciclo do Documentário Francês. Entre as presenças confirmadas estão o compositor e escritor Yves Simon , o autor de histórias em quadrinhos Emmanuel Lepage, o editor Yves Landrein, Armand Mattelart, professor da Universidade de Ciências da Informações e da Comunicação, Pierrete Fletiaux, autora infantil, e Jean Soublin, estudioso da vida e literatura brasileira.

Também parte da programação oficial da Feira, o Encontro de Escritores das Mercocidades reunirá Carlos Heitor Cony, Zuenir Ventura, Heloísa Buarque de Hollanda, Thomás de Mattos, da Argentina e Pablo Rocca, do Uruguai. “Vamos trabalhar ainda com a idéia da Literatura para Ver e Ouvir que retoma os saraus, com contação de histórias e grupos se reunindo para fazer leituras”, revela Huff. Estão confirmadas as presenças de Júlio Conte e Susana Saldanha para leitura cênica de um livro de Qorpo Santo, Manoel de Barros, Antonio Calloni e Cássia Kiss para a leitura de poesias, e de Elisa Lucinda, com um recital de poesias próprias.

O marketing na Praça

A participação, na Feira do Livro, de personalidades conhecidas pelo grande público, como é o caso de atores da Rede Globo e até mesmo de escritores com grande apelo popular como Paulo Coelho, em 1998, aliada ao interesse cada vez maior da mídia em divulgá-la, têm gerado polêmica por sugerir o caráter marketeiro do evento. Para Paulo Ledur a existência do marketing é importante para o processo de popularização do livro. “Tem que popularizar, tem que botar marketing, para que mais pessoas tenham acesso à leitura, porque a indústria do livro sozinha não tem muito esse poder”, diz.

O coordenador Geraldo Huff acrescenta que o fato da Feira ser considerada o maior evento cultural do Estado desperta um grande interesse por parte da imprensa. “No ano passado tivemos grande cobertura. Emissoras instalam dentro da Feira vários estúdios de rádio e televisão. Isso se gerou espontaneamente.” Ele conta que em 1998 foram convidados repórteres de revistas culturais do centro do país, Argentina e Uruguai, que depois de conhecer a Feira deram uma cobertura especial. “Acredito que o compromisso da Câmara seja justamente o de permitir que isso aconteça”, ressalta. Huff diz que Paulo Coelho veio à Feira por conta própria, sem convite da organização do evento. “Grandes escritores pressionam editoras para vir a Porto Alegre o que mostra a importância que tem a Feira no contexto cultural do país”, completa.

Mas há quem discorde. O jornalista e professor da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Ufrgs, Wladymir Ungaretti vê o marketing aplicado à Feira como uma das piores coisas que existem nos tempos atuais. “Este tipo de mentalidade nos conduz a pensar que só se existe quando se ocupa espaço na mídia. E isto não tem nada a ver com a formação intelectual das pessoas e essa idéia não aumenta número de leitores coisa nenhuma”, argumenta. Para ele seria muito mais importante se as editoras e os livreiros se preocupassem em possibilitar o acesso gratuito dos professores a um número maior de livros para que estes pudessem indicá-los a seus alunos. “Isto é muito mais importante do que esta política guiada por essa mentalidade índice de audiência”, desabafa.

Ungaretti acredita que a Feira do Livro está muito centrada na questão da eficiência, da competência, da competitividade, da lucratividade, da globalização e da rapidez com que tudo acontece e de todo o aparato comercial. “A Feira que eu sonho é a de uma era pós-novela, que não seja preciso todo esse marketing. Ela deve ser um grande acontecimento cultural, de confraternização”.

Para Ledur esta reação reflete um pensamento totalmente elitizado, que coloca o livro como um instrumento para poucos. “As pessoas acham que não se pode entrar num esquema mercadológico pois banaliza o livro. Mas enquanto tivermos o escritor recolhido dentro de casa, não se expondo, o livro vai continuar sendo da elite”. Ledur lembra que até o evento do filme O Quatrilho, José Clemente Pozzenato era pouco conhecido. “Depois ele passou a ser autor nacional, foi popularizado e muito mais valorizado”, argumenta. Ledur confessa que para ele o ideal seria que o livro fosse procurado espontaneamente pelas pessoas. “Infelizmente não é assim”.

Outra questão que também pode estar associada à presença constante da Feira na mídia é o número cada vez maior de sessões de autógrafos. “Quando se ia a uma sessão de autógrafos era um grande acontecimento, porque o autor para estar ali já deveria ter uma certa expressão, ser importante. Hoje em dia tem 10 sessões ao mesmo tempo, de pessoas que muitas vezes nem ouvimos falar”, diz Ungaretti. Geraldo Huff diz que há alguns anos a Feira tinha uma característica muito literária, mas modificou. “Há muitos livros técnicos-científicos e acadêmicos que têm dado excelentes sessões, na Feira”, diz. O critério de seleção das obras a serem autografadas é de responsabilidade das editoras. Em 1999 foram 540 sessões, muitas delas com até 60 autores ao mesmo tempo. “É um dos grandes eventos da feira”, ressalta Huff.

A polêmica do patrono

Wladymir Ungaretti acredita que até mesmo a escolha do patrono da Feira do Livro estava envolvida nesta aura marketeira. “O patrono deveria ser escolhido por votação popular e ficou evidente que assim o Eduardo Bueno, o Peninha, ganharia disparado. Uma pessoa que dá dez entrevistas por semana, no Jô Soares e em dezenas de outros programas, seria um dos instrumentos importantes do marketing da Feira”.

“Foram selecionados 15 nomes que seriam submetidos a um colegiado formado pela diretoria da Câmara do Livro representantes de entidades culturais. Os três nomes mais cotados seriam levados à votação pública”, explica Huff. Com o início do processo ocorreram manifestações contrárias de escritores que retiraram seus nomes da lista. Huff conta que a idéia era dar maior divulgação para os escritores gaúchos e que os três finalistas teriam cobertura maior por parte da mídia.

Perdas e danos

A questão do desconto mínimo obrigatório continua dividindo livreiros e público. Os primeiros defendem os mesmos 10% do ano passado

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A questão do desconto mínimo obrigatório continua dividindo livreiros e público. Os primeiros defendem os mesmos 10% do ano passado

No ano passado, a decisão da Câmara do Livro de diminuir o tradicional desconto mínimo obrigatório de 20% para 10% também gerou polêmica. De acordo com Ledur, esta medida foi adotada devido à estabilidade monetária que tornava inviável o desconto de 20%, principalmente para os livros que vinham de estados como São Paulo e Rio de Janeiro. “No tempo da inflação alta ainda era possível, já que se vendia este livro, aplicava-se o dinheiro e pagava-se o fornecedor em 60 dias”, explica. Ledur lembra ainda que os livreiros tinham perdas, principalmente com os livros mais sofisticados, que acabavam não vindo para a Feira. “Começamos a sentir um estrangulamento com a falta destas publicações, e para que não prejudicássemos o acervo da Feira decidimos alterar o desconto”.

O diretor presidente da Editora Sulina, Blasio Hugo Hickmann conta que com a modificação do desconto, os livreiros puderam trabalhar sem prejuízos, que, segundo ele, seriam inevitáveis se o desconto continuasse na base de 20%. “O desconto mínimo aprovado será de 10% sobre o preço de capa. Facultado, porém, desconto maior se assim entender e puder o feirante”, explica. Blasio Hickmann diz na maioria das vezes o público não reclama. “Não tanto como a imprensa.”

Wladymir Ungaretti acredita que os descontos da Feira do Livro sempre serviram como incentivo para a compra de livros. “Tem muita gente que espera a Feira para comprar e com a diminuição do desconto fica mais difícil.” O professor critica também a qualidade dos “balaios” que serviriam como uma alternativa para quem não pode comprar baseado no desconto. “No meu tempo de Júlio de Castilhos se comprava muita coisa boa em balaio, clássicos da literatura, Aristóteles, Platão, Balzac. Hoje eles são muito ruins”.

A Feira das minorias

A Praça da Alfândega abriga entre seus jacarandás, sempre lembrados de forma aparentemente inevitavel e piegas em várias reportagens a cada Feira do Livro, um grande número de pessoas que diariamente tiram seu sustento dali. São profissionais do sexo, artesãos e engraxates que durante a Feira do Livro precisam remanejar seu dia-a-dia. A artesã Beatriz Bianchi, que trabalha na confecção de artigos em couro, reclama que as vendas caem consideravelmente. “Tem dias que a gente não vende nada, porque fica escondido no cantão, na Rua da Ladeira”, diz. Beatriz diz que neste ano existe a possibilidade de que os artesãos sejam deslocados para a Usina do Gasômetro.

A artesã Isabel Rocha, que realiza trabalhos em crochê, diz que na época da feira perde muitas clientes que têm dificuldades de localizar sua barraca. “Tenho uma freguesa que compra meu trabalho que é revendido para a Alemanha, só que às vezes ela desiste, pois não consegue me localizar”, revela. O presidente da Câmara do Livro, Paulo Ledur explica que estas questões são administradas pela prefeitura. “No ano passado tivemos várias reuniões com os artesão porque nós não queremos buscar confronto com ninguém. Em 98 já houve um certo desgaste neste sentido, pois alguns não quiserem se retirar e a Secretaria Municipal da Indústria e Comércio (Smic) teve que intervir.”

Artesãos estão entre os deslocados de seu espaço habitual durante a realização da Feira e dizem que o local alternativo oferecido não é atrativo para a clientela

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Artesãos estão entre os deslocados de seu espaço habitual durante a realização da Feira e dizem que o local alternativo oferecido não é atrativo para a clientela

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O artesão Manoel Menandro de Araujo Rocha Filho diz que as vendas na época da Feira caem de 20 a 30%. “Se eles tivessem a real intenção de promover a nossa integração com a Feira seria muito bom, mas somos levados para as ruas que ficam à margem do evento”. Segundo o diretor de licenciamento e controle da Secretaria Municipal da Indústria e Comércio, Smic, Sebastião Barbosa, o local para alocação dos artesãos é definido de acordo com os espaços disponíveis. Neste contexto de negociações e política de boa vizinhança existe um personagem tradicional da Feira do Livro: Júlio La Porta, o Xerife. “Ele tem capacidade de negociação com a população da praça. Além de carismático, o Xerife é a solução para alguns problemas que sem ele poderiam se agravar”, diz Ledur.

La Porta confessa que ser xerife é uma tarefa muito difícil. “São 30 dias em que eu quase nem durmo porque tenho que cuidar da segurança e da ajuda aos associados. No começo eu passei muito trabalho com “elas”, que depois de muita negociação e até por um certo constrangimento, preferem se retirar da Feira”. “Elas”, a quem o Xerife se refere, são as prostitutas que circulam diariamente pela Praça da Alfândega. De acordo com uma delas, que preferiu não se identificar, o seu trabalho não fica prejudicado. “Nós ficamos mais pelas voltas da praça, porque tem muitas famílias com filhos na época da Feira, mas não piora o movimento”, revela. Outras duas profissionais do sexo, que também preferiram não revelar seus nomes, igualmente admitem não se sentir prejudicadas com a instalação da Feira do Livro na praça. As reivindicações partem dos engraxates ambulantes, cuja féria do dia depende do movimento local. “Na época da Feira os brigadianos pedem para a gente se retirar e aí não conseguimos nem o dinheiro da passagem”, relata Francisco Nunes dos Santos, que há 19 anos trabalha nas imediações. De acordo com o Xerife, estas situações são sempre resolvidas de forma tranqüila. “Foram três anos de negociações para que a coisa se acalmasse.

Antes eles depredavam tudo, quebravam, era um horror. Hoje me obedecem muito”, comemora. Por via das dúvidas, no entanto, o contingente de 50 seguranças utilizado no ano passado deve ser reforçado este ano.

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