A febre dos reality shows tomou conta da televisão brasileira. Depois de acompanhar a vida nua e crua dos aventureiros de No Limite, da Rede Globo, os telespectadores trocam de canal e entram na intimidade dos oito participantes do programa Território Livre, da Bandeirantes. Na MTV, adolescentes tem suas rotinas acompanhadas por câmeras, enquanto discutem temas da atualidade.
Inspirados nos americanos Survivor, Big Brother e Na Real, os programas exploram o voyerismo e transformam pessoas comuns em ídolos nacionais.
Há alguns meses, os telespectadores de uma rede de televisão espanhola foram surpreendidos por uma cena no mínimo bizarra: durante um programa no estilo reality show uma adolescente, sem saber que estava sendo filmada, entra em seu quarto e inicia uma cena de sexo com seu cachorro.
As imagens foram captadas por uma câmera escondida, instalada com a autorização dos pais da menina. A intenção não era flagrá-la nesta situação mas fazer uma surpresa com o cantor Ricky Martin, escondido estrategicamente dentro do guarda-roupas. O programa foi tirado do ar.
Imagens como esta ilustram a nova mania da televisão mundial: espiar a vida de pessoas comuns, com o objetivo de incrementar os índices de audiência.
No Brasil, o povo invade a TV, tem sua vida transformada em quadro do Fantástico, entra nos programas de calouros, faz escândalos e promove pancadarias no programa Ratinho Livre, é vítima de situações embaraçosas com as “pegadinhas”, come olhos de cabra e promove baixarias em uma praia deserta, se tranca numa casa com desconhecidos para falar da vida e expor seus problemas.
Na opinião do coordenador geral da TV Unisinos, jornalista Alexandre Kieling, a televisão brasileira descobriu um novo produto que será explorado até a exaustão. “A telenovela vem perdendo espaço na preferência do público e por isso é preciso transpor o real na forma de ficção, utilizar os mesmos ingredientes da ficção na vida real”, diz. Ele explica que a nova tendência é elaborar roteiros de ficção onde se cria uma realidade com situações inusitadas, como no caso de No Limite, onde doze pessoas lutam pela sobrevivência isoladas em uma praia deserta. A própria novela Laços de Família, que se auto denomina a “novela da vida real”, tinha nas suas chamadas de estréia atores contando fatos marcantes de suas vidas.
Kieling acredita que o intenção puramente comercial destes programas pode não ser positivo para o processo de evolução de uma sociedade. “Claro que não podemos considerá-los como obras maquiavélicas, sempre com um vilão por trás. Estamos falando de negócios”, conclui.
Mas afinal de contas o que atrai tanto o telespectador nestes tipos de programas? Para a psiquiatra e professora da Faculdade de Medicina da UFRGS Maria Lucrécia Scherer Zavaschi, o sucesso se justifica pois apresenta situações que possibilitam uma identificação por parte do público. “É um mecanismo natural em todo o ser humano o fato de ver o semelhante, se identificar com certos aspectos e verificar afinidades. Muitos se comparam em busca de uma nova forma de repensar a sua própria vida”, explica. Segundo ela, neste caso vale a máxima de que é mais fácil ver os problemas dos outros do que os nossos. “Vendo os problemas dos outros, muitas vezes inconscientemente o espectador está vendo os seus”, diz.
O outro motivo poderia ser explicado em apenas uma palavra: voyerismo. Espreitar a vida alheia, sentir a mesma emoção da infância quando se espiava pelo buraco da fechadura. Freud define o voyeurismo como uma forma de privilégio que nos habilita a ver o proibido. Observar sem ser observado é como tomar posse de outras vidas, nos afirmar sobre elas e torná-las nossas. Assistir a estes programas é também uma forma segura de exercitar o sentimento de maldade.
Lucrécia diz que estes programas apresentam uma exploração brutal da miséria humana, que remete a sentimentos primitivos, relacionados com algumas características sádicas e violentas, numa quantidade, segundo ela, controlada pela consciência. “Estes programas, como o do Ratinho, por exemplo, são despudorados e muito agressivos, inclusive, para as pessoas que se expõem, muitas vezes com o objetivo de juntar algum dinheiro. O No Limite não é tão agressivo, mas explora pessoas que muitas vezes aceitam por ingenuidade”. Ela vai mais longe e qualifica os reality shows de crus e acintosos, invadindo a privacidade das pessoas e mostrando suas angústias.
A experiência na área de televisão leva o jornalista Alexandre Kieling a acreditar que os shows da vida real são apenas uma coqueluche, que com o tempo perderão o encanto. “A primeira edição de No Limite surpreendeu o público, era tudo novo. Na segunda série, a história será outra pois não tem muito como fugir da fórmula do primeiro. A reação do ser humano tende a ser muito parecida, ainda mais que é tudo provocado”, diz.
Surge aqui outra pergunta: o que leva as pessoas a participar destes programas? Uma das respostas é óbvia: dinheiro e fama. Programas como No Limite conseguem em pouco tempo transformar pessoas comuns em celebridades, os “famosos quem”.
O contador Jeferson Schmengler, o “gaúcho” da série da Globo é um exemplo. Até bem pouco tempo passeava despercebido pelas ruas de Porto Alegre. Hoje é abordado pelos fãs que querem autógrafos e fotos ao seu lado. “Outro dia eu estava em uma pizzaria na Zona Norte e um menino veio me perguntar se eu não era o Jeferson do No Limite, pois tinha feito uma aposta com um amigo. Respondi que sim e em bem pouco tempo o restaurante inteiro me cercou pedindo autógrafos, não consegui nem comer”, conta Jeferson. Para ele a fama ainda soa meio estranha. “Na maioria das vezes é legal, mas às vezes acontecem coisas engraçadas e até constrangedoras como no caso de um menino que me esnobou e falou mal do programa ou do transsexual que me escreveu um e-mail pedindo que eu posasse nu para uma revista direcionada para o público homossexual”, revela. Sobre esse assunto, inclusive, Jeferson prefere não falar muito, deixar para o futuro. “O meu assessor acha melhor não fazer logo no início. Ir com mais calma para saber como isso pode repercutir. As pessoas ainda têm muito preconceito”, argumenta. Já o seu colega Marcus, depois de relutar um pouco, concordou em participar de algumas fotos para o site da revista SuiGeneris. O advogado surfista foi produzido em coletes e pulseiras de couro. A única que até agora topou tirar toda a roupa foi a antipática Andréia, capa da revista Playboy de outubro.
Simpático e receptivo, Jeferson acha que sua vida melhorou muito depois do programa. “Eu trabalhava com cobrança e faturamento, cercado de muito stress, agora estou adorando, não tenho mais horário, trabalho à noite, é muito bom”, conta. Jeferson vive da fama, trabalhando em festas e eventos. Já foi convidado para ancorar um programa de esportes na Rede Bandeirantes, mas o contrato com a Rede Globo não permitiu. Comerciais também estão proibidos até dezembro, quando encerra o contrato. Ele diz que nunca pensou em se tornar ator, “mas se a Globo me convidasse eu toparia e se surgir algum desfile de moda eu também encaro”.
Já Patrícia Diniz, ou Pipa como ficou conhecida pelos milhões de
telespectadores, não foi tão acessível quanto o seu colega de No Limite. Foram seis dias de contatos com a assessoria de imprensa, dezenas de telefonemas, quatro entrevistas marcadas e adiadas. As justificativas eram sempre as mesmas: viagens e agenda superlotada, rotina de fazer inveja a grandes astros da televisão.
Parece que a fama já subiu à cabeça de Pipa e começa a influenciar também sua família: em uma das tentativas a reportagem conseguiu trocar algumas palavras com Maurício Mendes, marido da “estrela”, que não se mostrou muito amigável, e mais uma vez dispensou a entrevista. Detalhe: quem atendeu o telefone foi uma voz feminina, muito semelhante a de Pipa.
Numa esfera mais “erudita”, a campeã Elaine lança um livro – ainda sem título – relatando suas experiências de vida conquistadas na Praia dos Anjos. Com cerca de 100 páginas a “obra” co-escrita pelo psicoterapeuta Randy di Stefano, autor de Manual do Sucesso Total certamente dividirá a prateleira com títulos de auto-ajuda e esoterismo.
Outros “famosos quem” que têm feito sucesso entre o público jovem são os participantes do programa 20 e Poucos Anos apresentado pela MTV Brasil. Nele, oito jovens de diferentes classes sociais têm suas rotinas acompanhadas por uma câmera e se reúnem uma vez por semana para discutir temas da atualidade. “Depois que eu participei do programa as coisas ficaram diferentes: as pessoas me páram na rua, pedem autógrafo e eu fico meio sem jeito porque não estou acostumada com isso”, revela a jogadora de futebol feminino Melissa Forster Sodré. Mesmo assim ela espera aproveitar a fama instantânea. Acredita que a participação no programa pode servir como uma alavanca para a sua carreira no futebol. “Seria bom que o programa passasse em outros países para dar maior visibilidade, porque agora tem a Liga Americana”.
Para Everton Farias de Souza, apelidado de Jesus no seriado, a participação no 20 e Poucos Anos também foi importante para o seu trabalho. “Não aceitei fazer o programa pensando em me tornar famoso, mas para divulgar as atividades da escola de teatro onde eu atuo e o meu trabalho de artesão”, conta
Jesus diz que o programa ajuda muito os jovens a refletir, pois eles se identificam com os participantes e se influenciam muito. “Eu trabalho como inspetor de alunos numa escola e depois do programa eles me procuram muito, ficam tão empolgados que até atrapalham um pouco o meu trabalho. Eu dou muitos conselhos, incentivo e sempre digo que a gente não é pior ou melhor do que ninguém só porque mora no subúrbio. Somos iguais a qualquer um”.
De acordo com a diretora de programação e produção da MTV, Cris Lobo, o grande diferencial do programa é trazer os jovens para uma reflexão mais aprofundada de temas como sexo, diferenças sociais, drogas e mercado de trabalho. “Colocamos as diferenças em contato para diminuir o preconceito”. Ela explica que a idéia do programa é aproximar os jovens, fazer com que eles convivam mais entre si, conheçam pessoas diferentes da suas realidades. “Apesar de teram cabeça aberta, os jovens vivem muito em grupinhos, sem muito contato com o mundo lá fora”, argumenta. Para ela, a maioria dos participantes de 20 e Poucos aceitou o convite por mera curiosidade. “A maioria queria conhecer o universo da televisão. Outros até pensaram na possibilidade da fama, principalmente os esportistas, como a jogadora de futebol e o lutador de jiu-jitsu”, diz.
Para não ficar de fora da onda dos reality shows, a Rede Bandeirantes lançou no final de outubro o seu Território Livre. O programa apresentado pela ex-MTV Sabrina Parlatore é um misto de vida real e game interativo, que reúne ação, comportamento, psicologia e, é claro voyerismo.
Ambientado em uma casa (estúdio), oito jovens participam de um jogo de eliminação durante dez dias. Aquele que permanecer até o final dos dez dias será o campeão e ganhará, como prêmio, o equivalente a R$ 7.000,00. A competição é dividida em dois tipos de provas, as físicas – pré-gravadas em externa – e as de comportamento – dentro da casa-estúdio, ao vivo. O objetivo é detectar o jovem de bem com a vida, que tenha algo a acrescentar ou dizer, que possua uma postura “do bem”. As provas, que misturam habilidade física e mental, são especialmente criadas para gerar conflitos de comportamento e stress.
Um dos diferenciais do programa é que são levadas ao ar as influências externas que, direta ou indiretamente, afetam o comportamento do competidor, como amigos, familiares, colegas de escola. O outro é que os competidores, ao contrário de No Limite, são eliminados pela audiência, através de telefone e internet, com votação 24 horas por dia.