CULTURA

Jacira Cabral Silveira – Adeus às ilusões

A infância está morta. Quantos de nós ficam chocados frente esta afirmação? Infância e morte formam um encontro que não combina, pensam os adultos em sua maioria.
Por Jacira Cabral Silveira / Publicado em 8 de dezembro de 2000

A adultização da infância

Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

Para Sandra Mara Corazza, pesquisadora e professora do departamento de Ensino e Currículo do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da Ufrgs, este sentimento de calamidade e pânico em relação à morte da infância é o grande medo de que nós, ocidentais modernos, percamos uma de nossas fontes de referência.

Segundo ela, todas as ciências humanas fizeram da infância uma fonte de saber sobre o próprio sujeito. Com a palestra A Morte da Infância, Corazza participou do Curso de Especialização em Educação Infantil que encerrou há poucos meses na Faced.

Mas não é só no meio acadêmico que o assunto da identidade infantil contemporânea é motivo de debate. Mais ou menos radicais, outros lugares têm discutido a questão. Profissionais liberais voltados à criança, escolas e famílias estão envolvidos com a mesma pergunta: que infância é esta?

Os novos tempos põem em questão ao que chamamos de infância tradicional, fruto da modernidade, que teve seu auge de 1850 a 1950, quando as crianças foram afastadas dos perigos das fábricas e colocadas nas escolas a fim de serem transformadas em seres racionais.

Imersos em um cotidiano marcado por culturas como a do consumo e a do individualismo, todos nós vivemos novas relações que se estabelecem em detrimento de tradicionais elos como a família, a escola e a igreja.

Alfredo Jerusalinsky, presidente da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, embora não concorde que o conceito de infância tenha morrido, reconhece que a criança construída a partir do século XVIII está em sérias modificações.

“Mas ainda não é possível saber a extensão e a profundidade dessas transformações”, afirma o psicanalista. Há 30 anos clinicando, Jerusalinsky diz ser prematuro fazer tal afirmativa uma vez que os ideais de igualdade, fraternidade e liberdade, preconizados na modernidade, continuam vigorando junto aos adultos com relação às crianças.

Para Lucia Rabello de Castro, psicóloga, professora da UFRJ e representante oficial na América Latina do Comitê de Pesquisa Sociologia da Infância, a afirmação de que a criança da modernidade está morta é problemática porque reporta a uma ideia de nostalgia e tem efeito paralisante.

Afinal de contas, se algo é dado como morto, o caso está encerrado, e para a pesquisadora esta ótica de que a infância acaba na pós-modernidade não pode ser aceita.

 

Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

Corazza tampouco afirma isto em sua tese de doutorado sobre a História da Infantilidade, pesquisa que serviu de suporte a sua participação no curso de especialização da Faced.

Ela não aceita nos historiadores de infância justamente este tipo de ideia progressista e evolucionista de que a história da infância nasce, se desenvolve, atinge um apogeu e que, agora, chegou a um fim. Segundo ela, a criança sempre sofreu diferentes processos de adultização.

“O infantil veio sendo praticado como uma identidade natimorta”, diz ela e acrescenta que assim que a criança nasce, morre, já que nasce diferente de nós adultos.

Corazza lembra que Descartes, por exemplo, diz sentir dó de nós homens que fomos crianças um dia. Santo Agostinho, por sua vez, escreve que o bebê é aquele que bebe todos os vícios e defeitos junto com o leite de sua ama.

“A infância é uma identidade que nasce com todas as suas especificidades e nós fazemos de tudo, cada vez mais precocemente, para que essa criança se adultize”, comenta Corazza.

Segundo Lucia, a infância como foi moldada no início do século está dando lugar a um novo sujeito infantil. Essa mudança se processa a partir da segunda metade deste século com fenômenos como o desenvolvimento dos meios de comunicação – principalmente a TV – e a disseminação de tecnologias em nosso cotidiano.

“Por isso o adulto se assusta quando se depara com uma outra infância ou com um outro comportamento infantil que não tem só no adulto fonte de informação”. Nestes novos espaços como a sala de TV, a rua e o shopping, crianças e adolescentes vão construir sua subjetividade. Uma identidade mais plural, não tão homogênea como aquela da modernidade, analisa Lucia.

Jerusalinsky, por outro lado, é mais cruel na análise do papel que espaços como a TV assumem junto às crianças. Ele traz como exemplo os super-heróis dos desenhos animados. Segundo ele, estes personagens são contrabandistas ideológicos do neo-liberalismo.

Eles introduzem a ideia de uma super eficácia, super força e super capacitação. É alguém que está acima da lei geral dos humanos e que supera a castração, as limitações que afetam a todo ser humano. Os Pokémons, cita o psicanalista, têm a característica desse homem do futuro, autônomo.

Eles deixam claro que não devem nada a ninguém; não têm uma origem; uma filiação, portanto, não têm linha simbólica que os ligue ao pai ou à mãe.

“Todo este ideário neoliberal entra em choque com aquele de liberdade, igualdade e fraternidade transmitidos às crianças por seus pais e professores,” diz Jerusalinsky.

“E neste ambiente contraditório de constituição de identidade, a criança vê-se num vazio onde deve responder a um ideal adulto, ao mesmo tempo em que vive num cotidiano marcado por uma cultura extremamente individualista, onde a relação com o outro se mede em termos puramente lógico e produtivo quanto à eficácia material.”

Neste sentido, Jerusalinsky lamenta que a morte da infância da modernidade não seja um fato, pois só assim ela “não se veria submetida à tamanha violência de contradição”.

Para Corazza, o infantil contemporâneo acontece porque a criança está realizando práticas, está experimentando um outro tipo de vida, estabelecendo outras relações produzidas por este acúmulo de séculos de práticas de adultização.

Neste sentido, ela afirma que é preciso “desprender-nos deste infantil que está aí e inventar coisas que nem sabemos ainda, mas que, com certeza, não é o mesmo infantil”.

No entender de Corazza, também a escola precisa repensar suas concepções sobre este novo sujeito infantil e reinventar sua relação educativa. Deixar de lado os procedimentos retrógrados e ao mesmo tempo negadores do novo modo de ser infantil.

Corazza condena a atitude da escola quando nega em seu currículo toda uma vivência e relações culturais mais amplas que seus alunos passam a experimentar, tanto na interação com máquinas, como a vivência em sinaleiras, por exemplo.

A escola fica usando grades antigas, óculos ultrapassados para trabalhar com este ET que está ali, negando as vivências, deixando de fora as novas sexualidades.

Lucia compartilha da ideia de que é necessário buscar entender melhor a época em que vivemos, investigar quem são os sujeitos sociais e os males de nosso tempo.

Com base em seus estudos recentes, que investigam as grandes cidades como fonte de aprendizagem, Lucia define estes centros urbanos como fábricas de problemas nas relações sociais, onde passam a existir espaços delimitados e proliferação de gangues.

É o que alguns autores chamam de “descivilização”, diz a pesquisadora, quando o homem desaprende a conviver com o diferente.

E não existe nenhum lugar que instrumentalize a criança para que ela aprenda a andar na rua, a ter um mínimo de sabedoria para saber com quem fala e como se deve falar na rua.

“Ela aprende através de uma ação casuística, experimentando”. Nesse sentido, Lucia afirma que a grande demanda da criança hoje é compreender melhor as relações sociais e isso deve estar presente para o professor na hora de atuar junto à criança.

Afinal, a escola nas grandes cidades, devido a questões de segurança, é ainda um dos únicos espaços de socialização possíveis à infância.

Criança na infância

Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

A relação com o outro também preocupa Jerusalinsky na educação dos novos sujeitos infantis. Para ele, o bom pedagogo não pode limitar-se meramente a levar adiante os supostos da modernidade que preconizam que em que vive. Para o psicanalista, é preciso que o professor se ocupe da questão da ética que permeia tal suposto.

“Um bom pedagogo”, continua Jerusalinsky, “tem que se dar conta de que a infância está padecendo a demanda de manter uma relação com o outro social onde ela se transforme num adulto que esteja a serviço do gozo desse outro”.

Isto coloca o pedagogo diante de um impasse ético, até que ponto ele vai contribuir para que o mundo do futuro se harmonize sob a forma do gozo do outro e não do ideário do individualismo.

Segundo ele, é necessário que o pedagogo seja capaz de transmitir à criança uma interrogação a cerca de que vida ela vai escolher viver, ou seja, em que ética vai ser escrita a novela de cada criança que ele educa.

“É preciso que o bom pedagogo não seja um mero transmissor de conhecimentos, mas que abra as portas do inconsciente, devolvendo à criança o domínio da narrativa da sua própria vida”, profetiza o psicanalista.

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