Em Porto Alegre, muita gente tem se vestido de palhaço para fazer recreação em hospitais ou ônibus. Outros saem para a rua fantasiados e vendem coisas no Centro ou na Redenção. Mas não basta colocar uma calça larga, uma blusa amarrotada, um nariz vermelho e uma peruca para ser clown – em sentido arcaico, o termo inglês significa rústico, camponês e atualmente designa a clássica figura do palhaço. Trata-se de uma técnica mais elaborada de provocar o riso e, segundo os praticantes, difícil de fazer. – “Tudo o que o ator tem como certo é colocado em dúvida no trabalho de clown”, afirma Juliana Leal, 26 anos, uma das quatro atrizes da companhia Firuliche.
Foi por volta de 1999, com a vinda para o Rio Grande do Sul da atriz e pesquisadora Ana Elvira Wuo, do grupo Lume da Unicamp, que um movimento clown mais articulado tomou impulso por aqui. Casada com um gaúcho de Taquara, ela começou a dar cursos de iniciação e manutenção, empregando as técnicas desenvolvidas por Luís Otávio Burnier com o grupo paulista. São exercícios que puxam pelas particularidades físicas do ator, explorando suas ‘deformidades’: um braço mais torto, um nariz grande, um olho esquisito, um jeito de piscar, de torcer a boca quando está em dúvida.
O estilo também faz parte dos módulos que a atriz Daniela Carmona ministra no Teatro Escola de Porto Alegre (Tepa). Depois de formar-se pelo Departamento de Artes Dramáticas da UFRGS, Daniela estudou tanto com Philippe Gaulier em Londres como com o grupo Colombaione, de Madri, duas referências internacionais no assunto. Com sua peça Gueto Bufo, a atriz ganhou os prêmios Açorianos de Melhor Atriz e Melhor Espetáculo, além de outros, e viajou para várias cidades do Brasil e também Montevidéu.
O clown pode habitar qualquer espaço, fazer parte de qualquer lugar, mas depende de uma relação virtual com a platéia de reciprocidade e confiança. Os poucos espetáculos que têm se arriscado do lado de fora do teatro são freqüentemente confundidos com outras manifestações, como conta Juliana: “Quando estamos nos apresentando na rua, muita gente confunde mesmo. Dizem: Vem, não chega perto, meu filho – devem estar vendendo alguma coisa! Só quando as pessoas desaceleram e dão-se conta do que estão vendo, entendem que há ali um acontecimento teatral e têm uma certa imersão.”
Da seleção oficial do 8º Porto Alegre em Cena, os únicos a explorarem o estilo foram os atores da Companhia do Chapitô (de Portugal), com a peça Leonardo. Mas fizeram parte das apresentações paralelas do evento pelo menos dois outros grupos de clowns: a companhia Firuliche, com o espetáculo Circo Firuliche, e a dupla Ondina e Generosa com o espetáculo Sedushow. O Firuliche inclusive encerrou o festival, distribuindo balões em nome da paz.
Ser ou não ser?
O clown exige uma dedicação constante. “A técnica nos ensina como fazer rir, mas é trabalhando muito que se aprende a sintonizar com as pessoas. Tudo é questão de momento e cada público tem um tempo próprio”, afirma Patrícia Sacchet, 25 anos, formada em Artes Cênicas pela UFRGS e atriz do espetáculo Sedushow. Além disso, “o clown é uma criatura em plena transformação”, acrescenta.
Nesse processo, as descobertas que o ator faz de si mesmo formam a base da sua ação. “O clown ensina muito a respeito da gente”, diz Patrícia, e conta o seguinte exemplo: “Eu uso um vestidinho plissadinho azul e uma fralda. A primeira vez que tive de mostrar a fralda, fiz tão devagarinho, com tanta vergonha, que as pessoas riram muito. Mas a vergonha era verdadeira – eu já estava apreendendo a usar o que eu sentia para o clown e jogar com isso.”
“O nariz do palhaço é a menor máscara do mundo, porque é a que mais revela”, lembra Melissa Dornelles, 23 anos, estudante de Artes Cênicas que desenvolve um trabalho de clown junto ao Hospital de Clínicas. Ela considera o estilo clownesco como uma base para os demais trabalhos do ator: “O que é o ator senão agir e ‘estar presente’? – e estou falando não apenas do ator, mas do artista. Ser clown é uma postura: você não é um personagem, você realmente é um clown.”
Ao ser aquela figura, o ator acaba mostrando tudo o que gostaria de esconder: “Eu sou alto e bem magro e minha roupa é toda colante – um maiozinho com uma saia”, confessa André Mubarack, 25 anos, também estudante de Artes Cênicas. Mas quanto mais se mostra, mais ele ganha energia: “Você recebe um retorno das pessoas, se reabastece com o que elas dão em troca. Porque, ao expor o que é disfarçado na vida social, você mostra para os outros que eles também são assim, estúpidos, ridículos, bobos…”, afirma André.
Com isso concorda Patrícia, para quem o clown não é um fio terra, um mero saco de pancadas: “Se fosse apenas isso, você se sentiria sempre sugado e acabado no final do espetáculo. Mas é como fazer uma armadilha para as pessoas – você apresenta uma história, elas começam a rir e logo estão envolvidas. Então, descobrem dentro de si algo que um dia não levaram ao riso, e começam a sentir que também são aquilo ali.”
Outras lógicas
Para Juliana, o trabalho de clown está na contramão dos movimentos ditos massificantes, pois pretende colocar em jogo e suspender os nossos referenciais mais básicos: “o ator deve esforçar-se por fazer coisas genuínas, sem comparação. Através do jogo, propõem-se outras lógicas, outros corpos”. Àqueles que vêem a comédia apenas como um entretenimento sem conseqüências, poderíamos lembrar as palavras de Chaplin: “Falei muitas vezes como palhaço, mas nunca desacreditei da seriedade da platéia que sorria”.
Melissa assim relata sua experiência no setor de oncologia infantil do Hospital de Clínicas: “As crianças deveriam estar lá dentro não como doentes, embora às vezes sejam tratadas como tais, mas como pessoas. Na maior parte do tempo, elas não brincam – ficam tomando remédio meses e meses, murcham e acabam infelizes. Nós vamos lá para brincar com elas, para reavivar sua auto-estima.” Seu trabalho não é só com as crianças: “Interferimos na atmosfera hostil do hospital. A gente atinge os funcionários e os pais. Algumas pessoas podem não gostar, nós somos muito coloridas, mas estamos ali para cutucar mesmo. As pessoas acham que é uma simples recreação e não é. A gente não vai lá brincar de videogame.”
Outro exemplo do clown intervindo no cotidiano das pessoas é o trabalho que André tem desenvolvido junto aos trens: “Me convidaram para fazer um trabalho no metrô, e logo propus um número que tinha desenvolvido nos cursos da professora Ana Elvira. Uma intervenção é sempre difícil, porque o público não está esperando e nem está querendo receber teatro. No metrô, as pessoas estão sempre de passagem e não pensam em parar a fim de ver alguma coisa.”
Com um enredo remetendo às situações clássicas de palhaço, André representa as confusões de um passageiro que perdeu seu ticket: “O número dura vinte minutos. Eu trabalho sozinho e sinto a necessidade de um outro clown do meu lado. O público é a pessoa inteligente que vem me ajudar e se coloca no papel de bobo também. Como no seriado o Gordo e o Magro – os dois são idiotas mas o gordo acha que manda. As pessoas se surpreendem e se identificam porque na verdade eu estou fazendo a mesma coisa que elas, estou indo pegar um trem.”
A crueldade da iniciação
“Durante toda a iniciação de clown, aquele que ensina também está jogando, e com uma coisa extremamente cruel”, afirma Patrícia. Assim ela descreve um de seus primeiros exercícios: “A professora Ana Elvira era a dona do circo e queria contratar um palhaço. Cada um dos alunos tinha de fazer graça para conseguir o contrato. Depois de eu ter feito as piores macaquices, uma atrás da outra e sem que ninguém risse, ela falou: Pelo jeito a senhora quer muito essa vaga, hein?”. Me veio um negócio na garganta, virei de costas e comecei a chorar. Tudo é para ser, você está em trabalho o tempo todo.”
A questão, para Patrícia, é desfazer as armaduras do ator: “Se você chega com uma coisa pré-determinada, então não está nem querendo saber quem é o outro, o que ele tem e o que veio te dar. Mas como o clown é um jogo, você não pode estar fechado.” A graça muitas vezes só emerge depois da exaustão: “No final dos exercícios, o que acontecia era que você ficava zerado, mas em geral era só aí que você começava a ser de fato engraçado.”
Segundo André, o mestre europeu Philippe Gaulier, com quem teve oportunidade de estudar durante um mês em Londres, age de uma forma parecida: “Ele vai te desconstruindo, tenta sempre puxar o teu tapete. Ele te xinga, constrange e assusta – tenta ser o mais violento possível, para você rapidamente perder a casca e se fragilizar.” Mas a violência tem um objetivo preciso: “É uma forma de desestruturar o ator, e depois disso é necessário saber o que fazer. Não basta simplesmente ser cruel. O trabalho tem de ser conduzido de forma a mostrar para a pessoa aquilo que emergiu de verdadeiro quando ela se desestabilizou.”