CULTURA

Gaúcho sem pilcha

Renato Dalto / Publicado em 13 de abril de 2002

A pesquisa incessante levou Barbosa Lessa a percorrer vários recantos do país. Em parceria com Paixão Cortes, escreveu o “Manual das Danças Gaúchas”. Juntos, fundaram o CTG 35 – homenagem ao ano de 1835, marco da Revolução Farroupilha. Para Paixão Cortes, a fundação do centro de tradições gaúchas era também uma forma de resistir ao colonialismo. “Éramos de uma geração pós-guerra, atingidos em cheio pelo discurso dos vencedores, os norte-americanos. Buscamos então resgatar uma concepção de cultura de origem”, explica Paixão Cortes.

Essa concepção de cultura de origem levou Lessa a produzir algumas das mais belas obras sobre o Rio Grande do Sul. Há um clássico na música: a canção “Negrinho do Pastoreio”. Há um belo exercício de imaginação ligado à pesquisa histórica em “Rodeio dos Ventos”. São deuses indígenas recriados pela peculiar “Gênesis Guarani”, o martírio de uma grande degola, histórias de peões e chinas entrelaçados pelo amor, a visceral busca da liberdade e rebeldia de um escravo e um cavalo em “Cabos Negros”.

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Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

Na verdade, vida e obra se juntam numa única fonte. Aos seis anos, Lessa tinha um sonho: ser peão de estância. Mas foi enveredando por outros caminhos e a lida com a palavra acabou virando ofício. Acabou então cultivando de outra forma o apego à vida campeira do Rio Grande. Esculpiu seu amor pela terra na argila do verbo. E a estampa do gaúcho se fez obra literária.

Embora tenha fundado o CTG 35, preferia a alimentação natural ao churrasco. Não andava pilchado de gaúcho. Preferia um terno leve, mais fácil de carregar na bagagem, pra se vestir. Também havia abandonado o chimarrão. Na década de 50, foi fazer uma pesquisa no Rio Grande do Norte, a erva terminou e o corpo reagiu com prisão de ventre e uma terrível dor de cabeça. Decidiu então aposentar a cuia e a bomba. Mas em Água Grande, cultivava a erva-mate, triturada por um monjolo movido pelas águas de uma cachoeira.

Foi ali a plenitude da vida de Barbosa Lessa, admirador dos doces campeiros, inseparável do cigarro, casa e coração sempre aberto aos visitantes. Nos últimos anos, sua vigorosa obra teve inúmeras manifestações de reconhecimento. Foi patrono da Feira do Livro, recebeu homenagens, prêmios, afagos. Mas havia um olhar muito além de qualquer solenidade. A memória registra uma clareira que de repente se abre na mata. Na grande varanda da casa, se avistam os gestos serenos de um homem adoçando o café. Bebedouros em volta atraem os pássaros. A doçura dos cantos açucara o bálsamo do dia. Lessa então levanta e caminha ao encontro de quem chega. Um olhar de ternura faísca no brilho incessante da manhã.

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