Numa época em que tecnologias como o videofone e a internet modificam e ampliam as noções de tempo e espaço, e físicos da Universidade Nacional Australiana (ANU) anunciam o desmenbramento de um raio laser para o reconstruir, num piscar de olhos, este mesmo raio a metro de distância, o próprio significado de lugar começa a ser discutido entre diferentes profissionais e disciplinas do conhecimento humano. Um exemplo recente foi o I Congresso Internacional de Arquitetura e Psicanálise intitulado Luz e Metáfora: Um Olhar sobre Espaço e Significado, que aconteceu em maio, em Porto Alegre.
Se o experimento dos físicos australianos aproxima mais a possibilidade do teletransporte humano, até agora só possível no cinema com filmes como Jornada nas Estrelas, e, tecnicamente, já estamos capacitados a “ir ver”, em tempo real, um número cada vez maior de regiões do planeta, do interior de algum laboratório da NASA a um canto perdido na Antártida, começamos a querer encontrar o nosso melhor espaço no mundo. Se remetermos nosso pensamento à mitologia grega, veremos então que a reflexão sobre o sentido do lugar é, historicamente, tão importante para o homem quanto o conhecimento de si mesmo. Está lá, na obra de Sófocles, um dos maiores exemplos, quando o rei Édipo retorna a sua cidade natal e, só a partir daí, encontra a sua paz de espírito.
(Re)conhecer a si mesmo em meio ao caos das grandes cidades pode ser um exercício esquizofrênico, afinal, a própria idéia de metrópole sugere constantemente uma fragmentação e uma mudança radical no conceito de identidade e de alteridade, ou um convite a novas descobertas e possibilidades. É o que propõe o bem-sucedido projeto Arte/Cidade que reúne artistas, fotógrafos, arquitetos, urbanistas e engenheiros para discutir e realizar projetos artístico-urbanos desde 1994, em São Paulo. O idealizador e curador do projeto, o filósofo Nelson Brissac Peixoto, esteve em Porto Alegre na primeira quinzena de junho, a convite da Universidade do Rio Grande do Sul, para apresentar o Arte/Cidade.
Enquanto as artes plásticas e a arquitetura interferem na paisagem urbana, o cinema discute a cidade futurista. Recentemente o cineasta Francis Ford Coppola começou a pré-produção de Megalópolis, que deve ficar pronta em 2003. O roteiro, do próprio Coppola, é uma ficção científica que parte da obra Metrópolis, de Fritz Lang (1890-1976), para contar a história de um arquiteto que sonha em criar uma cidade perfeita, de nome Utopia, onde os habitantes conviveriam em igualdade e equilíbrio.
Mas nem só utopias urbanas são captadas pelas lentes dos cineastas. A paisagem e seus múltiplos significados servem como ponto de partida para a análise e reflexão da identidade cultural de um povo através das lentes do cinema urbano gaúcho. O assunto foi tema de um artigo recente no jornal Zero Hora (11/05/2002), intitulado O Pampa vai virar Mar, de Fernando Mascarello. Nele, o autor, que é doutorando em Cinema pela Universidade de São Paulo (USP), discute mais particularmente a função narrativa exercida pelo litoral gaúcho enquanto, segundo ele mesmo, “espaço transicional de construção identitária”. Foi este mesmo cenário litorâneo que ambientou o recente filme de Jorge Furtado, Era uma vez dois verões, em que a observação de Mascarello se encaixa à perfeição. “Mais do que um belo cenário, a paisagem no cinema é quase que determinante da história a ser contada”, garante o cineasta Carlos Gerbase, que já afirmou anteriormente ter sua própria visão de cinema gaúcho, “que sempre foi urbana, esfumaçada, barulhenta, poluída e absolutamente presente”.
Vem de outro cineasta, também com um olhar atento às questões contemporâneas e às relações humanas, a observação sutil sobre a paisagem da cidade. O diretor chinês Wong Kar-wai, de Amor à Flor da Pele (In the Mood for Love), disse certa vez que, de tudo, a primeira coisa que o impressionou quando chegou a Hong Kong, então com cinco anos, foram os sons da cidade, que eram totalmente diferentes de Shangai. Para um transeunte mais atento, percorrer as ruas e avenidas da urbe pode ser uma experiência que remete à suavidade de um jazz, ao ritmo dançante de um bom hip hop ou à estridência desconcertante de uma orquestra desafinada. Mas quantas serão as pessoas que permitem aos próprios sentidos interagirem com a paisagem urbana? Quantas conseguem, no caos diário, “desposar a multidão”? “Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre”?, como sugeriu Baudelaire, em Sobre a Modernidade? “Todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa”, nos ensina Gaston Bachelard em A Poética do Espaço.