A lição de casa, escrita no quadro-negro da economia clássica, ensina que quanto maior for o consumo, maior será o desenvolvimento econômico. Certo? Errado. A nova resposta, minuciosamente comprovada ao longo das últimas décadas, demonstra que o chamado consumismo não é apenas um problema para o bolso de quem gasta em excesso, mas representa hoje um dos principais agravantes da enorme crise ambiental do planeta. “O mercado e os apelos da publicidade nos levam a um consumo irracional, que pouco tem a ver com nossas verdadeiras necessidades”, sintetiza Jorge Mello, 46 anos, e que durante 18 foi alto funcionário do Banco do Brasil na área de informática e hoje ganha a vida como terapeuta corporal. Ele, também professor de arte marcial (aikidô), é o introdutor no Brasil do movimento internacional conhecido como “Simplicidade Voluntária” (SV).
O assunto pode ser visto como a contribuição pessoal e cotidiana de cada cidadão e cidadã ao moderno conceito de desenvolvimento sustentável. “Mas os aspectos benéficos ao meio ambiente e à própria situação econômica de cada um não são os pontos de partida principais para quem resolve praticar os princípios da SV”, esclarece Mello. “No início, a gente costuma perguntar às pessoas interessadas como está o nível de prazer de viver delas”. Para expor as razões da Simplicidade Voluntária, o terapeuta – e centenas de outras pessoas Brasil afora – costumam organizar encontros em dois níveis.
“ Temos os ‘cafés’, em geral realizados em cafeterias mesmo, com caráter mais espontâneo e público diversificado, em que utilizamos um tema principal para abrir a conversa”, diz ele. “Em geral, são realizados uma vez por mês, quase sempre pegando um grupo ou pessoas de uma mesma categoria profissional. O outro formato, com maior comprometimento, é o de dez encontros com turmas de até oito pessoas, para que todos possam efetivamente participar e serem ouvidos com atenção. Não temos respostas definitivas para tudo, cada pessoa elabora sua própria proposta de solução”, complementa.
O movimento, hoje espalhado pelo mundo inteiro a partir de um núcleo surgido nos Estados Unidos no início dos anos de 1980, conforme o seu introdutor no Brasil, representa “o braço social da ecologia profunda”. A SV – assim como outros movimentos semelhantes surgidos em vários países – pode ser definida como uma síntese e atualização de uma série de iniciativas e atitudes que se estendem pela história da humanidade. Suas origens remetem, por exemplo, ao grego Epicuro, que já filosofava sobre a simplicidade e o contato com a natureza como um caminho para o bem-estar em 341 a.C. E passam por São Francisco de Assis, pelo norte-americano Henry Thoreaux (criador do conceito de “desobediência civil”, no início do século XIX), por Ghandi (líder pacifista da independência da Índia, no século XX), pelo movimento hippie dos recentes anos de 1960 e 70 e pelo crescimento da consciência ambiental em todo o mundo.
Filosofia antiestresse
Modernamente, a SV estruturou-se a partir de um livro do mesmo nome escrito pelo ensaísta canadense Duane Elgin, há pouco mais de 20 anos. “Duane propôs a Simplicidade Voluntária como uma resposta pró-ativa aos problemas ambientais e pessoais de gente insatisfeita pelo ritmo frenético do mundo atual, muitas vezes com carreiras bem pagas e socialmente valorizadas; porém, infelizes e sem tempo para a família e seus reais interesses”, diz Mello. “Este autor sugeriu uma série de medidas que podem ser praticadas individualmente ou em grupo, mostrando que cada um tem o poder de transformar sua vida, com um método que não é apenas negação e crítica, mas prática do dia-a-dia”.
A descoberta desta filosofia antiestresse e transformadora foi para Jorge Mello o coroamento de uma série de iniciativas de auto-conhecimento que ele buscava mesmo nos tempos de alto executivo bancário em Brasília, quando morava em uma cobertura, tinha carro do ano e duas motos. “Eu já praticava yoga e trabalhava em defesa do meio-ambiente”, informa. A partir de um treinamento específico em SV no Schumacher College, em Devon, Inglaterra, em 2003 (Mello foi um das 17 pessoas selecionadas de 15 países), durante cinco semanas, resolveu dedicar-se à difusão do movimento. Ao voltar ao Brasil, foi vendendo um a um os seus bens.
Hoje, ocupa um quarto de empregada de 14 metros quadrados no apartamento de um irmão médico, em uma vida familiar com a cunhada e dois sobrinhos, na zona sul de Porto Alegre. Anda a pé ou de transporte coletivo: “Eu não tenho a ilusão de que os carros só têm vantagens. Não preciso me preocupar com estacionamento, com multas nem com roubo de carro”, diz. Os dois únicos pontos contrários são as ameaças de chuva e o maior tempo necessário para se deslocar. “Aproveito esse tempo e vou ouvindo música, estudo um idioma ou vou fazendo a minha agenda. Uso esse tempo para alguma coisa útil”.
Legado para os que estão chegando
O agrônomo José Fernando da Rosa Vargas, casado e pai de Fernanda, de 1 ano e 3 meses, espera contribuir para que sua filha tenha uma vida melhor em um planeta melhor. Como coordenador de educação ambiental no Jardim Botânico de Porto Alegre, este praticante da Simplicidade Voluntária diz que “as crianças e jovens são vítimas da publicidade, cujo objetivo é apenas aumentar as vendas e os lucros de determinadas empresas.
É importante conscientizar os jovens de que há liberdade de consumo e de que eles não serão melhores ou mais felizes se exibirem marcas de empresas famosas”.
Outro aspecto que ele considera importante em seu trabalho é o da alimentação. “Uma dieta simples é saudável e mais barata. O consumo de alimentos industrializados é mais caro e prejudicial, por conter vários aditivos químicos que prejudicam a saúde”, lembra. “Pessoalmente, tento exercitar a liberdade de optar e não ser vítima de estratégias publicitárias, sempre analisando aquilo de que realmente necessito”, garante.
Uma coisa é certa, acentua, se o consumo diminui, diminuem também os problemas ambientais. Ele procura cultivar em seu quintal uma parte da comida que ingere. “Ensinar a plantar é um dos fundamentos da SV que podemos passar para as crianças”, sugere Vargas.
Questão de sustentabilidade
“O quão sustentável é sua vida?” A partir desta questão, colocada em um curso sobre Economia e Sustentabilidade, que realizou na Inglaterra (na famosa comunidade de Findhorn) em 1997, a professora de economia da PUCRS Clítia Helena Martins, 52 anos, passou a observar de modo mais atento o seu cotidiano. Também doutora em sociologia, Clítia reconhece que “em um mundo tão globalizado como o de hoje em dia, não é possível ser purista neste aspecto”. Mas gosta de citar um pensamento do escritor E.F. Schumacher: “Obter o máximo de bem-estar com o mínimo de consumo”. Aliás, Schumacher – autor do best-seller dos anos de 1990 “O negócio é ser pequeno” – é uma das referências para o movimento da SV.
“O importante é termos consciência de que podemos escolher e exigir produtos e alimentos, e não sermos ‘escolhidos’ ou constrangidos a consumir só aquilo que o mercado ou a moda mandam”, observa.
À pergunta-chave, se a redução do consumo em larga escala não poderia agravar crises econômicas ou gerar mais desemprego, a professora não vacila: “Para o bem do planeta e de todos nós, o mercado de trabalho deve direcionar os trabalhadores para outros tipos de atividade e serviços que não agridam o meio ambiente, readaptando toda atividade econômica”. Ela lembra como exemplo os países nórdicos, onde boa parte das políticas públicas e atividades econômicas incluem um forte sentido ambientalista e menos consumista.
Mesmo em relação ao Brasil, com tantos e recorrentes episódios de desrespeito ao meio ambiente e às condições de vida da maioria da população, a economista não se mostra pessimista. “Já foi pior, o próprio agravamento das condições do país e do mundo vem forçando a mudança”, sustenta. Ela dá o exemplo singelo dos atuais galpões de reciclagem de lixo, das feiras de produtos ecológicos e outras manifestações. “Hoje em dia, nenhum grande executivo teria a coragem de afirmar, como fez o então presidente do Banco Mundial, Lawrence Sommers, em 1992: ‘Qualidade ambiental é um luxo muito caro para os países pobres’”.
Para Clítia, há atualmente um crescente “mercado” ambientalista e socialmente justo. Mas ela não se ilude: “A Simplicidade Voluntária implica vontade ativa, é uma militância. Ela envolve escolhas para uma vida mais simples e ao mesmo tempo mais rica de significados, em uma resistência contra nossos condicionamentos aos padrões de consumo”.